CLAM – ES

Victoria del avance científico

Por Washington Castilhos

O julgamento do Supremo Tribunal Federal, que votou na quinta-feira (29/5) pela constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança – autorizando, assim, o uso de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas científicas – de certa forma tirou o país de uma encruzilhada entre avanço científico, limites éticos e moral religiosa. A decisão do STF reforçou o caráter laico do Estado. Além disso, os debates travados na Corte máxima do país desde que a Ação Direta de Inconstitucionalidade da lei foi acatada, em 2006, serviram também para divulgar a posição do público leigo em relação à ciência. Por outro lado, ao decidir pelo prosseguimento das pesquisas sem definir, como muitos esperavam, em que momento começa a vida humana – se na fecundação, se no 14º dia de gestação, em outro momento da gestação ou no nascimento – a conclusão acaba por contrariar os interesses da Igreja Católica em tornar sua doutrina acerca do começo da vida como a vigente no país. Para a Igreja, a vida começa no momento da fecundação, razão pela qual, na visão do Vaticano, as pesquisas com células-tronco embrionárias deveriam ser terminantemente proibidas.

“Vários podem ser os inícios da vida humana, tal seja a opção que se faça por determinada formulação teórica ou tese”, explicou o ministro Celso de Mello, durante o julgamento, que pôs fim a um longo debate: em março de 2005, as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas foram aprovadas no Brasil, no âmbito da Lei de Biossegurança. Em maio do mesmo ano, no entanto, o então procurador-geral da República, o católico Cláudio Fonteles, entrou no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra o artigo a respeito das pesquisas, sob a alegação de que estudos do gênero feriam “o direito de embriões”. A resposta a tal ação levou três anos: no julgamento da última quinta-feira, os ministros restringiram-se apenas a concluir que a Constituição brasileira não garante ao embrião humano mantido em laboratório a garantia da inviolabilidade à vida e à dignidade.

A Lei de Biossegurança é clara sobre os embriões elegíveis para a pesquisa. Ela determina que somente embriões inviáveis ou embriões congelados há mais de três anos, a partir da publicação da Lei, podem ser utilizados para pesquisa. A Lei também define o que é um embrião inviável: são aqueles sem potencialidade de desenvolvimento celular.

“É preciso fazer uma distinção entre a lei e a decisão do STF. A lei em si, nada mais faz do que acompanhar a tendência das sociedades democráticas, na busca pela cura de doenças através da medicina regenerativa. Quanto à decisão do STF, trata-se de um marco histórico, pois emancipou a população brasileira de uma concepção religiosa de quando tem início a vida humana e de quando a mesma começa a ser constitucionalmente protegida. A liberação das pesquisas significou um avanço, assegurando a independência do Estado relativamente às influências religiosas, o que fortalece a democracia”, avalia o juiz Roberto Arriada Lorea, do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul.

Membro da Rede Ibero-americana pelas Liberdades Laicas, recentemente Lorea contestou a presença de crucifixos nas paredes dos tribunais – inclusive no STF – levantando um intenso debate nos meios acadêmicos e na mídia. Para ele, o resultado da votação pode ter sido ainda mais progressista do que sugerem as primeiras repercussões. “A decisão pode servir ainda para afastar o Supremo de uma vinculação à religião católica, a qual ainda se manifesta na presença de um símbolo católico (injustificável) no plenário da Corte. O papel do Estado é manter a igual liberdade de todos, sem endossar alguma doutrina religiosa em particular”, aponta Lorea.

Segundo o médico Marco Segre, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP) e membro da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da FM/USP, do ponto de vista da ética, a decisão do STF responde a um questionamento: O que vale mais: um embrião que não vai ser implantado ou utilizar esse embrião para melhorar as condições de vida das pessoas?

“Não se pode dizer que o embrião não está vivo, não quero contestar os agentes da igreja dizendo que antes da fecundação não há vida. Mas esta vida pode ser desprezada em favor do avanço da ciência e da medicina”, avalia Segre.

