Ao longo dos últimos anos, a situação das mulheres brasileiras tem avançado em alguns indicadores. Entre 2000 e 2010, o número de mulheres no mercado formal de trabalho (com carteira de trabalho assinada) passou de 51,3% para 57,9%, ainda que, em comparação com o dos homens, permaneça menor (eles apresentam 59,2%). Também na educação, do total de 4,9 milhões de jovens entre 15 e 17 anos de idade que frequentam o ensino médio, 54,7% são mulheres e 45,3%, homens. Entretanto, avanços no mercado de trabalho e na educação não sinalizam uma melhora geral para a população feminina. No cruzamento de marcadores sociais de diferença como gênero, raça/cor e região encontram-se obstáculos significativos para avançar na condição de vida das mulheres brasileiras, conforme demonstra o estudo “Estatísticas de Gênero – Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010”, produzido pelo IBGE em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Diretoria de Políticas para Mulheres Rurais e Quilombolas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (DPMRQ/MDA).
O estudo indica uma situação de maior vulnerabilidade para mulheres pretas e pardas e residentes de regiões periféricas e afastadas dos grandes centros econômicos. Na própria área da educação, onde se auferem algumas melhorias, há uma discrepância em relação à taxa de analfabetismo. Apesar de o índice ter caído de forma mais intensa entre as pretas e pardas (36,2% entre 2000 e 2010), ainda é 2,3 vezes superior ao das mulheres brancas analfabetas. Quando se olha para as regiões, a taxa de mulheres analfabetas no Nordeste é três vezes superior à encontrada no Sudeste.
Dados como esses ilustram problemas estruturais do país, conforme observa a socióloga Lia Zanotta, do departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB). “A urbanização é um fator importante nesta dinâmica de desigualdade. As regiões econômicas mais consolidadas e centrais tendem a ter índices melhores. Em regiões mais rurais, há uma série de fatores que dificultam a melhoria de vida das mulheres”, observa Lia Zanotta.
Isso é notado, por exemplo, quando se olha para a taxa de fecundidade das mulheres. De acordo com o Ministério da Saúde, a taxa atual média é de 1,7 filhos por mulher no país, abaixo dos 2,1 considerado o mínimo para que a população permaneça crescendo. No entanto, conforme aponta o estudo do IBGE, a proporção de mulheres jovens com filhos cai de maneira desigual na cidade e no campo. Nas áreas urbanas, 11,1% das jovens de 15 a 19 anos tiveram ao menos um filho nascido vivo, enquanto 15,5% das mulheres do campo da mesma idade tiveram ao menos um filho. Na faixa dos 25 aos 29 anos, 57,9% das mulheres das cidades tiveram pelo menos um filho, ao passo que nas áreas rurais o número chega a 75,4%. Esse cenário é compreensível, observa o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE):
“As taxas de natalidade são tradicionalmente maiores nas áreas rurais. Ter filhos apresenta uma relação custo-benefício maior. No mundo inteiro é assim. A inserção das mulheres no mercado de trabalho é menor, elas se casam mais cedo. Além disso, as circunstâncias de vida favorecem. Ao contrário das cidades, onde o custo é alto, com creche, escola, cursos, brinquedos industrializados e uma vida em geral mais cara, no meio rural, a conciliação entre trabalho e moradia muitas vezes favorece a criação de filhos, que demandam menos investimento e gasto do que nas cidades”, observa José Eustáquio.
Opinião semelhante tem a demógrafa e pesquisadora da ENCE Angelita Carvalho, para quem “os papéis de gênero no meio rural são mais definidos e fixos do que na cidade, o que impacta nas condições em que elas vivem e interfere nas possibilidades de emancipação e domínio sobre suas trajetórias educacionais e reprodutivas”.
A cor da desigualdade
Nesse cenário de assimetrias, o componente raça/cor constitui um aspecto relevante. Basta olhar que, também em relação aos índices de mulheres com pelo menos um filho nascido vivo, as pretas/pardas apresentam números maiores: na faixa etária de 15 a 19 anos, a taxa daquelas com pelo menos um filho nascido vivo é de 14,1%; com as brancas, a taxa cai para 8,8%. Na faixa etária de 20 a 24 anos, a diferença é ainda maior (pretas/pardas com 31,9% e brancas 45,6%). Diferenças que persistem em todas as faixas etárias até os 44 anos e sinalizam a complexidade do cenário de vulnerabilidades em que as mulheres brasileiras estão inseridas.
