Por Mathilde Bonnassieux e Fábio Grotz
A lei de "luta contra o sistema da prostituição" foi aprovada no dia 04 de dezembro na Assembleia Nacional Francesa, por ampla maioria: 268 votos a favor, 138 contra e 79 abstenções. O projeto foi apoiado pelo governo do presidente socialista François Hollande e possui três componentes essenciais: o fortalecimento da capacidade de lutar contra redes de tráfico de mulheres e prostituição, a remoção do delito de solicitação para as prostitutas e a criminalização do cliente.
De acordo com setores feministas e de profissionais do sexo, a lei presume que todas as prostitutas são vítimas, o que não é o caso para todas. "Comecei por acaso, continuo por escolha, mesmo que seja difícil às vezes", disse ao jornal Le Monde uma trabalhadora sexual mãe de dois filhos, que perdeu o emprego há quatro anos. "Eu não aguento mais ouvir as senhoras socialistas explicarem que eu não tenho escolha sobre a minha vida”, afirmou outra prostituta.
Estima-se que 90% das prostitutas na França sejam estrangeiras, mas esta é uma apreciação muito vaga, calculada apenas com base no número de pessoas identificadas nos registros policiais. Além disso, ser imigrante não significa necessariamente uma condição restritiva: muitas preferem a prostituição na França à vida em seus países de origem, conforme as mulheres retratadas no livro Trânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo (CLAM/EdUerj), da antropóloga Adriana Piscitelli (Pagu/Unicamp), e no livro Sex at the Margins: Migration, Labour Markets and the Rescue Industry, da antropóloga Laura Agustín.
A partir deste ponto de vista, a advogada Bénédicte Lavaud-Legendre, autora de um livro sobre a prostituição nigeriana e a realidade do tráfico, está preocupada com uma lei que vai contra os avanços da sociedade francesa em relação à consagração de novos direitos sobre o corpo humano, como o direito ao aborto, conquistado há muito anos, o alívio do quadro jurídico que rege a reprodução assistida e o debate sobre a eutanásia. Todas essas questões colocam em destaque a liberdade de dispor sobre o próprio corpo. Por que seria diferente com a prostituição?, argumentam os defensores de uma visão mais liberal.
Riscos da penalização
Recusando-se a entrar em um debate sobre moral sexual, os defensores do projeto de lei privilegiaram o sofrimento das mulheres pobres, muitas vezes imigrantes, e a defesa das “vítimas de tráfico”, Por esta via, o que o governo francês quer resolver não é a prostituição, mas a imigração de mulheres que – conforme pontuou o psicanalista Contardo Calligaris em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, citando a pesquisa de Adriana Piscitelli –, “tentam ser livres trabalhadoras do sexo e que, em geral, não são vítimas nem de traficantes, nem de cafetões, nem de seus clientes”. Na lógica dos promotores da lei, a criminalização do cliente resultaria em menor demanda. A lei prevê uma multa de 1.500 euros, 3.750 em caso de reincidência e as mulheres que forem “resgatadas” da prostituição passam a ter assistência social e profissional.
Além disso, conforme aponta Laura Agustín, antropóloga que estuda migração, tráfico e indústria do sexo e mantém um blog sobre a temática, “não existem dados confiáveis em nenhum país sobre a quantidade de pessoas que são vítimas do tráfico. Não há acordo internacional sobre a definição de tráfico, incluindo a Europa, o que significa que não se pode afirmar que a lei irá reduzir tal atividade”, afirma.
Muitas associações que trabalham diretamente com as prostitutas temem que esta disposição tenha como efeito imediato aumentar a clandestinidade das trabalhadoras. Por medo de perder os seus rendimentos, as mulheres irão se refugiar em uma prostituição ainda mais subterrânea, apartamentos ou na internet. Então, como ajudar essas pessoas a sair da prostituição se elas são invisíveis? A lei, portanto, parece contraditória. Por um lado, ela prevê um fundo "para a prevenção da prostituição e o acompanhamento social e profissional das profissionais". Por outro lado, ao penalizar o cliente, aumenta o risco da clandestinidade, o que sabota o trabalho de prevenção e apoio social liderados pelas associações.
