Em “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality”, de 1984, a antropóloga norte-america Gayle Rubin apontou como os conflitos envolvendo valores e condutas sexuais no final do século XX guardavam semelhanças com as guerras religiosas de séculos anteriores. No século atual, o cenário não parece se distanciar daquele sugerido por Rubin, especialmente quando o fortalecimento social e político de setores cristãos dogmáticos é cada vez mais notável no horizonte brasileiro, através de uma oposição persistente contra iniciativas de promoção da diversidade sexual.
No livro “As novas guerras sexuais: diferença, poder religiosos e identidade LGBT no Brasil” (Garamond, 2013), os antropólogos Marcelo Natividade (USP) e Leandro de Oliveira (URCA) descrevem os mecanismos, interesses e discursos de que se valem setores conservadores religiosos para dificultar o avanço de direitos liberdades no campo do gênero e da sexualidade. Eles destacam como noções de perigo e contaminação associadas a indivíduos e práticas que não se enquadram nas normas hegemônicas são exploradas por autores conservadores de forma a alimentar pânicos morais. Assim, é comum ouvir ataques às pessoas LGBT, acusando-as de “anormais”, associando-as à pedofilia e ao abuso de menores, à disseminação do HIV/Aids e à desestruturação da família– resgatando fantasmas vitorianosantigos, do século XIX,como a “imoralidade” e a “degenerescência”.
Nesse cenário, tais setores têm crescentemente ocupado espaços de poder, impedindo a viabilização de políticas públicas e legislações para a garantia e promoção de direitos da população LGBT. Conforme destacam Marcelo Natividade e Leandro de Oliveira, eles inclusive fazem uso de linguagem científica em uma espécie de “sexologia religiosa”,sendo as iniciativas da chamada “cura gay” exemplos desse entrelaçamento entre religião, política e ciência.
Segundo os autores do livro, tal ofensiva está ligada a um processo de “crescente visibilidade LGBT e às modestas conquistas políticas obtidas por esta população junto ao Estado nos últimos anos, nas instâncias do Executivo e, especialmente, do Judiciário”.
O horizonte de guerras sexuais que intitula a obra, no entanto, é o mesmo em que experiências acolhedoras se desenvolvem. Na entrevista a seguir, os pesquisadores chamam também a atenção para um interessante fenômeno de reinvenção das tradições religiosas que, se não apaga os ataques e radicalizações, ao menos amplia as possibilidades de acolhimento de indivíduos LGBT em meio a homofobia predominante: as igrejas inclusivas.
“Elas constituem reivindicações por liberdade religiosa, de gays e lésbicas – pessoas que efetivamente ocupam os bancos das igrejas. Durante muitos anos, esses fiéis ocultaram suas experiências e identidades, temendo as sanções institucionais que incidem sobre quem desafia as normas da congregação. Mas essas pessoas agora ganharam visibilidade na esfera pública – elas reivindicam não apenas o direito de serem gays, lésbicas, travestis e transexuais, mas tambémde serem cristãos”, afirma Marcelo Natividade.
Novos conservadorismos
A ofensiva de setores religiosos contra a diversidade sexual não é inédita. Nos EUA, o movimento da Moral Majority nos anos 1970-1980 é um exemplo de organização política cristã que se posicionava contra, entre outras questões, o reconhecimento do desejo e das uniões gays. No Brasil, durante a Constituinte de 1988, setores conservadores pressionaram para que a expressão “orientação sexual” não fosse incluída no texto que tratava sobre discriminações. O que as novas guerras sexuais têm de semelhança e diferença a movimentos similares do passado?
Marcelo Natividade: O desejo de manutenção de certos privilégios sociais por alguns atores nessa cena é uma das semelhanças. Não é novidade que grupos religiosos atuam no Brasil e em outros contextos de modo a obstruir a plena cidadania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais através da rejeição e militância contra o casamento igualitário, a adoção de crianças por casais homossexuais, a expressão pública do afeto. Já na Constituinte de 1988, segmentos religiosos atuaram no sentido de assegurar que o termo orientação sexual não fosse incluído no texto da Constituição e assim a homofobia não fosse criminalizada como o racismo, a xenofobia e o preconceito de gênero. Apesar da diversidade de correntes no cristianismo, é digno de nota que – quando o assunto é homossexualidade – sejam muito mais evidentes os posicionamentos de repúdio da diferença.
