Sônia Corrêa
A notícia de que o governo federal está planejando uma nova campanha de comunicação cujo mote será o “fortalecimento da família” causou inquietação entre analistas e observadores que acompanham o debate sobre o assunto no plano internacional. A proposta suscita uma analogia imediata com as políticas conservadoras implementadas pelo governo Bush nos Estados Unidos.
Confirma-se a relevância da análise desenvolvida pela advogada canadense Françoise Girard sobre as políticas implementadas pelo governo americano no campo da sexualidade. O estudo de Girard (“O Kama-Sutra de Bush: Muitas posições sobre o sexo”) será lançado no Brasil na segunda semana de janeiro de 2005. A publicação é resultado da uma parceria entre a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e o Grupo de Trabalho Internacional para Sexualidade e Política Social, criado em 2002 e que atua como um observatório global de políticas no campo da sexualidade.
O estudo analisa as políticas sexuais de George Bush: aborto, HIV-Aids e abstinência sexual, entre outros. Chama a atenção para o fato de que estas políticas não foram exatamente inauguradas por Bush. Remontam à era Reagan e suas bases legislativas definidas pelo Congresso de maioria republicana durante o governo Clinton.
Para Girard, “além de demonstrar temor frente às formas não tradicionais de família, incluindo famílias de casais gays ou lésbicos, este novo esforço é emblemático do ‘ideal’ que a direita religiosa alimenta em relação às mulheres, o qual preconiza que caso estejam casadas com um homem devem ser mães; e caso não estejam casadas devem se abster de sexo. Os alvos desse experimento são sobretudo as pessoas pobres, jovens e minorias raciais, em especial as comunidades afro-americanas”.
É preciso dizer que, para o contexto brasileiro, a análise sobre os demais aspectos das políticas de Bush para sexualidade são tão cruciais quanto as informações sobre as políticas de fortalecimento da família. Também aqui, nos trópicos, as questões ditas “morais” — que se tornaram alvo de ataque preferencial a direita americana — são hoje temas importantes no debate de políticas públicas sobre aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo, trabalho sexual, tráfico de pessoas e HIV/Aids.
Como lá, estes temas têm sido objeto de ataque sistemático por parte do conservadorismo, cuja presença e influência se ampliaram na sociedade e no aparelho político ao longo da última década. É crucial não perder de vista os efeitos, nem sempre debatidos, da cooperação técnica e financeira americana nessas questões.
Diferentemente de outros países em desenvolvimento, já há alguns anos o Brasil não recebe recursos da Usaid para saúde reprodutiva e planejamento familiar. Neste sentido, as ações governamentais e não-governamentais não têm sido nem serão afetadas pela chamada Regra Global da Mordaça — promulgada por Bush no primeiro dia de seu primeiro mandato — que restringe atividades relacionadas ao aborto. Entretanto, o país conta com um volume importante de fundos da Usaid para financiar ONGs que atuam no campo da prevenção do HIV/Aids.
O acordo que rege o ciclo atual de financiamento, depois de muitas idas e voltas, está pautado pelos princípios e critérios da política brasileira de prevenção. Porém, ele se encerra em 2005 e não é absurdo prever que em negociações futuras a Usaid — contaminada pelo clima “moral” do segundo mandato de Bush — poderá ser muito mais impositiva na promoção da abstinência e outros temas.
Um aspecto importante diz respeito à sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos anti-retrovirais. No início de dezembro de 2004, anunciou-se a possibilidade de que o Brasil venha lançar mão do acordo de Doha adotado pela OMC em 2003. Esse acordo flexibiliza as regras para propriedade intelectual de medicamentos, sempre e quando necessidades e emergências nacionais de saúde pública assim o exigirem. A análise desenvolvida por Girard acerca da afinidade eletiva entre o governo Bush e as grandes companhias farmacêuticas sugerem que qualquer iniciativa nesta direção será objeto de reação por parte de Washington e seus aliados.
O estudo de Girard contribui para uma reflexão crítica informada sobre as políticas americanas cujo objetivo é “reconstruir o mundo segundo seus valores morais e religiosos”. No contexto brasileiro, sua análise funciona como sinal de alerta para efeitos não antecipados de determinadas retóricas de política pública, assim como dos fluxos financeiros de cooperação bilateral entre nós e “eles”.
SÔNIA CORRÊA é pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e coordenadora para saúde e direitos sexuais e reprodutivos da Rede DAWN.