Os especialistas acreditam que a posição da Igreja Católica em relação às células-tronco é a maior expressão do seu dogmatismo, uma vez que esta se coloca contra tais estudos devido ao apego a uma noção da sacralidade da vida biológica, orgânica, natural.

Para a antropóloga Maria Luiza Heilborn, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e coordenadora do CLAM, a questão central é o fato de as igrejas cristãs tentarem tornar a sua moral religiosa – baseada na crença da natureza como ordem divina – uma ética universal.

“Se a Igreja não é favorável à interrupção da gravidez, como poderia ser a favor de um embrião ser manipulado? Para eles, a natureza é intocável, a ordem da natureza não pode ser alterada porque é determinada pela lei divina. O problema é que, nessa perspectiva, em nome da sacralidade da vida, outras vidas em sofrimento devem permanecer como estão. A vida não é um bem absoluto”, analisa Maria Luiza.

“Na verdade, a Igreja tem buscado nesse debate sedimentar o imaginário da sacralidade da vida representado pelo embrião, para produzir um consenso social frente ao aborto, e, ao fazê-lo, desconsidera por completo os efeitos potenciais de pesquisas científicas sobre a qualidade de vida”, destaca Sonia Correa, pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política.

Células-tronco e Campanha da Fraternidade

No entanto, não tem sido somente através dos debates travados no STF nos últimos três anos que a Igreja vem tentando fortalecer seus dogmas. A visita do papa Bento XVI ao Brasil foi uma dessas oportunidades. Para muitos, no entanto, ainda mais do que a visita de Ratzinger, a Campanha da Fraternidade de 2008 (leia o texto “Ética ou moral religiosa?” publicado aqui) – que teve como tema “Fraternidade e defesa da vida: escolhe, pois, a vida” – foi o canal mais eficaz para passar a idéia da sacralidade da vida e se posicionar contra o aborto, a reprodução assistida, a eutanásia e as pesquisas com células-tronco. Sobre este último item, o texto base da Campanha sustenta que:“O grande problema ético que se apresenta no caso do uso de células-tronco embrionárias está no processo de sua obtenção: o embrião deve ser destruído! Mesmo sob o ponto de vista apenas biológico, sem discutir se o embrião merece ser chamado ‘pessoa’, esse fato faz diferença: é destruída uma novidade biológica, única na espécie”. Neste trecho, embora se fale em ética, percebe-se que o que está mais uma vez adjacente é a moral religiosa, defesa da vida como um valor sagrado.

No trecho seguinte do documento, a hierarquia católica busca legitimar-se recorrendo à ciência: “Nas palavras de 57 (cinqüenta e sete) expoentes do mundo acadêmico e científico norte-americano, em documento divulgado em 27 de outubro de 2004, ‘baseado nas evidências disponíveis, ninguém pode predizer com certeza se elas (células tronco embrionárias humanas), em alguma época, produzirão benefícios clínicos e, muito menos, se produzirão benefícios que não sejam obteníveis por outros meios menos. problemáticos do ponto de vista ético ”.

Em certa altura, tentam “provar” cientificamente sua argumentação: “Experiências realizadas em ratos ou camundongos com células-tronco embrionárias têm demonstrado que, ao serem injetadas em outro organismo, elas produzem, em cerca de 50% dos casos, tumores, chamados teratomas, que muito facilmente se transformam em tumores cancerosos. Estas células são também rejeitadas pelo organismo que recebe o transplante (…) O uso das células-tronco adultas, por outro lado, já tem alcançado resultados comprovados de melhora ou cura de doenças em seres humanos”

E terminam acusando políticos e cientistas de exagerarem publicamente a ”promessa” das células tronco embrionárias. “As percepções públicas desse enfoque tornaram-se tortuosas e irrealistas”, declaram no documento.

Na análise do especialista em bioética Fermin Roland Schramm, da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz), a igreja usa argumentos científicos de uma maneira leviana, uma vez que a ciência faz hipóteses e tenta corroborá-las. “Eles querem que a ciência proceda da mesma maneira que as religiões e as verdades teológicas, as quais não são verificadas – ou se acredita nelas ou não se acredita. Portanto, estão exigindo da ciência o que ela não pode ser”, ressalta.

