CLAM – ES

O ultra-som de uma ‘tragédia nacional’

Resultado: a gravidez precoce não é o drama que se noticia

Maria Luiza Heilborn*


Existe um consenso entre profissionais de diversas formações – médicos, psicólogos, jornalistas, líderes religiosos e políticos – de que a gravidez na adolescência é um mal de grandes proporções. Segundo esse pensamento, seria irresponsabilidade “permitir” que adolescentes se envolvam com a maternidade tão cedo. No entanto, ao contrário do que prega a opinião pública, nem há um quadro de caos e desordem nem tampouco a gravidez na adolescência é uma grande tragédia nacional. A pesquisa Gravidez na adolescência: estudo multicêntrico sobre jovens, sexualidade e reprodução no Brasil (Gravad), realizada pelas universidades do Estado do Rio de Janeiro, Federal do Rio Grande do Sul e Federal da Bahia entrevistou 4.634 jovens de ambos os sexos, entre 18 e 24 anos, numa pesquisa domiciliar realizada nas três capitais destes Estados. Do conjunto de 2.435 mulheres, a proporção das que estiveram grávidas uma vez antes dos 20 anos era de 29,5%. Na maioria das vezes a jovem que engravida já saiu da escola e fica grávida do seu primeiro parceiro, que tem cerca de cinco anos a mais do que ela – uma característica das uniões no País. O futuro bebê é muito bem recebido pelas famílias, e o casal tende a se manter junto, ainda que não por muito tempo, mas nada que seja muito diferente do padrão geral da população no País, onde de cada três casamentos um termina em divórcio.

Ao mesmo tempo que a gravidez na adolescência é considerada indesejada, indicador de pobreza e “subdesenvolvimento”, são fechadas as portas de acesso a métodos contraceptivos. A criminalização do aborto e a proibição da distribuição da pílula do dia seguinte – cancelada no Rio de Janeiro apesar de autorizada pelo governo federal – são sinais de que, embora haja na opinião pública ampla censura contra a gravidez na adolescência, não há o mesmo consenso em permitir o uso do único método que serve para quando a mulher imagina estar correndo o risco de engravidar por uma relação sexual desprotegida. Num país em que aborto é permitido em duas circunstâncias – estupro e risco de vida para a mãe -, a gravidez indesejada só pode dar lugar a duas saídas: recorrer à interrupção clandestina ou encarar o nascimento de uma criança. Cabe ainda lembrar um fenômeno invisível no debate sobre a gravidez na adolescência: o número não declarado de abortos. A proporção encontrada foi de 24,9% entre as jovens.

Na defesa do acesso a métodos contraceptivos, é relevante considerar que a Pesquisa Gravad também registrou que não há necessariamente desconhecimento sobre as formas de proteção diante do sexo. Há uso de preservativos em 70% dos casos na primeira relação sexual. O ideal seria haver uma taxa maior já nessa primeira ocasião. Contudo, quando o relacionamento entre jovens se estabiliza ocorre o abandono da contracepção, o que certamente conduz à gravidez porque a camisinha não é necessariamente substituída por outro método. Esse “abandono” é indicativo de “confiança” entre parceiros diante do HIV/Aids, mas demonstra principalmente que faltam campanhas sistemáticas de esclarecimento sobre contracepção a ponto de possibilitar que jovens adquiram um conhecimento consistente e sólido o suficiente para ser posto em prática em todas as relações sexuais.

Os costumes sexuais se modificaram nos últimos 40 anos, e hoje a virgindade de uma mulher já não é mais um valor central. No entanto, o cenário é paradoxal: o clima de interdição nas conversas sobre sexualidade dentro da família é praticamente o mesmo. Há pouco debate aberto e promovedor de reflexão sobre a sexualidade. O ambiente social de discussão também não se modificou: faltam diálogos sem hipocrisia e sem as tentativas de intromissão das igrejas sobre o seu conteúdo. Nas escolas, não se trata abertamente o tema da contracepção e a educação sexual ainda não é prioridade – e esse seria importante meio de prevenir a gravidez na adolescência. Não discutir contracepção é permanecer cego diante do fato de que as relações sexuais de jovens e adolescentes são legítimas e constituem um direito. A adolescência é um período da vida em que colegas e pares passam a ganhar mais importância, e isso faz parte do processo de construção da autonomia dos jovens diante da família, na busca de suas singularidades.

Pesquisas sobre comportamento sexual no Brasil assinalam uma maior aproximação do calendário de iniciação sexual, o que é um bom indicador dessa mudança de mentalidade. A iniciação sexual passou a se dar entre namorados, e só uma pequena minoria de rapazes tem suas primeiras relações com profissionais do sexo. São transformações importantes que dizem respeito aos costumes sexuais. O exercício da sexualidade fora dos limites de uma união tornou-se amplamente aceitável, em que pese a insistência das doutrinas religiosas em pregar a abstinência antes do matrimônio. Pelo menos nos grandes centros urbanos, uma moça não é mais vítima de opróbrio por não ser mais virgem como alguns anos atrás. Vale lembrar que o clima de reprovação social ignora que até poucas décadas atrás moças nas mesmas faixas etárias daquelas que hoje são consideradas adolescentes tinham filhos, o que era normal. Ou seja, houve uma mudança no entendimento social sobre a juventude – há uma expectativa de prolongamento do tempo de estudo, do retardamento do início da vida reprodutiva e uma aceitação do exercício da sexualidade na adolescência.

O que parece quase natural para famílias de menor poder aquisitivo é estranho para as classes média e alta. Entre as primeiras, a reprodução é muito bem recebida, já que existe uma grande valorização da família na sociedade brasileira, sobretudo em grupos populares. Mesmo não prevista, a gravidez dá lugar a uma conversa entre os parceiros e não necessariamente os rapazes fogem à responsabilidade. Nas camadas populares, é motivo para união e conta com o apoio das famílias.

O quadro, portanto, não é de anomia. Nem os números são assim tão assustadores: a Pesquisa Gravad identificou que, entre as jovens de 18 a 24 anos, 16,6% tiveram filhos antes dos 18 anos. O porcentual das que tiveram filhos antes dos 15 anos é de apenas 1,6%. Quando se trata de homens, os porcentuais caem para 21,4% antes dos 20 anos, 8,9% antes dos 18 anos e insignificante 0,6% antes dos 15 anos.

* Este artigo foi originalmente publicado no jornal Estado de São Paulo em fevereiro de 2005. Maria Luiza Heilborn é antropóloga, professora do Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj) e coordenadora do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

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