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Desafío permanente

Um momento de crise. Esta foi a avaliação geral sobre o panorama atual da mobilização da sociedade civil que atua no campo da Aids e dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, durante a comemoração pelos 25 anos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), nos dias 8 e 9 de agosto. Problemas financeiros e de participação foram os principais diagnósticos para o momento, em que se comemoram os 30 anos de confirmação dos primeiros casos da infecção pelo HIV.

Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda-SP, criticou a posição paradoxal do Brasil no campo da Aids. De acordo com ele, o cenário mundial tem apontado, nos últimos anos, para a proximidade da cura e da erradicação da Aids. “Há, de fato, uma esperança cada vez maior sobre a possibilidade de encontrarmos a cura. No entanto, o Brasil encontra-se parado em relação a tais questões. O governo se omite de tratar a questão como deveria ser, com políticas mais incisivas”, afirmou. Pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde, no final de 2011, mostrou aumento em casos de infecção pelo HIV entre homossexuais , travestis e mulheres jovens. Durante o carnaval deste ano, o Ministério da Saúde recuou e tirou do ar uma peça de campanha para prevenção que trazia um casal gay.

“O que tem feito o governo para enfrentar esta tendência? Omitir-se de tratar destas questões é um crime de saúde pública, pois são populações diferentemente afetadas pela Aids, portanto, merecem medidas específicas. É uma questão de direito. Ao mesmo tempo em que faltam ações, falta também qualidade nas iniciativas. A Rede Cegonha, por exemplo, que é o carro-chefe do governo para a saúde das mulheres, não traz nada específico sobre Aids. Além disso, o governo fica preso à questão da saúde materno-infantil, quando a saúde das mulheres é mais ampla. Sobre os testes rápidos, o governo tem a intenção de popularizar tais testes? Não sabemos, pois há uma falta de diálogo aguda com os movimentos sociais”, apontou Mário Scheffer.

Além disso, Mário Scheffer afirmou que a crise atual também é uma crise da sociedade civil. “De um lado, temos um governo que tem se omitido na questão da Aids, o que tem implicado, inclusive, em perda de competência técnica e de expertise de um país que já foi referência mundial no tratamento da doença. Do outro lado, há uma diminuição do protagonismo político da sociedade civil. Não apenas as portas do governo estão fechadas para nós. Falta também pessoal do lado de cá. E, muitas vezes, sem gente não conseguimos pleitear e começar projetos. É uma crise de participação”, argumentou o presidente do Grupo pela Vidda-SP.

Kátia Edmundo, diretora do Centro de Promoção da Saúde (CEDAPS), chamou a atenção para a questão da Aids em contextos de pobreza. “As pessoas negras e pobres, moradores de favelas, também constituem uma população mais vulnerável à infecção. O contexto não favorece a saúde. Elas estão inseridas em um cenário de carências de serviços e direitos. Além disso, há uma centralidade nas discussões da Aids sobre a pessoa soropositiva. No entanto, uma pessoa infectada não é apenas um indivíduo isolado. Ela é uma pessoa com um nível de complexidade social significativo, por tudo o que implica em termos de relações interpessoais e com as instituições que são acionadas. Há uma dinâmica cotidiana muito complexa, que exige a participação da sociedade civil para fazer frente aos desafios enormes que se apresentam”, explicou Kátia Edmundo.

A crise de mobilização a que se referiu Mário Scheffer foi avaliada por Roberto Chateaubriand, do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (Gapa-MG), como uma consequência dos espaços nos quais parte da sociedade civil optou por agir. “Uma revisão crítica do processo atual vai mostrar uma importante diferença com o ativismo de 30 anos atrás. Naquela época, a mobilização era mais voluntária, alinhavada por compromissos políticos auto-impostos. Apontávamos as falhas do Estado na prevenção e na assistência aos infectados. Com o passar dos anos, as ONGs foram sendo tragadas para os financiamentos do Estado. O que era uma resposta da sociedade civil às fraturas do poder público tornou-se, rapidamente, uma experiência de prestação de serviço ao Estado. Perdemos o ímpeto de crítica e complementação do Estado. Ao invés de cobrar o governo, juntamo-nos a ele”, avaliou Roberto Chateaubriand.