O teólogo Olinto Pegoraro, professor de ética no Departamento de Filosofia e presidente da Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) considera que: “A ciência produz fatos sobre experiências que nos trazem resultados: pode-se controlar os nascimentos e prolongar a vida. De um ponto de vista religioso, a Igreja cita os resultados científicos mas os interpreta de maneira própria, geralmente uma interpretação restritiva, proibitiva”, questiona Pegoraro.

Para Fermin Roland, a votação no Supremo mostrou a percepção e a confiança que as pessoas têm na ciência, apesar de alguns ministros terem sugerido diferentes restrições em relação à normatização ética das pesquisas com células-tronco embrionárias. “Neste caso, a sociedade teve um olhar sobre o assunto e viu que as coisas estão dentro de padrões”.

Outros especialistas em bioética fazem coro com Roland: Segundo eles, o Brasil tem um sistema de avaliação de ética em pesquisa bastante estruturado. “Há um grande esforço para que não haja pesquisas sem controle. Não defendemos uma ciência isenta de controle”, defende o médico sanitarista Sergio Rego, coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz).

Fundadora da Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a médica Marilena Correa (Instituto de Medicina Social da UERJ), ressalta que hoje em dia não existe um país que não tenha comissões de ética em pesquisas nacionais, sejam elas desenvolvidas em instituições, nas corporações ou na indústria. “Dificilmente se consegue publicar um artigo científico na área das ciências exatas sem mostrar que aquela pesquisa foi subjugada. Criou-se, contemporaneamente, ao longo dos últimos 30 ou 40 anos, um aparato enorme de controle dessas pesquisas. A UNESCO tem uma comissão internacional que discute a bioética. Até para que estes possam ter valor científico, hoje em dia temos que ter clareza de quem são os grupos de pesquisa”, observa Marilena.

No caso brasileiro são cinco os grupos de pesquisa que trabalham com células-tronco embrionárias. Para Stevens Rehen, professor do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), é difícil avaliar o quanto a Ação de Direta de Inconstitucionalidade, motivada por valores religiosos, atrasou as pesquisas brasileiras – o país não derivou até hoje nenhuma linhagem de células-tronco embrionárias. “Isso ocorre porque é arriscado investir em uma pesquisa que poderia se tornar ilegal”, disse o cientista. (Agência Fapesp – 30/05/2008).

Para a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília, “para o STF, a defesa da Constituição faz parte da manutenção do Estado Laico sob o qual vivemos e nos pautamos diariamente. O desafio do julgamento da ADI foi sustentar a manutenção da laicidade do Estado e garantir que a ciência siga seu caminho. A pesquisa médica precisa avançar”, avalia a pesquisadora.

A decisão do Supremo alinha o Brasil com outros 25 países que permitem as pesquisas com células-tronco embrionárias. Entre eles, França, Espanha, Portugal, Reino Unido, Índia, Austrália, África do Sul, Estados Unidos e Canadá.

Manipulação genética, bioética e os novos pecados sociais

Uma das estratégias da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), responsável pelo texto base da Campanha, era colocar em xeque a inviabilidade dos embriões excedentes – os usados nas pesquisas com células-tronco embrionárias – através de casos ilustrativos. “Dar um limite de anos para o congelamento, como fator discriminante para sua viabilidade ou não, parece não corresponder sempre à realidade: já aconteceu um embrião congelado por seis anos ter conseguido se desenvolver e chegar ao nascimento. Em 2002, após passar 13 anos como embrião congelado a -235º C, nasceu na Califórnia a menina Laina Beasley, aparentemente sem problemas, apenas com uma antecipação de 5 semanas. Seus pais, Debbie e Kent Beaslay, haviam processado o médico dr. Richard Asch quando descobriram que ele utilizava óvulos e embriões de suas pacientes em outras mulheres ou os enviava para pesquisa, sem autorização dos responsáveis. Debbie e Kent conseguiram reaver oito dos doze embriões que haviam deixado congelados e um deles, Laina, cresceu normalmente”, exemplificam. Sergio Rego afirma que a Igreja cita exemplos clássicos dos abusos em pesquisas somente para justificar suas críticas, e que tais casos já têm sido monitorados pelos comitês de ética. “Levantar episódios só reforça a importância dos mecanismos de controle. Daí a dizer que por conta desses episódios não se deve fazer pesquisa, há uma enorme diferença. Eles usam uma retórica no sentido de tentar se apropriar de informações corretas e as interpretam de forma que atendam aos seus próprios interesses”, analisa o pesquisador.