De acordo com um grupo de sociólogos e médicos franceses, “a criminalização enfraquece a capacidade de negociação com os clientes, sobretudo em relação ao uso de preservativos. Os dois atores nessa relação estruturada pela dominação masculina não têm, obviamente, os mesmos poderes. Finalmente, a clandestinidade torna mais difícil a luta contra as redes de tráfico", afirmaram em artigo. O grupo de especialistas convidou os legisladores a seguir o caminho da “desestigmatização da prostituição" para melhorar "a autonomia e as possibilidades de auto-proteção".
A França segue os passos de outro país europeu – a Suécia –, embora o modelo sueco não permita que se tenha uma ideia clara sobre a questão. Desde que o país adotou uma lei que criminaliza clientes, em 1999, a prostituição diminuiu em mais da metade. Mas isso só se aplica à prostituição de rua. Nenhum estudo foi feito sobre a prostituição na internet, ou se a criminalização levou ou não a uma deterioração das condições de trabalho.
Um dos dados que chamou a atenção durante o processo de votação foi o apoio do governo socialista de François Hollande. Afinal, pressupõe-se que governos de esquerda tenham posições progressistas quanto às práticas sexuais. No início do ano, a ministra dos Direitos da Mulher, Najat Vallaud-Belkacem, afirmou que seu desejo era ver a prostituição eliminada, pois significa uma modalidade de escravização da mulher. De acordo com Laura Agustín, esse é o argumento clássico e não depende do pânico representado pela questão do tráfico.
“O argumento da ministra e de várias outras correntes políticas é de que a prostituição é uma prática patriarcal que impede a igualdade”, afirma Laura Agustín, que não se surpreende com a autoria do projeto. “O socialismo em todos os países europeus tem sido durante muito tempo tão repressivo, abolicionista e anti-trabalho sexual como qualquer outro partido visto como conservador. Para mim, é perfeitamente coerente que tenham sido os socialistas que patrocinaram o projeto. Chega de romantismo em relação ao socialismo”, afirma Laura Agustín.
Ainda de acordo com Laura Agustín, o apelo salvacionista da lei desconsidera o que as mulheres têm a dizer sobre a experiência de vender sexo, desqualificando-as. “Ao invés de se engajar em políticas que permitam que as experiências individuais sejam centrais e de ouvir atentamente o que o ativismo da prostituição tem a dizer, esses ‘salvadores’ reivindicam saber como as trabalhadoras devem pensar e sentir. Além disso, ignoram a questão do consentimento”, critica a antropóloga.
Convidada para um programa de rádio, a especialista Bénédicte Lavaud-Legendre lamentou que os legisladores tenham optado por aprovar a lei antes de avaliar os mecanismos já existentes para combater o tráfico de seres humanos e tentar aperfeiçoá-los. "Nós temos mecanismos em uso que não são avaliados. As poucas avaliações que temos mostram que eles não são muito eficazes". A França conta com uma lei que permite às vítimas de tráfico de seres humanos que denunciam a exploração receberem uma autorização de residência. Uma medida em si louvável, uma vez que permite que a polícia reúna informações sobre as redes de exploração através de denúncias, mas, na prática, muito pouco utilizada. Em 2013, apenas 36 autorizações de residência foram emitidas. As Prefeituras não aplicam sistematicamente a medida, pressupõe Bénédicte Lavaud-Legendre, porque a lei está sujeita a outras condições, sobretudo a que requer que os autores do abuso sejam presos.
A lei que criminaliza os clientes da prostituição prevê que as imigrantes ilegais capturadas por redes de tráfico possam ter a situação regularizada. Laura Agustín destaca que, na verdade, a autorização é provisória (6 meses). “Regularização não é o termo correto. É uma permissão desde que a pessoa deixe de vender sexo. Depois desse período, se não tem outro trabalho, é obrigada a deixar a França”, afirma.
Outro problema é que a lei não contém nenhuma novidade na luta "clássica" contra o proxenetismo e o tráfico. Arrisca, entretanto, abrir um precedente negativo para a situação das prostitutas, sem melhorar a eficácia da luta contra o tráfico e oferecer ajuda real ao trabalho realizado pelas associações. Muito pelo contrário: o que parece estar em jogo é de ordem mais ampla, em especial no que diz respeito ao lugar que a migração ocupa atualmente no cenário mundial. “Estamos falando de Europa, não apenas de nações distintas”, afirma Laura Agustín.
Após a votação na Assembleia Nacional, o projeto de lei deve ser apreciado pelo Senado em junho. Entre manifestações, petições e artigos, a lei suscitou um grande debate. Um dos protestos mais emblemáticos foi o manifesto “Não toquem na minha puta”, assinado por personalidades contrárias à lei, como a atriz Catherine Deneuve.
