‘Nascituro de’ é a qualificação que consta no lugar do nome na recente decisão em agravo do Tribunal de Justiça de São Paulo que reconheceu a ação ajuizada pelo feto. O objeto da ação é a garantia de assistência pré-natal ao feto, cuja genitora está recolhida na Cadeia Pública Feminina de São Bernardo do Campo.
‘Nascituro de’, que é uma expectativa de pessoa com expectativa de direitos, tornou-se o mais novo sujeito de direito [e vontade], com personalidade jurídica, capacidade processual e interesse de agir. O único contratempo é que ‘Nascituro de’ não nasceu, não tem nome, registro de nascimento, vida privada ou biografia.
Contudo, ser uma expectativa no Brasil vale mais que ser mulher, especialmente se estiver dentro do sistema prisional. Essa é a conclusão que se pode tirar deste caso. Quando o defensor público opta por ajuizar uma ação em nome do feto e não da gestante, ele acaba por evidenciar a triste e silenciosa realidade: o fato de que alguns seres humanos valem mais do que outros, mesmo que esses outros não tenham, ainda, nem nascido.
Talvez, se Sartre estivesse vivo poderia fazer uso desse caso em algum ponto da sua ontologia fenomenológica. Afinal, é uma situação concreta em que o ‘ser’, que é aquele que existe no mundo das relações humanas, é preterido pelo ‘nada’ e o ‘nada’, que é o que ‘não é’, é o fenômeno mais poderoso, para não dizer mais respeitado.
Essa ação, além de trazer à tona importantes discussões morais, contém equívocos técnico-jurídicos que merecem ser observados. O primeiro deles é ignorar os dispositivos legais sobre proteção à saúde, atendimento pré-natal e defesa do nascituro, que já existem e não retiram da mulher a condição de sujeito de direito. Um bom exemplo é o artigo 8º do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). O pré-natal é um direito reprodutivo da mulher. Inverter a ordem da titularidade do direito, da genitora para o feto, é um equivoco técnico com sérias conseqüências aos direitos das mulheres.
A decisão do agravo exemplifica uma confusão sobre a função jurisdicional. Ao criar novas hipóteses legais, porque não se trata de interpretação e supressão de lacunas, o desembargador amplia os efeitos contemplados nos dispositivos normativos e, com isso, atua como legislador positivo. Esse é o segundo problema técnico da decisão.
O fato é que não há consenso nem na ética, nem no direito, tampouco da biologia, sobre o que é vida humana. O acordo existe está previsto no artigo 2º do Código Civil: é o nascimento com vida que marca o início da personalidade; e ter personalidade jurídica, conforme disposto no direito brasileiro, é condição para entrar em juízo. Essa decisão transformar a mulher em reles meio para consecução de interesses de um ser que está por existir. Ao fazer de Simone Ferraz Coelho a incubadora de ‘Nascituro de’ o conceito mais elementar de dignidade humana, já previsto no século XVIII, é diretamente violado. Esse é o terceiro problema da decisão e da fundamentação da ação.
Salvaguardar os direitos do nascituro não significa conferir-lhe capacidade processual, tampouco elevá-lo à condição de pessoa. O que a lei faz é tão somente assegurar a defesa dos direitos em expectativa. Assim, uma coisa é Simone pleitear judicialmente em nome do feto, em um caso de investigação de paternidade por exemplo; outra é o feto, no caso o ‘Nascituro de’, pleitear em nome próprio representado por Simone, atendimento à saúde.
Inúmeras são as teses e especulações sobre o conceito de pessoa e início da vida e, apesar dos poucos acordo entre elas, há um único consenso na ciência, no caso, a biologia: o fato de que embrião e feto são, inquestionavelmente, organismos imaturos em um estágio de desenvolvimento celular.
A idéia de pessoa exprime a aptidão genérica para adquirir direito e contrair obrigações, como agregar, então, essa aptidão para um ‘organismo imaturo em um estágio de desenvolvimento celular’?
Ser pessoa passa pelo nascer, pela “natalidade”, por um ato da natureza. Afinal, como explica Hannah Arendt, é “com o nascimento que algo singularmente novo entra no mundo”. Todavia, a idéia de pessoa engloba, também, a inserção do ser humano no mundo, nas relações humanas. Assim, é o nascimento com vida e a capacidade de viver a vida que nos faz pessoas. E é o igual cuidado e a efetiva garantia de direitos dos seres humanos já nascidos, independentemente da sua condição, que evidencia a maturidade democrática de um Estado e das suas instituições.
(*) Samantha Buglione, Mestre e Professora de Teoria do Direito e Bioética, Doutoranda em Ciências Humanas na UFSC.