“Se tomamos conhecimento de casos de falta de ética em pesquisa é porque existe uma pressão muito grande de se conhecer o que estão fazendo com as pessoas que se sujeitam a tais estudos, caso contrário, esses casos não seriam nem mesmo publicizados, conhecidos”, ressalta Marilena Correa.

A manipulação genética tem sido alvo de críticas do Vaticano através de seus vários instrumentos, seja por meio da Campanha da Fraternidade brasileira, ou nos pronunciamentos papais. Em março deste ano, Bento XVI divulgou uma lista de novos pecados sociais, a qual incluía críticas a tais estudos e à bioética.

“Eles estão perdendo terreno, por isso atacam a bioética como um todo, em vez de dizer a bioética laica ou a bioética religiosa. A bioética religiosa parte do absoluto da sacralidade da vida, temos que obedecer aos desígnios que serão interpretados pelo papa e pelos bispos, e se não obedecermos estaremos pecando. Mas parece que a bioética católica está se tornando secundária em relação à outra, logo toda bioética é a dos outros e não a nossa. Este é um passo falho”, interpreta Fermin Roland.

O pesquisador sublinha que a manipulação genética faz parte do direito do ser humano de transformar o mundo. “Portanto manipular geneticamente é um dos patamares em que a práxis humana chegou hoje graças à incorporação da ciência, tendo em vista de fato uma melhor adaptação da própria biologia humana aos seus desejos e necessidades”, declara.

Na análise de Sergio Rego, a Igreja Católica espera que a Ciência não dê respostas. “Eles sugerem a existência de algo esotérico, no limite do imponderável, e que não pode ser explicado. A Ciência não tem sua verdade estanque. Ela é um esforço para conhecer os fenômenos da natureza, é refutável, ou seja, lida com teorias que podem ser desmontadas. Tentamos analisar questões a partir de argumentos que sejam baseados no raciocínio e não em princípios religiosos”, diz.

O pesquisador salienta ainda que a bioética não deve ser encarada como uma idéia. “Ela não é uma corrente, significa refletir sobre os acontecimentos que afetam o ambiente social o bem estar das pessoas. Só achamos que essa crença não pode ser imposta a qualquer pessoa, afinal de contas, pessoas têm diferentes crenças ou não acreditam em nada. Ou seja, não pode haver uma imposição dada por uma hierarquia”, conclui.

Para Rego, o que a Igreja tem feito não é usar a ciência e sim manipular informação cientifica para atingir a dimensão emocional das pessoas para poder atingir seus objetivos. “Criam a imagem de que se está falando de um bebezinho ao se falar em células-tronco, por exemplo”, observa.

A preocupação maior da Igreja era se o STF aprovasse as pesquisas com células-tronco, outras formas legais de aborto – além dos permissivos legais – poderiam ser também aprovadas. No entanto, se no caso do aborto o conservadorismo da sociedade é mais evidente, em relação às pesquisas com células-tronco embrionárias a Igreja Católica provou uma derrota em suas investidas contra tais estudos, pois a opinião pública é majoritariamente favorável a essas pesquisas. Recente pesquisa do Ibope, encomendada pela organização Católicas pelo Direito de Decidir, antes da votação no Supremo, mostrou que 95% dos brasileiros são favoráveis a esses estudos, considerando-os uma atitude em defesa da vida.

“Não é por medo do que possa acontecer adiante, na próxima década, que se deve restringir uma possibilidade importante como o uso de células-tronco para debelar doenças”, afirma Olinto Pegoraro.

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