Nesse contexto, os privilégios que detém as hegemonias sexuais são justificados por meio do cultivo e difusão de representações da homossexualidade que realçam estigmas e reforçam percepções negativas. Os discursos de certas lideranças religiosas constroem homossexuais como pessoas perigosas e ‘em perigo’, que demandam controle, correção e até mesmo “cura”. Mas me chama muita atenção a porção da não religião, nos argumentos sustentados por religiosos. Dito de outro modo, as razões para a não aprovação de legislações que protejam pessoas LGBT nada têm de religiosas, mas são expressões de pânicos morais, de exageros, de exaltações da norma e de reforço de estereótipos que pretendem reforçar desigualdades sociais entre heterossexuais e homossexuais. Certas lideranças religiosas proclamam que as sexualidades não heterossexuais vivem a espalhar AIDS, a reproduzir abusos e violência sexual. Argumentam que avanços da cidadania LGBT insuflariam a violência contra heterossexuais, o que chamam de “heterofobia”. É por meio de uma virulenta militância para o reforço desses estereótipos que grupos conservadores justificam a recusa de direitos e impactam a construção da igualdade e da democracia, no caso das pessoas LGBT.
Gayle Rubin trata dessas desigualdades ao formular a noção de injustiça erótica. Essas guerras têm como pano de fundo reflexões profundas sobre tais desigualdades e pressões políticas para a ampliação de idiomas e instrumentos de justiça social. Elas dramatizam disputas pela significação da homossexualidade e por questionamento de opressões que eram antes naturalizadas. Práticas culturais até então aceitas, começam a ser construídas como inaceitáveis, problematizadas, questionadas, denunciadas e tornadas matéria de ampla discussão pública.
É nesse cenário cultural de construção da homofobia como uma categoria significativa, um problema social, que as desigualdades e preconceito por orientação sexual recebem atenção do Estado e ensejam o engajamento de segmentos da sociedade civil em luta por formas de regulação e proteção. Mas é interessante observar que novos fatos e eventos, levam a redefinições de posições e novos alinhamentos. Evidentemente, os discursos do Papa Francisco têm reverberado de modo relativamente positivo e têm sido tomado por alguns segmentos da militância como possíveis sinais de abertura para a diversidade, apesar das estruturas de longa duração que sustentam a reprovação da homossexualidade. A Igreja Presbiteriana norte-americana aprovou o casamento gay e há outros movimentos em curso. Há décadas outras igrejas de perfil histórico discutem a ordenação de pastores homossexuais. Tudo isso sinaliza como posições são instáveis e fruto de contextos e situações políticas específicas.
Leandro de Olveira: Parece-me interessante lembrar que a noção de "Guerras Sexuais" é uma metáfora, que pegamos emprestada dofamoso artigo de Gayle Rubin, "Pensando o Sexo", que Marcelo citou. No mundo contemporâneo, as identidades sexuais se pluralizam do mesmo modo que as identidades étnicas. Esta pluralização, em si, não tem nada de ruim – supondo que você acredite que a pluralidade é algo bom, ou que você seja insensível a ela, ou pelo menos que o diferente aceite ocupar uma posição de inferioridade e se mantenha ‘no seu devido lugar’. O conflito ocorre quando porta-vozes de certos setores sociais se sentem ameaçados pela mera existência do diferente, por sua proximidade e visibilidade. Esse sentimento de alarme parece ser maior quando existe um temor de que o outro possa seduzir, recrutar, converter, contagiar – leia-se, transformar pelo contato as ditas ‘pessoas normais’ em algo distinto daquilo que elas supostamente deveriam ser.
Nas guerras sexuais do século XIX, os fantasmas eram a “imoralidade” e a “degenerescência”, que ameaçavam contaminar física e moralmente a burguesia e a população em geral. Entre os anos 1970-1980, assistimos a um recrudescimento de conservadorismos que respondiam à pluralização de estilos de vida representadas pela contracultura e os movimentos feminista e homossexual. Hoje (no Brasil, em todo caso), é provável que estejamos ainda lidando com reações à crescente visibilidade LGBT e às modestas conquistas políticas obtidas por esta população junto ao Estado nos últimos anos, nas instâncias do Executivo e, especialmente, do Judiciário.