Lia Zanotta destaca que a interseção desses marcadores é fundamental para a compreensão e análise da situação da mulher brasileira. “O cruzamento de aspectos como cor, raça, região e gênero demonstra que estamos diante de um quadro de desigualdades com muitos matizes, o que nos leva a refletir não apenas sobre os valores, representações e processos históricos que situam socialmente a mulher, mas também sobre as respostas que são construídas e implementadas para enfrentar as desigualdades”, observa.
A existência de uma mentalidade tradicional, que valoriza a figura da mulher mãe, assim como a história escravocrata, coexiste com dificuldades políticas e administrativas do próprio Estado brasileiro. Conforme lembra Lia Zanotta, em lugares mais afastados, há fragilidades significativas na implementação e oferta de políticas públicas. Assim, serviços de educação e saúde nem sempre alcançam plenamente as mulheres. É o caso das creches, abordado neste meio em matéria recente. O Censo de 2010 mostrou que apenas 23,5% das crianças brasileiras com até 3 anos frequentavam creche. Nas áreas rurais, apenas 6,3% das famílias tinham acesso à creche. Já de acordo com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, do total de 10 milhões de crianças em idade de creche apenas 18% estavam matriculadas em 2011. “Essas fragilidades e deficiências nas políticas públicas afetam mais aquelas mulheres que se encontram no cruzamento desses marcadores sociais de diferença”, aponta Lia Zanotta.
Também na área da saúde reprodutiva e sexual das mulheres, notam-se clivagens intra-gênero. O racismo, por exemplo, é amplamente evidenciado em instituições de saúde, conforme aponta o Ministério da Saúde. São as mulheres negras as maiores vítimas de mortalidade materna (60%) quando comparadas com as mulheres brancas (34%). O acompanhamento pré-natal também apresenta dados díspares: 56% das gestantes negras afirmam que realizaram menos consultas pré-natal do que as brancas. Mesmo cenário em relação à orientação sobre amamentação, que foi acessado por 78% das brancas enquanto 62% das negras conseguiram o serviço.
Saúde reprodutiva e saneamento
A distribuição de métodos contraceptivos, lembra Lia Zanotta, é outro gargalo, sobretudo em regiões mais afastadas. Planejada pelo governo federal, a política de planejamento familiar prevê que os métodos sejam distribuídos pelos municípios. Entretanto, neste percurso, nem sempre o planejado é executado. É comum que no nível local alguns gestores não repassem a contracepção baseados em concepções tradicionais ou discriminatórias, como por exemplo negar pílulas para mulheres jovens com poucos filhos. “Penso que no nível municipal, enfrentamos muitos obstáculos, pois me parecem menos abertos a trabalharem com uma noção consistente da natureza das desigualdades. Essa é uma leitura que faço e que expõe um cenário muito complexo, porque envolve a discussão sobre repactuação federativa, distribuição de recursos, modernização da relação entre as instituições e, naturalmente, a necessidade de consolidar o papel das administrações locais na luta pelos direitos das mulheres”, avalia Lia Zanotta.
No âmbito do saneamento, também são notadas maiores dificuldades para as mulheres negras e moradoras de regiões periféricas. De acordo com o estudo do IBGE, em 2010 28,3% dos domicílios chefiados por mulheres no país tinham saneamento inadequado – o que leva em conta acesso e abastecimento contínuo de água potável, tratamento do esgoto e acesso contínuo à coleta de lixo. No Norte, esses números chegam a 70%; no Nordeste, a 46,3%; e caem significativamente quando se chega ao Sudeste (12,2%) e Sul (24,2%). No âmbito dos domicílios rurais chefiados por mulheres negras, 22,1% das residências não tinham serviço adequado de saneamento, ao passo que 12,7% dos lares comandados por brancas não contavam com serviço apropriado de saneamento.
São diversos os dados que descrevem a situação das mulheres brasileiras e todos apontam um quadro em que, quanto mais circunscritas a determinadas interseções de marcadores sociais, maiores as fragilidades a que estão expostas. A célebre frase de que “não se nasce mulher, torna-se mulher” adquire contornos particulares diante de um país marcado por distinções de gênero, cor/raça e região. A se julgar pelos números também recentes do Instituto de Economia da UERJ deste ano – segundo os quais o rendimento médio da mulher preta e parda de Recife é R$ 1.093,43 e o da branca da mesma cidade é de 1.697,50, enquanto, no Rio de Janeiro, as brancas ganham em média R$ 2.472,13 e as negras, R$ 1.389,79 – ser mulher é um fenômeno de múltiplas faces e diferentes pesos. Por isso, conforme observa Lia Zanotta, a redução das desigualdades é um processo complexo, cujas respostas políticas devem estar atentas à intrincada teia de fatores e marcadores sociais.