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Clima de moralidade

Desde 2003, a administração de George W. Bush tem incluído cláusulas restritivas em relação à prostituição em leis e documentos políticos. Um exemplo é o texto do Global AIDS Act (Ato Global para a AIDS), o qual preconiza que os fundos a que se referem a lei “não podem ser usados para promover ou advogar a favor da legalização da prática da prostituição ou do tráfico sexual” e nem tampouco podem ser aplicados em “organizações que não disponham de claras definições de política interna que explicitem oposição à prostituição e ao tráfico sexual”. Em maio de 2005 a Comissão Nacional de AIDS reagiu vigorosamente à cláusula, apoiando a decisão de suspensão do acordo bi-lateral do Brasil com a USAID, a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional. Entretanto, os recursos derivados do Trafficking Victims Protection Act (TVPRA), adotado também em 2003, que apóiam programas de erradicação do tráfico de pessoas em todo mundo, inclusive no Brasil, estão sujeitos às mesmas cláusulas.

Entre agosto e setembro de 2005 duas organizações norte-americanas – a ONG DKT e o Open Society Institute (OSI) – impetraram ações legais que questionam a constitucionalidade da cláusula. A ação movida pelo OSI questiona a cláusula com base no princípio constitucional de liberdade de expressão e é apoiada por outros grupos e setores progressistas nos EUA e em outros países.

Contudo, há duas semanas existe a informação de que a Equality Now, uma das mais importantes organizações feministas dos Estados Unidos, iria emitir uma nota pública de apoio às medidas políticas adotadas pela administração federal à prostituição e ao tráfico sexual. A iniciativa causou inquietação entre ONGs norte-americanas e algumas redes globais e regionais da América Latina. Para a pesquisadora Sonia Correa, uma das coordenadoras do International Working Group on Sexuality and Social Policy (IWGSSP) e pesquisadora associada da ABIA, a posição da Equality Now não é uma surpresa.

“A Equality Now sempre teve uma posição bastante radical contra a prostituição e o tráfico e esta é uma posição legítima. O que surpreende é o fato de que, no momento específico em que grupos progressistas questionam a cláusula da política americana em relação ao tráfico sexual e à prostituição, esta importante organização feminista decida expressar uma posição política de apoio ao governo americano, desconsiderando outros elementos nefastos da política Bush, tais como o unilateralismo, aberto desrespeito aos direitos civis e políticos de prisioneiros da guerra contra o terrorismo, e o ataque sistemáticos aos direitos sexuais e reprodutivos”, diz ela.

Sonia Correa observa que é preciso analisar a problemática do tráfico de forma mais abrangente. “A melhor definição de tráfico é a do Protocolo de Palermo, que não se restringe ao tráfico sexual. Deveríamos sempre nos pautar por essa definição, pois ela trata do tráfico de pessoas em sentido amplo, ou seja o deslocamento forçado ou coerção de pessoas para todo e qualquer fim de exploração. Vale lembrar que hoje, no mundo, a maioria das mulheres que estão inseridas no mercado de trabalho estão sujeitas a condições muito precárias e inúmeras formas de exploração. O que explica, portanto, esta obsessão exclusiva pela exploração sexual?”, questiona.

Para Sonia, o grande viés da política do governo de George W. Bush é que ela traduz a problemática do tráfico de pessoas exclusivamente a partir de uma ótica moralizante: “A maneira que essa política se apresenta ao mundo e as medidas que são tomadas são voltadas somente ao tráfico sexual e à prostituição, quando na verdade o problema do tráfico é muito mais extenso. A política Bush centra o foco no tráfico sexual e na prostituição que captura com facilidade o imaginário social”.

Segundo ela, a redução do tráfico de pessoas, inclusive sexual, exige medidas vigorosas no sentido da prevenção, e não apenas de coibição. A pesquisadora lembra que o Protocolo de Palermo, do qual o Brasil é signatário, enfatiza com vigor a necessidade de medidas de prevenção do tráfico, o que implica intervir no plano das suas causas fundamentais, como a pobreza e a desigualdade de gênero.

“A política americana é ‘policialesca’ e passa ao largo das causas que levam as pessoas em geral – homens, mulheres, meninos e meninas – a se deslocarem através das fronteiras e se submeterem ao poder de traficantes. Trata-se de uma política finalista e criminalizante, cujo objetivo é bem ideológico no sentido de que projeta uma perspectiva moralizante de eliminação pura e simples da prostituição. Esta lógica criminalizante, vale dizer, está sempre em contradição aberta com princípios de direitos humanos”, afirma.

Os efeitos no mundo

Segundo a pesquisadora, pode-se identificar traços da política norte-americana em diversas ações ao redor do mundo. Na Índia, cidadãos norte-americanos ligados à organizações financiadas pelo governo dos EUA têm “resgatado” crianças filhas de prostitutas, que vivem em bordéis. O motivo do “resgate” é extraí-las do ambiente da prostituição, em detrimento de outras dimensões a serem consideradas, como a relação com suas mães. No caso brasileiro, embora as condições sejam bastante diferentes, ao longo dos últimos meses ocorreram vários episódios de repressão à prostituição. “A maior distorção destas operações de resgate, recuperação e repressão é que as pessoas diretamente envolvidas em geral não têm voz própria , ou seja, estão destituídas de sua condição de pessoa. Há uma gama de atores e instituições falando em nome das prostitutas e mulheres traficadas sem que elas mesmas sejam ouvidas”, diz Sonia.