Tornou-se rotina assistir a ações de parlamentares da bancada religiosa atuando para impedir a promoção de direitos da população LGBT no Brasil. Por que a predileção por essa população? Por que, no final das contas, desejos e condutas sexuais, bem como o marcador social de gênero, são mobilizados com tamanha intensidade?
Leandro de Oliveira: Essa é uma pergunta bem interessante. Em parte, alguns acidentes históricos podem ter ajudado a configurar essa predileção. Retomando um pouco o tema da pergunta anterior, convém sublinhar que a Assembleia Nacional Constituinte ocorreu em um período no qual os discursos sobre a epidemia de HIV ainda associavam homossexualidade e AIDS (representando os homossexuais como "culpados" pela difusão de uma doença tida como letal e incurável, capazes inclusive de transmiti-la por via não-sexual para "vítimas inocentes", como as crianças hemofílicas). Não me parece que essa conjuntura, por si só, tenha sido um fator que explica porque, a despeito das pressões exercidas pelo movimento homossexual na época, a proteção à discriminação por orientação sexual deixou de ser incluída no texto constitucional. Mas não deixa de ser curioso que o mesmo texto tenha contemplado formas de reconhecimento a mulheres, populações negras e indígenas (extremamente significativas, enquanto conquistas simbólicas e políticas, para os respectivos movimentos sociais). Em um cenário em que medos coletivos eram insuflados e manipulados por setores conservadores para tentar obstruir processos de mudança, é possível que os homossexuais tenham servido como um bode expiatório disponível e particularmente conveniente, um símbolo para diferenças "indesejáveis" em nossa nova ordem política democrática e pluralista.
Dez anos depois, com as paradas do orgulho, temos uma intensificação da visibilidade daquelas pessoas hoje referidas pela sigla “LGBT”. Pessoas que desafiam as convenções de gênero – travestis, transexuais e que transitem entre masculino e feminino – podem ser particularmente perturbadoras, sob perspectivas que se vêem como ‘conservadoras’, devido à visibilidade da diferença que está inscrita em seus corpos, roupas e gestos. Claro, convém lembrar que este dito conservadorismo, pra nós, não implica preservação ou resgate do passado, mas uma resistência ativa a mudanças, que recorre com frequência a imagens de um passado imaginário (por exemplo, ideais sobre a ‘família tradicional’). A diversidade (nas formas de expressão de gênero e nos gostos sexuais, assim como nas identidades constituídas a partir destes jeitos e gostos) acaba sendo retratada como a grande ameaça a esse passado idílico. Penso que, em parte, o incômodo com as pessoas LGBT tenha relação com uma representação sobre sua proximidade e relativa ‘onipresença’ no mundo contemporâneo, que a visibilidade massiva das últimas duas décadas teve o poder de realçar.
Quem imagina as pessoas LGBT como seres ‘distantes’ de modo geral não se preocupa muito com eles – a não ser, talvez, que se descubra subitamente vinculado a algum. Está se falando, evidentemente, de certas fantasias culturais (formas de construir e imaginar o outro, que confirmam a imagem que tenho de mim mesmo). Não se trata aqui de um ‘outro’ considerado distante ou isolado em territórios espaciais específicos. Ele aparece em telenovelas e noticiários, pode ser meu vizinho, pode ser o filho de um vizinho, o colega de escola ou professor ou amigo de um de meus filhos, etc. Ele não está apenas nas ruas e na mídia – está nas igrejas, nos estabelecimentos de ensino, nos estabelecimentos comerciais. Talvez, mesmo, esteja infiltrado no Estado (este outro representante do Mal no mundo) e nos meios de comunicação de massa, conspirando para minar e destruir a moral e os bons costumes. Este sentido de onipresença, se combinado com a crença cultural de que estes gostos sexuais podem ser particularmente sedutores e infectantes (quiçá capazes de contagiar minha casa, meus filhos ou minha congregação), fornece ingredientes particularmente explosivos para o embate.
