No domingo, 16 de novembro, foi realizada na orla da Praia de Copacabana a 19ª Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro, que teve como mote a crminalização da homofobia no Brasil e reuniu cerca de 500 mil pessoas. Em dezembro de 2011, Benjamin Constant, uma cidade de 30 mil habitantes localizada na tríplice fronteira entre o Brasil, Peru e Colômbia, no encontro dos rios Amazonas e Javari, realizou sua primeira Parada LGBT. Como a cidade é próxima à região de maior número de grupos indígenas em isolamento voluntário da América Latina, o evento foi marcado pela diversidade étnica – lá estavam lésbicas de tribos indígenas locais e drag queens peruanas, entre outros. Participantes seguravam cartazes com palavras de ordem em prol da criminalização da homofobia – assim como nas Paradas realizadas em metrópoles como Rio e São Paulo – e entoavam I Will Survive, de Gloria Gaynor, e hits de Lady Gaga.
A um primeiro olhar de alguém não familiarizado com a vida cotidiana nessas comunidades, indígenas participando de uma manifestação por direitos gays em uma das regiões mais isoladas da Amazônia pode causar certa surpresa. Este olhar surpreso se deve à percepção comum da Amazônia como uma periferia distante e à leitura que se faz das paradas gays como um produto da Modernidade tardia ocidental.
Segundo a abordagem da oposição centro-periferia cunhada pelo argentino Raúl Prebisch para explicar o desenvolvimento em contextos de dependência econômica, o sistema internacional seria dividido entre um pequeno núcleo central de países desenvolvidos, em torno do qual gravita uma imensa periferia subordinada em situação de assimetria estrutural, cuja dinamização representa um desafio para as políticas públicas. Por essa perspectiva, a Amazônia seria uma dessas periferias.
“A surpresa ao encontrar paradas gays em cidades isoladas da Amazônia se deve à suposição de que tais lugares não fazem parte da nossa modernidade política”, afirmou a historiadora Manuela Picq, professora de Relações Internacionais na Universidade São Francisco de Quito (Equador), em recente palestra organizada pelo CLAM no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ).
A cena local LGBT tem florescido publicamente desde 2002, quando a cidade teve seu primeiro time gay de futebol de salão. Os membros da equipe – alguns dos quais saíram do armário na ocasião – foram vaiados ao entrarem na quadra vestidos de enfermeiras. Mas depois se tornaram populares. Segundo ativistas locais, o que também deu visibilidade aos LGBT locais foi o bloco de carnaval “As Marias”. Mas a cidade abriga uma diversidade sexual que vai além do carnaval e dos jogos gays: nela vivem lésbicas ticuna, como Josiane, que vive próximo a Benjamin Constant com sua parceira e divide a responsabilidade parental com seu ex-marido. Existe também Silvana, uma travesti que vive com seu marido e trabalha como professor de matemática. Na escola, mães, pais e alunos a tratam como homem, mas na rua eles a cumprimentam como mulher.
A pesquisa de Manuela Picq em torno das expressões LGBT em Benjamim Constant mereceu análise especial da pesquisadora em um capítulo de seu novo livro LGBTQ Politics and International Relations Theory, coletânea organizada juntamente com Markus Thiel a ser lançada em 2015 pela editora Routledge.
Em seu estudo, a pesquisadora contesta duas premissas: a percepção da Amazônia como isolada e a suposição de que identidades sexuais diversas sejam basicamente um produto da Modernidade ocidental.
“A Amazônia tende a ser compreendida como um Éden apolítico, habitado por pessoas historicamente isoladas que resistem às forças internacionais”, afirmou, fazendo referência ao livro Editing Eden (Nebraska University Press, 2010), de Frank Hutchins e Patrick C. Wilson.
Estudos atuais do campo das Relações Internacionais ignoram a Amazônia como locus irrelevante para a modernidade política do Estado.
“Não foi a modernidade sexual que alcançou a Amazônia. Ela sempre esteve presente nas periferias políticas onde há a ausência daquele Estado-Nação coercitivo à heterossexualidade e que codifica a sexualidade de seus cidadãos. Assim, quanto maior a ausência do estado, menos códigos e mais flexibilidade”, defendeu Manuela Picq.
A celebração da diversidade sexual existente hoje na Amazônia é resultado do processo de consolidação de direitos homossexuais observado na América Latina. A região tem ocupado um papel importante na cena política global LGBT: na última década, muitos países adotaram legislações progressistas que expandiram os direitos civis, desde a legalização da troca de sexo nos documentos de identidade no Equador até a aprovação do casamento igualitário na Argentina e no Uruguai e o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil.
As políticas LGBT na Amazônia estão inevitavelmente inscritas neste quadro geral, são manifestações locais da política nacional e internacional, e a diversidade das expressões sexuais no local ganhou força e visibilidade através da globalização do discurso dos direitos humanos e das agendas LGBT. Mas, segundo Manuela Picq, apesar de essas demandas refletirem normas internacionais, elas são também intrinsecamente locais.
“Não há nada de estrangeiro na diversidade sexual da Amazônia, mesmo quando ela invoca a legitimidade de normas internacionais. A diversidade sexual da região não é um fenômeno novo nem uma importação global, ela antecede o conceito LGBT internacional. O que o arcabouço global permite é uma conceitualização política específica e um reconhecimento de direitos civis relativos às identidades homossexuais. A primeira Parada Gay de Benjamin Constant invoca o discurso internacional dos direitos para integrar as identidades sexuais dissidentes locais a uma agenda política, expandindo assim os direitos de seus cidadãos LGBT e facilitando suas alternativas de saída do armário. Ela utiliza o discurso global para otimizar as mudanças locais, mas não cria novas sexualidades. As múltiplas sexualidades existentes na Amazônia já estavam lá antes da globalização dos direitos LGBT. O que faltava era a capacidade de quem está de fora perceber isto”, concluiu a pesquisadora.
Para ela, as expressões LGBT na Amazônia contribuem para compreender o lugar como um locus relevante para se pensar formas alternativas àquilo que o olhar etnocêntrico entende como internacional.