Paulo Teixeira, ex-diretor do Programa Nacional de Aids e atual consultor do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, afirmou que a crise atual também é uma questão de financiamento. “No cenário atual, a urgência acabou. Não estamos mais em 2001, quando o Fundo Mundial de Combate à Aids foi criado na ONU. A cura está na ordem do dia, parece que chegará em não muitos anos. Mas a Aids não é uma coisa desimportante. E precisa de financiamentos. Os países pobres cresceram e, no xadrez geopolítico Norte versus Sul, os países ricos acham que todos têm grana para bancar a prevenção e o tratamento. Há uma clara questão de autoritarismo na geopolítica que desconsidera que países que cresceram não resolveram seus problemas. Pelo contrário, a desigualdade de renda e a pobreza são fatos reais, que estão implicados na transmissão e devem ser ponderados para as estratégias de prevenção e combate. Mais do que nunca, cabe à sociedade civil fortalecer e incrementar sua atuação”, exortou Paulo Teixeira.

A atuação das entidades civis deve ser, segundo Francisco Pedrosa, presidente do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), de crítica e proposição. “Experimentamos nos últimos anos as Conferências de discussão sobre temáticas caras à sociedade. No entanto, não é apenas por esse canal que as coisas se ajeitam ou se resolvem. É preciso mais, e na questão do HIV precisamos refletir, criticar e propor ao poder público que atue em prol dos direitos civis, da saúde, da dignidade. O Sistema Único de Saúde (SUS) precisa ser o nosso norte atuação, para que seja possível pressionar as autoridades e fazê-las agir corretamente”, afirmou Francisco Pedrosa.

Veriano Terto, coordenador-geral da ABIA, reforçou a importância do ativismo e das ONGs. “São atuações que dão um retorno à sociedade. As ONGs são espaços de produção de conhecimento. Elas têm a missão de produzir informação, consciência crítica. São entidades que devem primar pela criatividade e pela ousadia, pois dessa forma irão produzir experiência e lições. Irão intervir nos processos sociais, em prol da cidadania”, concluiu. 

Betinho

Os participantes do seminário da Abia também falaram sobre o legado do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997), importante ativista brasileiro e um dos fundadores da Abia. Para o sociólogo Cândido Grzybowski, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o papel de Betinho – também um dos fundadores da instituição – no campo dos direitos humanos foi de fundamental importância no contexto do avanço da epidemia de Aids no país. “A atuação dele foi acima de tudo voltada para a questão da cidadania. Cidadania como constituinte da sociedade, como elemento de emancipação social. A democracia, para o Betinho, era um método de construção não por parte do Estado, mas um método de construção no qual os movimentos sociais deveriam ser parte fundamental do processo”, observou.

Para o sociólogo Luiz Alberto Gomes de Souza, da Universidade Cândido Mendes e colega de Betinho durante décadas, o amigo sempre foi um insatisfeito. “O Betinho tinha como marca a inquietude. Isso servia de estímulo para que ele atuasse em benefício da democracia e dos direitos. As organizações não governamentais (ONGs) eram uma forma de tocar a agenda cidadã, alimentando o próprio processo democrático que, para ele, era marcado pela insatisfação”, afirmou Luiz Alberto Gomes de Souza, que, no entanto, lamentou que, nos dias atuais, a conjuntura não seja das mais favoráveis para a atuação das ONGs.

Veriano Terto, coordenador-geral da ABIA, falou sobre a importância de Betinho diante da onda inicial da Aids, nos anos 1980. “Ele buscou indicar os contornos e as dimensões sociais da epidemia. A infecção é algo mais complexo do que um diagnóstico ou definição médica. É um evento que envolve diversos âmbitos da sociedade. Betinho trouxe para a agenda pública a perspectiva dos direitos humanos articulada à epidemia”, afirmou Veriano Terto, que também lamentou o que considera como retrocessos no campo da Aids, sobretudo com a relação burocratizada entre sociedade civil e Estado.

 

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