Marcelo Natividade: Penso que o incômodo é com todas as expressões das identidades e sexualidades que se encontram às margens da família reprodutora e dos modelos de gênero hegemônicos. As putas e os homossexuais são os principais alvos de uma campanha moralista que tem sido reinventada e alimentada por tais segmentos, que se percebem ameaçados nas suas fantasias de identidade de que seus valores e visões de mundo são universais. Contudo, no rol dos pecados sexuais, é evidente que as pessoas LGBT são preferencialmente objeto de discursos e formas de controle, afinal, não se criam grupos de ex-masturbadores nem programas governamentais dedicados a resgatar pessoas do vício da masturbação ou das experiências extraconjugais, embora essas condutas também sejam objeto das pastorais sexuais. Também não se conjectura que prostitutas ou “viciados sexuais” tenham um plano maligno de contaminação da humanidade. Mas isso acontece com os homossexuais, a partir da percepção de que eles pretendem homossexualizar a sociedade e obrigar pessoas heterossexuais a serem homossexuais. Esse é um excelente exemplo do pânico moral que já mencionamos, que opera pelo exagero e deturpação das legítimas reivindicações por direitos civis.
Talvez essas virulentas reações morais de desqualificação configurem um certo tipo negativo de resposta das igrejas à epidemia de HIV/ AIDS, uma vez que elas reciclam todo o imaginário da epidemia dos anos 1980, especialmente, insuflando discursos de medo que ensejam a proteção das famílias, das crianças e das ditas pessoas comuns, como observou Leandro. Elas reforçam as divisões entre nós e eles, e alimentam posturas de hostilidade que podem amparar certas formas de violência mais explícitas, incluindo a violência física. A homossexualidade é construída como a alteridade, por excelência, contaminadora e que exige retração da esfera pública. É curioso que a agenda da militância conservadora contra o casamento igualitário acabe por se encontrar com a militância contra as novas famílias e contra a doação de sangue pelos homossexuais, todas amparadas na percepção de LGBTs como sexualidades ameaçadoras, que não devem ter respaldo e proteção do Estado e, em última instância, não devem nem mesmo existir. A recusa dos direitos civis dos homossexuais é uma recusa, em última instância, de sua existência.
Acho que esses argumentos têm impactado até mesmo as políticas públicas, em episódios – como já foi dito – da proibição do kit-anti-homofobia pelo Governo ou do veto das campanhas do Ministério da Saúde de prevenção ao HIV/AIDS que apresentavam casais homoafetivos, no Carnaval de 2012. O medo da contaminação pela homossexualidade é a força motora do temor de “fazer propaganda da diversidade sexual”, sustentada por agentes da Governança Pública, em razão das pressões de segmentos religiosos. O grande desafio é que tudo o que discutimos impacta o modo como pessoas LGBT têm acesso a serviços e benefícios dos sistemas de saúde, de segurança, de educação e outros. Tenho observado de perto como o campo da política pública é impactado por adesões e pertenças religiosas de técnicos, gestores e outros agentes, que acabam por intervir ou mesmo extinguir ações que beneficiam populações não heterossexuais.
Vocês analisam no livro o que chamam de novos conservadorismos e discursos fundamentalistas. Um aspecto que tem chamado a atenção é o uso da ciência por grupos religiosos para legitimar suas visões de mundo, do que é exemplo o projeto de lei da “cura gay”, que propunha terapia para converter homossexuais em heterossexuais baseada nos saberes psi. Como vocês avaliam tal interface entre campos de saber distintos, que tem como palco privilegiado espaços políticos institucionais como o Congresso? Estamos diante de mais de um fundamentalismo, isto é, não apenas de natureza religiosa, mas também de teor científico e político?
Marcelo Natividade:Acho importante deixar claro que entendemos tanto a religião como a laicidade como construções sociais. Desse modo, as líquidas e móveis fronteiras entre o que é laico e religioso em nossa sociedade indicam apenas a ficção sociológica de que tais esferas sociais são apartadas. Nesse sentido, o surgimento de uma sexologia religiosa, como discutimos no livro, exemplifica como tais fronteiras são atualizadas e as ambições civilizatórias de tais grupos religiosos, empenhados em colocar em prática pastorais sexuais e certas formas de gestão da vida íntima. Semelhante aos sexólogos do início do século passado, eles instituem mecanismos de correção que exaltam a heterossexualidade como a única sexualidade legítima e saudável e constroem a homossexualidade como patologia. Esses novos militantes da pureza sexual se apropriam de certas teorias do campo psiem relativo desuso, ultrapassadas, que operam por uma lógica patologizante, procurando definir o bom e o mau sexo. Suas representações entram em choque com o conhecimento científico contemporâneo que não compreende a homossexualidade como doença, mas assinala que condutas e identidades sexuais são complexas e fruto de experiências e interações.