Livro retrata o outro lado
Na década de 1990, ao observar o aumento da prostituição voltada para turistas estrangeiros e o deslocamento de mulheres brasileiras de diversas regiões para trabalhar como prostitutas em países europeus ou nos que fazem fronteira com o Brasil, a antropóloga Adriana Piscitelli (Pagu/Unicamp) iniciou pesquisas em países do sul da Europa para compreender os diferentes aspectos do fenômeno. Os principais resultados desses estudos estão reunidos no livro Trânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo, publicado pelo CLAM e pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (EdUerj) na coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade.
O livro desconstrói conceitos e associações – entre os quais tráfico internacional de pessoas e migração – e revela como suas protagonistas (as da vida real) ressignificam seu capital social (o corpo) e os estereótipos de brasilidades em busca de seus sonhos.
Logo no início do livro o leitor percebe a diferença entre deslocamentos no mercado de sexo – objeto de estudo da autora – e o alardeado tráfico de pessoas, e é apresentado aos problemas que podem advir dessa associação. O livro mostra como a vinculação entre mobilidade (ou migração) de mulheres para exercer a prostituição e o tráfico internacional de seres humanos tem tido efeitos de diferentes alcances: como a promulgação de leis que, exemplo da lei francesa, visando “proteger potenciais vítimas”, acabam por incidir sobre a atuação de pessoas no trabalho sexual e na migração, atingindo particularmente os/as migrantes não documentados/as.
Um aspecto a ser destacado é o da agência feminina – termo identificado com expressões como autonomia, livre escolha e livre arbítrio –, que distancia a imagem da mulher que se desloca para se dedicar a atividades no mercado transnacional do sexo a fim de melhorar de vida daquela imagem de “mulher-vítima traficada”. Uma parte das mulheres que relatam suas experiências no livro circula entre o Brasil e a Europa. De acordo com os relatos apresentados, na maior parte das vezes, é a irregularidade dos documentos ou a meta de acumular recursos que limita a possibilidade deste trânsito. Como quaisquer outros/as migrantes brasileiros/as, elas mantêm estreitos laços com o Brasil. Seus projetos de futuro, sustenta a autora, incluem o retorno, em algum momento distante, ao país de origem e revelam o projeto de investimento em um modo de proteção social individual e familiar que se manifesta na aquisição de bens no Brasil e, muitas vezes, na formação de uma poupança que lhes garanta uma velhice tranqüila.
A maioria das mulheres retratadas no livro reconhece e honra as obrigações familiares. Os envios de dinheiro e presentes são feitos a pessoas com diferentes graus de parentesco, que podem variar de filhos a sobrinhos. ”Envio dinheiro todos os meses. Sustento todos os gastos da casa, onde moram minha mãe, meu pai e minha irmã. Além disso, pago uma casa que comprei. Como mínimo, envio 800 euros. 600 para pagar o aluguel, os gastos deles, essas coisas e 200 euros para a casa que comprei, são parcelas de pouco valor”, diz uma das entrevistadas da pesquisadora.
As narrativas remetem a ganhos que vão além da dimensão material e familiar. Os deslocamentos femininos na indústria do sexo no exterior também conferem a essas mulheres a ampliação do seu capital cultural, o que lhes possibilita, de acordo com os relatos do livro, uma revalorização pessoal no Brasil. ”Você fazendo a prostituição aqui você aprende muita história, muita cultura diferente (…) Porque você convive também com os franceses, com os ingleses, com alemães, com os gregos. Então, quando eu saio daqui e vou para o Brasil e você começa a conversar com as pessoas, você vai vendo a grandeza que você tem em termos de cultura, entende? Que você aqui fora, você aprende muito”.
A experiência nos contextos migratórios lhes confere também a possibilidade de ocupar novas posições na hierarquia de gênero. Isso fica claro no relato de uma entrevistada que oferecia serviços sexuais nas ruas de Barcelona: ”Agora não vou querer ter só um homem, agora eu vou querer ter o que eu queira… Que a gente lava, passa, cuida e eles sempre estão atrás de busca de outras. Não, eu agora quero que ele lave, passe para eu usar. Agora minha cabeça mudou, eu agora já disse a ele, agora aquela que tu conheceu é outra. Agora quem dá as cartas sou eu”.