Para a co-coordenadora do IWG, o maior desafio colocado pela atual política norte-americana é que ela está amarrada ao fluxo de recursos que financiam o trabalho das organizações não governamentais que atuam no campo do HIV AIDS e da prevenção ao tráfico de mulheres e meninas. “Hoje milhares de instituições, no mundo inteiro se vêem diante de uma ‘escolha de Sofia’: assinar a cláusula do governo americano ou fechar as portas. Um grande número delas está assinando a cláusula para poder sobreviver financeiramente”, afirma. “Entretanto, ao fazer isto, em muitos casos estará rompida a relação de confiança entre educadores e as pessoas que vivem do trabalho sexual, pois a partir daí estas organizações estarão condicionadas a se opor abertamente à prostituição. Isto tornaria inviável, por exemplo, o trabalho de ONGs como a Sonagachi de Calcutá, na Índia, cuja ação vem reduzindo sistematicamente a infecção por HIV entre trabalhadoras sexuais e clientes”.

Sonia alerta para o fato de que embora o acordo com a USAID para prevenção ao HIV esteja “suspenso” no Brasil, o fluxo de recursos financeiros norte-americanos para erradicação do tráfico de pessoas e suas eventuais implicações em termos da intensificação recente de operações policiais contra a prostituição e o tráfico não têm sido monitoradas. Segundo ela, ainda que essas operações anti-prostituição não estejam diretamente associadas ao financiamento norte-americano elas devem ser analisadas à luz do “clima moralizante” que decorre das políticas de Bush.

“Além disto, a legislação brasileira em relação ao tráfico foi reformulada e é hoje muito mais dura. Vale dizer que a legislação sobre prostituição é mais flexível . Se contabilizamos a mudança legal, o clima moralizante e a eventual existência de recursos americanos direcionados às ações contra o tráfico, a intensificação de operações policiais não chega a surpreender”.

A pesquisadora questiona que, sendo o Brasil signatário do Protocolo de Palermo, a política brasileira deveria ser consistente com as definições do tratado. “Mas sabemos que há uma distância enorme entre uma definição de política internacional e a realidade das operações policiais”, diz.

Feminismo dividido

A posição do Equality Now, ao se manifestar publicamente contra a prostituição e o tráfico sexual, não é uma exceção. “Historicamente o campo feminista tem estado radicalmente dividido em relação à prostituição. No plano global, inclusive, há muitos anos, não tem sido possível estabelecer um diálogo entre as duas posições”, lembra Sonia. A novidade funesta, segundo ela, é que, em anos recentes, os setores conservadores têm instrumentalizado esta divisão, ao usar uma estratégia de dividir para dominar. “Desde 1999, pelo menos, nos debates das Nações Unidas, o Vaticano, países islâmicos e posteriormente o governo Bush vinculam sistematicamente direitos sexuais, prostituição, pornografia e pedofilia, para abrir fraturas no movimento feminista. Neste sentido, o potencial apoio da Equality Now ao governo Bush não significa senão o aprofundamento desta fratura que decorre da estratégia conservadora, e isto é o mais inquietante”.

O papel do Estado

Sonia Correa concorda que o Estado deva estar envolvido nesse debate. “Não resta dúvida que existe exploração, violência e coerção nas situações de prostituição e tráfico. Vale dizer que na maioria dos casos estas atividades estão vinculadas ao crime organizado. Se a pessoa de fato foi coagida, está em cárcere privado, experimentando violência sistemática e há uma denúncia – ou a própria pessoa recorre à polícia ou a um consulado brasileiro – é crucial que o Estado intervenha. Porém, as medidas não podem se limitar à punição e coibição. É fundamental desenhar e implementar medidas de prevenção, que busquem intervir sobre as causas fundamentais”, salienta.

A pesquisadora lembra que, mesmo no Brasil, ainda há lugares onde meninas são “vendidas” por suas famílias. Para ela, neste sentido é insuficiente punir traficantes e aliciadores. Entretanto ela sabe que, em geral, é mais fácil fazer a política de proibição. “O braço armado do Estado sempre tende a se mover mais rápido e de maneira mais eficaz do que seu braço preventivo”, observa ela, alertando para o fato de que as medidas de controle da prostituição e do tráfico sexual podem, inclusive, se constituir em novas barreiras para a mobilidade das mulheres no país e no mundo. “Mulheres jovens ou pobres se movendo para além das fronteiras de seu país imediatamente são vistas como prostitutas ou vítimas do tráfico, quando nem sempre é assim”.

Informações detalhadas sobre a política do governo Bush em relação à prostituição e o tráfico sexual podem ser lidas nos textos “Aplication of the ‘Prostitution Loyalty Oath’ in U.S. Global Aids Policy” e “Implications of U.S. Policy Restrictions for Programs Aimed at Commercial sex Workers and Victims of Trafficking Worldwide”, disponíveis para download em formato pdf.

Leia também a série das outras quatro reportagens sobre tráfico de mulheres e prostituição que o CLAM publicou: Cidadania ameaçada, Intervenção contraditória, Nem tão exótico assim e Senhoras de si.

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