Com efeito, tanto a homossexualidade, como a bissexualidade e a heterossexualidade são construções sociais, em um leque de identidades sexuais possíveis que tem se pluralizado, a partir do surgimento de novos sujeitos de direitos. A militância religiosa, contudo, insiste em que a heterossexualidade é natural, enquanto a diversidade sexual é fruto de traumas, abusos, portanto, patológica. Observamos uma verdadeira explosão discursiva que cultiva uma obsessão com a suposta gênese da homossexualidade. Mas se trata de uma “psicologia” a serviço da religião, como discutiu o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, instituindo didáticas para uma “vida cristã”. Com efeito, essa didática defende que se a homossexualidade é um comportamento apreendido, pode ser passível de cura e transformação. A cura apregoada nada mais faz do que instituir pedagogias do gênero, alguns modos de tornar certos homens mais masculinos e certas mulheres mais femininas.
Certamente, um dos alvos desse discurso é a transformação de travestis e transexuais em “ex-travestis” e “ex-transexuais”. Existem hoje no Brasil pequenos ministérios empenhados em converter essa população e reforçar todo tipo de preconceito contra pessoas transgêneros. Eles recomendam e instituem mecanismos de controle que passam pela retirada de próteses e silicones e alimentam as fantasias de identidade de que todas as pessoas devem ser heterossexuais e adequar-se aos modelos de gênero dominantes. Contudo, não devemos achar que esses discursos estão restritos a ambientes religiosos, mas entender que ele possui um alcance capilar. Basta lembrar o modo como é recorrente a apresentação de projetos de lei, tanto em nível federal como nos estados e municípios, que pretendem criar programas governamentais de cura gay.
A outra face dessa militância religiosa é o esforço para obstruir ações governamentais que procuram desestabilizar certas formas de opressão nos sistemas de educação, de segurança pública, de saúde e outros serviços sociais. Nesse momento, essa discussão é muito oportuna, pois setores religiosos vêm atuando de modo a obstruir políticas públicas no campo da educação empenhadas em discutir gênero e orientação sexual nas escolas como uma forma de combate à violência contra a mulher e a homofobia. Esse ativismo religioso e conservador, amparado na palavra de ordem “gênero não”, como foi noticiado na mídia nos últimos dias, tem como pressuposto que as discussões sobre igualdade, liberdade e equidade não devem ser feitas na escola e muito menos na sociedade brasileira. Esse é um exemplo vivo sobre como as guerras que descrevemos se atualizam o tempo todo na esfera pública e indicam os enlaces entre ciência, religião e política.
Leandro de Oliveira: Bem, a separação entre ciência, política e religião não é um fenômeno universal, mas uma construção artificial do pensamento moderno. Uma distinção artificial que, como diz Bruno Latour (em “Jamais Fomos Modernos”), faz coisas híbridas proliferarem por toda a parte. Então, eu não acho nada especialmente espantoso no fato que se produzam discursos híbridos que misturem ciência, política e religião. As próprias igrejas inclusivas produzem certas misturas entre religião e política, talvez mesmo entre religião e ciência (estou pensando no fato de existirem lideranças inclusivas com formação em áreas como psicologia e que consomem literatura acadêmica sobre temas ligados a sexualidade). Um aspecto que chama nossa atenção, nas controvérsias públicas sobre a cura gay, é o fato de que a “ciência” que comparece nessa encruzilhada é desprovida de qualquer respaldo nos consensos correntes da comunidade científica – creio que Marcelo já sinalizou para este ponto.
Mas há outra coisa: no caso do projeto de lei da cura gay havia uma tentativa explícita de controle do campo científico-terapêutico a partir de uma ação situada no campo jurídico-político (a qual pode, por sua vez, ter ressonâncias com valores religiosos). O caso, no fundo, é bem simples: médicos e psicólogos só podem ‘tratar’ algo que seja definido como “doença”; quem hoje detém autoridade pra discutir e definir o que é ou não uma “doença” é a comunidade científica; um projeto de lei que vise implementar a “cura” gay tenta usurpar esta autoridade. Aqui, não se trata simplesmente de hibridização, mas de uma tentativa de encompassar um campo por outro, de subordinar um destes campos a outros.
