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EGES: Legados y nueva edición

“Não confronto o modelo, mas quero afirmar o meu lugar no mundo, e o curso EGeS foi uma experiência muito importante para que a questão trans pudesse ter a visibilidade que, em geral, a sociedade lhe rouba ou lhe concede pela lógica da delinquência”, afirma Letícia Lanz, pós-graduada na 2ª edição do Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade (EGeS), cujas inscrições para a próxima edição serão realizadas entre os dias 3 e 28 de novembro.

O lugar que Letícia Lanz ocupa no mundo atual é distinto daquele que ocupou durante 50 anos. Hoje com 63 anos de idade, a psicanalista – nascida biologicamente homem e registrada com nome masculino – viveu até os 50 anos com a identidade que a sociedade lhe outorgou através do vínculo entre sexo, gênero e orientação sexual. Isto é, a ideia de uma continuidade entre o sexo anatômico, os papéis desempenhados cotidianamente e as expectativas de relacionamento afetivo-sexual. Assim, Geraldo Eustáquio era um renomado consultor de empresas, que desempenhava publicamente um papel masculino atuando no mundo dos negócios, casado com uma mulher há 38 anos e com filhos e netos. No entanto, há 13 anos, Geraldo decidiu assumir sua “descontinuidade”.

Desde pequena, Letícia não se enquadrava no mundo dos meninos e da masculinidade. O resultado, conforme ela lembra, era um cotidiano de bullying, que se intensificou na adolescência, na medida em que, mesmo identificando-se com o universo feminino, não se sentia atraída por homens. “Você imagina a situação: um menino que tinha uma performance feminina e, portanto, de quem a sociedade espera envolvimento com homens, mas que não queria envolver-se com eles. Eu sempre gostei de mulher. Isso causava um nó na cabeça das pessoas e, consequentemente, eu era alvo de preconceito e discriminação”, afirma Letícia.

Não foi diferente quando Geraldo assumiu-se Letícia Lanz. A carreira de consultora desfez-se, clientes foram perdidos e a vida financeira foi abalada. A situação foi contornada quando ela formou-se em psicanálise. Desde então se dedica à clínica.

A trajetória de Letícia Lanz compõe um roteiro de vida que, também em outras partes do país, afeta as pessoas trans. Por causa do estigma, da discriminação e da violência, esses indivíduos – sejam transexuais ou travestis – são espremidos diariamente por um modelo de regulação social que privilegia o binarismo de gênero, no qual as possibilidades identitárias prescrevem se situar exclusivamente no terreno do masculino ou do feminino. Por isso, quando essas fronteiras são rompidas ou atravessadas, as sanções surgem, levando à marginalização. Exemplo disso, conforme destaca Letícia Lanz, é a falta de leis que reconheçam os direitos civis das pessoas trans. No Brasil, não há legislação que permita a troca de nome para as pessoas trans. Ela própria, candidata à deputada federal nas últimas eleições, foi registrada pelo Tribunal Regional do Paraná, estado onde vive, com o nome oficial Geraldo Eustáquio de Souza e o nome da candidatura Letícia Lanz. Alguns órgãos e instituições têm permitido, nos últimos anos, que funcionários sejam reconhecidos com o nome social – ou seja, o correspondente a seu gênero auto-atribuído. Mas são medidas pontuais e nem de longe resolvem a situação desses indivíduos, não apenas pela limitação do reconhecimento como também pela linguagem médica e patológica que os envolve.

No Brasil, a transexualidade é definida como doença. A mudança de nome, nesse caso, só é possível através da Justiça para as pessoas que passam pelo processo transexualizador, que envolve transformações corporais radicais – como a redesignação genital – e são, a partir dessa fundamentação biológica, autorizadas a viver como sendo do sexo ou gênero da sua escolha. “Esse modelo deveria ser reformulado de modo a ampliar as possibilidades legais e sociais de vida. Eu tenho o direito de viver como quero, de me auto-identificar, de me expressar no gênero que eu desejar. Ou mesmo de não seguir nenhuma cartilha de gênero. Sou crítica desse vínculo maldito entre sexo, gênero e orientação sexual. A transgeneridade não é doença, nem delito. Ficamos presos a regulações que não permitem que a gente, seja travesti, transexual, andrógino ou seja lá a identificação que a pessoa se dê, viva da forma mais confortável e desejada”.

Para Letícia Lanz, o EGeS foi uma experiência fundamental ao fornecer elementos para que ela pudesse refletir sobre a questão trans. “O curso tem um nível excelente, o material didático é primoroso e possibilitou o contato com uma série de reflexões sofisticadas sobre gênero e sexualidade”, afirma.

O material do EGeS, desenvolvido pelo CLAM em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), descreve e analisa as diversas dimensões que caracterizam as relações de gênero e sexualidade. Nesse contexto, são analisadas as bases históricas, sociais, culturais, religiosas, morais, médicas, legais e jurídicas dos processos sociais de estigmatização e discriminação e é oferecida aos alunos uma ampla visão sobre os direitos sexuais. Na terceira edição do curso, serão oferecidas 120 vagas, com carga horária de 436 horas, em modelo semi-presencial (368 horas online e 68 presenciais). Gratuito, o curso contará com 7 disciplinas, cujo conteúdo é um desdobramento aprofundado de outra iniciativa do CLAM em parceria com o governo federal, o Curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), voltado para profissionais da educação do ensino público.

Por ter vivido desde pequena uma rotina de discriminação, Letícia Lanz argumenta que uma das discussões que mais a mobilizaram foi sobre o viés patológico das identidades trans. “O olhar predominante lançado sobre as pessoas trans é o da patologia. De fato, parece mais fácil e seguro ser doente do que delinquente. Afinal, um doente merece cuidado, enquanto o delinquente, uma punição. Mas, nesse jogo de aparências, o peso das sanções acaba sendo o mesmo, porque o que a sociedade está nos oferecendo são condições para nos encaixarmos em modelos. Não há opção de viver de outra forma. Portanto, onde está a liberdade sobre nosso corpo, sobre nossa subjetividade?”, questiona Letícia Lanz.

Desde 2008, a psicanalista mantém na internet a página “Arquivo Transgênero”, acervo em português que traz uma série de artigos, reflexões, discussões sobre conceitos e recomendações de sites sobre o campo da transgeneridade – termo que Letícia usa por abarcar os fenômenos sociológicos de desvio ou transgressão das normas de conduta estabelecidas pelo dispositivo binário de gênero, entre as quais estão a transexualidade, travestilidade, crossdressers e dragqueens. Na página, também é possível baixar a dissertação de mestrado em Sociologia, defendida em junho deste ano na Universidade Federal do Paraná (UFPR), com o título de “O corpo da roupa – A pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero”.

Passados os 13 anos desde que Letícia Lanz assumiu-se como tal, ela relembra que a transição pública não foi fácil, mas destaca que valeu a pena. “Pude ser em público aquilo que subjetivamente sempre fui. E a especialização no EGeS tem um papel importante na minha trajetória, porque as identidades trans precisam de apoio contínuo, na medida em que a marginalização e o preconceito persistem. O aprendizado com o curso me municiou com um conhecimento fundamental, que me abastece diariamente, para que eu possa fortalecer meu lugar no mundo e, assim, servir como um exemplo de que é possível colocar-se perante a sociedade de maneira diferente. Tenho certeza de que não é simples, mas é possível. E não se pode perder isso de vista, porque nosso posicionamento no mundo é uma maneira de afirmarmos que não somos anormais, ilegais, nem doentes”, conclui Letícia Lanz.

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