São notórias as articulações entre setores evangélicos e setores católicos e espíritas contrários aos direitos sexuais. Como vocês avaliam esse “ecumenismo” no contexto dos novos conservadorismos e discursos fundamentalistas apontados no livro?
Leandro de Oliveira:Creio que daria pra resumir minha visão sobre este tema em uma frase: em situações de confronto político, ‘o inimigo de meu inimigo é meu amigo’. Enfrentamentos deste tipo podem gerar alianças que a princípio pareceriam improváveis. Então, a aliança em si faz parte dos jogos da política, e não tem nada de surpreendente. O que é, talvez, um pouco surpreendente é o idioma mais ou menos consensual por meio do qual essas articulações são formuladas. Com freqüência, elas são justificadas como em defesa da ‘família’ ou de tradições e valores que seriam ‘comuns’ a todos. As teorias sobre os pânicos morais, mencionadas por Marcelo há pouco, oferecem algumas pistas pra gente refletir sobre este tipo de consenso. Tudo se passa como se a variação sexual servisse enquanto um símbolo que focaliza múltiplas ansiedades coletivas diante de mudanças culturais; um alvo político que suscita coalizões e propicia a superação de dissensos entre facções na esfera pública.
Nós refletimos um pouco sobre este tipo de processo no livro. Os homossexuais não são meramente vistos como indivíduos com gostos pessoais moralmente controversos. Eles são pessoas supostamente geradas em famílias desestruturadas e investidas do poder de desestruturar as famílias alheias; responsabilizados pela difusão da AIDS e da pedofilia; acusados de tentar ‘converter’ as gerações mais jovens em homossexuais (basta lembrar as controvérsias em torno do kit anti-homofobia), etc. A construção de um inimigo comum acaba sendo uma estratégia poderosa e eficiente neste processo de formação de coalizões políticas.
Que tipo de impacto tais discursos podem exercer na vida pessoal e familiar de indivíduos ligados a grupos religiosos fundamentalistas? Qual o papel de pastores na mediação de tais discursos e como isso afeta as relações pessoais no âmbito privado?
Marcelo Natividade:A experiência religiosa de pessoas LGBT é marcada por estigmas e múltiplas perspectivas de exclusão nas congregações cristãs em que boa parte delas foi socializada, mas também existem possibilidades de negociação, é claro. Chamou-nos atenção o modo como o desejo de autoextermínio diante da percepção de si como objeto do ódio de Deus pode ser uma recorrência sociológica. Nos bancos das igrejas, as ameaças de danação eterna parecem exercer forte impacto sobre a subjetividade, instaurando conflitos dilacerantes para os quais a morte parece, em um dado momento das biografias, a solução. Nunca perguntamos especificamente sobre essa temática, mas ela aparecia espontaneamente, em alguns relatos, materializadas em declarações de intenções suicidas ou de práticas nesse sentido. Por outro lado, discriminação na família e discriminação no ambiente religioso se interseccionam em algumas narrativas, pois as redes religiosas e familiares se sobrepõem no cultivo de certas formas de hostilidade da diversidade sexual. Nesse sentido, a socialização em contextos pentecostais se revelou o mais dramático, do ponto de vista das tensões vivenciadas.
Mas existem formas de punição plurais, quando a homossexualidade do fiel é revelada. Quando esse fiel encontra uma igreja inclusiva, um ambiente social que prescreve a conciliação entre cristianismo e homossexualidade, a experiência é de ressignificação dos dogmas da igreja de origem. As lideranças inclusivas desempenham um importante papel na oferta de relatos compartilhados do amor de Deus pelos homossexuais, sem exigência de mudança ou abstinência sexual. Em outras palavras, esses líderes exercem uma pedagogia da aceitação, que leva a construção de imagens positivas de si e a remoção de estigmas, uma verdadeira descoberta de aprendizado de ser evangélico e ser homossexual, algo anteriormente inimaginável. É claro que essa é uma experiência que envolve conflitos, ambivalências e mediações entre as igrejas de origem e a nova religião.
É muito interessante, por exemplo, como categorias como cura, pecadoou demônio são apropriadas, em alguns contextos, e investidas de novos significados e sentidos. Por exemplo, quando lideranças ou fiéis, gays e lésbicas, inclusivos, compreendem a discriminação por orientação sexual sofrida na família como fruto da interferência do demônio, sendo o diabo o autor de gestos e atitudes homofóbicas. Ou quando se emprega a categoria cura, não da homossexualidade, mas das feridas emocionais deixadas pelo preconceito e rejeição familiar. Ou quando se busca deslocar o pecado da homossexualidade para experiências sexuais que prescindem do consentimento (a violência sexual seria pecado) ou para todas as formas de relacionamento afetivo-sexuais que contrariam o modelo do amor monogâmico cristão. Em todo caso, estamos diante de invenções de novos vínculos entre religião e sexualidade que certamente o livro coloca em discussão.
Igrejas inclusivas
O que o surgimento de igrejas cristãs inclusivas, que adotam uma linguagem mais acolhedora em relação aos homossexuais, representa neste cenário “bélico” que o título do livro sugere?
Marcelo Natividade:Eu penso que elas representam brechas, fissuras, tentativas de tomada do poder, protagonizadas por pessoas LGBT, a exemplo do que ocorreu com as mulheres e a emergência das teologias feministas. Elas constituem reivindicações por liberdade religiosa, de gays e lésbicas – pessoas que efetivamente ocupam os bancos das igrejas. Durante muitos anos, esses fiéis ocultaram suas experiências e identidades, temendo as sanções institucionais que incidem sobre quem desafia as normas da congregação. Mas, essas pessoas agora ganharam visibilidade na esfera pública – elas reivindicam não apenas o direito de serem gays, lésbicas, travestis e transexuais, mas tambémde serem cristãos. É claro que este é um movimento político minoritário, em meio a um cenário religioso em que a homofobia predomina. Apesar disso, a atuação destas pessoas pode ser vista como agência e protagonismo daqueles que se encontram à margem da religião, em luta por reconhecimento.
A emergência das igrejas inclusivas evidencia como tradições religiosas podem ser reinventadas. Nesse sentido, é importante compreender igrejas não como instituições estáticas, sem movimento: elas são redes e articulações nas quais existem dissonâncias, polissemias, disputas. Então, igrejas inclusivas são iniciativas dissidentes em relação às hegemonias doutrinárias, cultivadas pelas religiões cristãs, especialmente, àquelas articuladas ao interdito da homossexualidade e à rejeição das identidades LGBT. Elas encenam certos modos contemporâneos de construção da religião em que se concilia cristianismo e diversidade sexual. Representam também inovações típicas das dinâmicas de criação e diversificação do protestantismo, que se amparam na livre interpretação do texto bíblico, por exemplo, proclamando que a homossexualidade é bênção divina e promovendo leituras e interpretações gays e lésbicas da Palavra. Ao invés de sustentar e propagar discursos de repúdio, como fazem algumas correntes religiosas católicas ou evangélicas, nas igrejas inclusivas não é preciso deixar de ser homossexual. Uma pessoa gay, lésbica, travesti ou transexual pode se tornar pastor ou pastora, presbítero ou presbítera, diácono ou diaconisa, enfim, exercer uma vida eclesial.
As experiências de rejeição nas religiões levam a rupturas e à busca por soluções não apenas individuais, mas coletivas, institucionais, motivando a criação de espaços específicos. Nos Estados Unidos, existem igrejas gays desde 1968, mas no Brasil, o movimento tem pouco mais de uma década de existência, apesar das anteriores iniciativas isoladas. Esses grupos têm se dedicado a produzir falas positivas sobre a diversidade sexual, legitimando a experiência religiosa dessas pessoas, amparando-se nos ideias de igualdade, autonomia e liberdade – que constituem valores laicos de nossa sociedade contemporânea. Certamente, seus discursos produzem deslocamentos importantes no cenário religioso, especialmente, ao reposicionar a homossexualidade no campo das sexualidades legítimas, recorrendo a representações naturalizantes sobre a orientação sexual. As igrejas inclusivas nos ajudam a descongelar imagens do religioso como essencialmente homofóbico (ou conservador) e perceber os muitos vínculos entre ativismo, política e religião. Ilustram a pluralidade das trajetórias, movimentos e sentidos da religião no mundo contemporâneo. Também alargam nossa visão, demonstrando que não são apenas as religiões de matriz africana que acolhem a diversidade sexual no Brasil, ao conceber certos lugares sociais para gays e lésbicas no culto.
Apesar da diversidade interna e das nuances discursivas, grupos inclusivos tomam como parte de sua missão religiosa desenvolver projetos e atividades de apoio emocional e assistencial às pessoas soropositivas e de prevenção da AIDS, além de atuar em defesa do casamento igualitário e do direito à homoparentalidade. Também é comum o incentivo e amparo para que fiéis atravessem o processo transexualizador. Em suma, a agenda religiosa e a agenda da ampliação dos direitos civis das populações homossexuais são entrelaçadas.
No livro, vocês observam que alguns grupos inclusivos empreendem esforços no sentido de definir uma homossexualidade santificada (cristã, monogâmica e discreta). Outros grupos estão comprometidos com um discurso mais afastado das normas hegemônicas de regulação da sexualidade. Até que ponto a inclusão é referendada no paradigma dos direitos humanos?
Leandro de Oliveira: Bem, primeiramente, acho que a gente precisa ter em mente que os “direitos humanos” não são um todo homogêneo, mas um campo de disputas. Por exemplo, pode haver certa tensão entre, de um lado, o projeto universalizante intrínseco aos discursos sobre direitos humanos e, de outro lado, a incorporação dos direitos culturais, o direito à diferença, como parte deste mesmo projeto. Do mesmo modo, pode haver divergências na definição do que deve ou não ser compreendido como inerente ao “humano” e passível de proteção. As igrejas inclusivas possuem vertentes distintas – algumas com um estilo de culto mais próximo do protestantismo histórico, outras que incorporam elementos da fé e do ritual pentecostais. No campo que realizamos, a gente observou inicialmente, nessas igrejas de estilo protestante histórico, uma maior afinidade com um discurso mais universalista sobre os direitos sexuais na esfera pública. Este é, sem dúvida, o caso da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM).
As igrejas inclusivas mais pentecostalizadas pareciam estar preocupadas com outro tipo de coisa, tocantes mais estritamente ao bem estar espiritual dos fieis, à restauração de um sentimento de santidade entre seus integrantes, à cura do sofrimento e das feridas espirituais, a projetos de felicidade envolvendo a parceria conjugal monogâmica e a reestruturação dos laços com a família de origem. E menos preocupadas com a militância pelos direitos sexuais na esfera pública. Então, olhando de relance, poderia parecer que as primeiras estariam em sintonia com a defesa um projeto de direitos humanos universais, enquanto as últimas estariam simplesmente exercendo o direito cultural de existir na sua diferença. Contudo, à medida que ganhamos mais intimidade com esses mundos sociais, percebemos que havia processos mais complexos em jogo.
Os membros de uma igreja inclusiva carregam, com frequência, uma trajetória de passagem por diversos outros grupos religiosos, podendo inclusive migrar de uma igreja inclusiva para outra igreja inclusiva, ou frequentar concomitantemente uma igreja inclusiva e igrejas mais convencionais. Esta circulação de fiéis, por si só, torna cada grupo um espaço de negociação e produção de mediações entre perspectivas e visões de mundo bastante plurais. Além disto, constatamos, especialmente em comunidades que expressam um ethos marcadamente pentecostal entre lideranças e membros (como a Igreja Cristã Contemporânea e a Comunidade Cristã Nova Esperança, que exercem um particular apelo sobre pessoas oriundas de setores economicamente desprivilegiados), a existência de formas capilares de atuação religioso-política, com extensa penetração.
Os integrantes destes grupos se apropriam criativamente de categorias dos discursos de defesa dos direitos humanos. Isto se dá, por exemplo, através de discursos que identificam o “preconceito” como a causa das feridas espirituais e que promovem a “cura da homofobia”. Por meio da linguagem religiosa e de rituais religiosos, estes grupos fazem circular um discurso sobre direitos sexuais com um sotaque local particular, mas bastante afinado com a agenda global de defesa das minorias sexuais. Justamente por ser vertido nesse idioma religioso, esse discurso inclusivo pode ter uma eficácia e alcance bastante amplo, penetrando em espaços que talvez fossem menos permeáveis às estratégias discursivas mais convencionais do movimento LGBT.