A lei Maria da Penha é bem conhecida. É o que se depreende da pesquisa “Percepção da Sociedade sobre Violência e assassinatos de mulheres”, organizada pelo Instituto Patrícia Galvão (IPG) em parceria com o Data Popular. Foram ouvidas 1.501 pessoas, nas 5 regiões do Brasil, das quais apenas 2% nunca ouviram falar da lei, promulgada em 2006 e considerada um marco no combate à violência de gênero no país.
É sabido que a violência de gênero é um problema estrutural, o que é atestado por diversas pesquisas que apontam a disseminação do fenômeno na sociedade brasileira. A pesquisa do IPG mostra que 54% das pessoas entrevistas conhecem uma mulher que já foi agredida pelo parceiro. Os dados também mostram que 56% conhecem algum homem que cometeu violência física contra uma parceira. De acordo com Jacira Melo, diretora do IPG, o panorama reforça a gravidade do problema, o que exige ações continuadas do Estado brasileiro. “A Lei Maria da Penha é um marco legal que, certamente, contribui para alterar a mentalidade, tem um efeito cultural importante. A violência contra a mulher é crime, um crime específico, com natureza particular, pois é motivado por representações e relações sociais marcadas por hierarquia de gênero. Nesse sentido, é preciso dar respostas ao problema. A Lei Maria da Penha é um esforço fundamental do Estado brasileiro para fazer frente ao fenômeno. É preciso encaminhar tal questão também sob a ótica da segurança pública”, observa Jacira Melo.
Para a diretora do IPG, os 86% de pessoas que acreditam que as mulheres passaram a denunciar mais os casos de violência doméstica após a lei reforçam a importância da legislação. A agressão contra mulheres, ao lado do estupro, situa-se como o terceiro crime mais percebido pelas pessoas. No entanto, para 50% dos entrevistados, a forma como a Justiça pune não reduz a violência contra as mulheres. “A Lei Maria da Penha é uma medida fundamental, mas não soluciona todos os problemas. A população tem uma visão crítica da resposta do Estado. Sabe que a Justiça não pune adequadamente, que é lenta, não prioriza o crime contra a mulher”, afirma Jacira Melo.
Além disso, segundo ela, a infra-estrutura e os aparelhos estatais de acolhimento das mulheres vítimas estão aquém da demanda. “A rede de atenção para atendimento das mulheres é muito tímida. Os serviços não dão conta da magnitude do problema. Um problema muito grave é a falta de integração entre os serviços. Delegacias e centros de atendimento psicossocial geralmente não estão em sintonia. Os serviços estão dispersos no país. Portanto, o enfrentamento ao problema ainda carece de recursos”, critica Jacira Melo.
A Secretaria de Política para as Mulheres (SPM) está elaborando o projeto “Casa da Mulher”, para integrar os serviços de atendimento às vítimas, coordenando e estreitando os laços entre as esferas de poder. O acolhimento às mulheres é essencial para dar proteção. A pesquisa do IGP demonstra que 70% acreditam que o lugar onde as mulheres mais sofrem violência é dentro de casa. Para 50% dos entrevistados, as mulheres se sentem mais inseguras dentro de casa. “A mulher brasileira sofre muita violência dentro de casa. A população tem uma percepção muito aguda da realidade. Infelizmente, o lugar que era para ser o mais seguro torna-se o mais ameaçador. Não é à toa que mais da metade da população conhece algum mulher que já foi vítima. Estamos lidando com um fenômeno que faz parte do cotidiano íntimo, do cotidiano familiar”, afirma Jacira Melo.
Para a diretora do IPG, a Lei Maria da Penha tem apoio e reconhecimento da população. “Pela pesquisa, apenas 9% da população considera que bater na mulher não deve ser crime. Em uma sociedade machista como a nossa, em apenas sete anos, conseguimos obter tal resposta. Apesar disso, temos que reconhecer que há uma diferença entre a percepção e as práticas. No cotidiano, a violência contra a mulher persiste, é um problema estrutural. A mudança não vem rapidamente, é um processo longo”, observa Jacira Melo.
Ainda que a Lei tenha se consolidado, os desafios permanecem. Os repertórios de violência contra a mulher permanecem. Determinadas representações machistas, sexistas e misóginas se perpetuam em variadas instituições, como escolas, mídia, igreja e o próprio Estado brasileiro. De acordo com Jacira Melo, é importante avançar sobre as desigualdades de gênero num contexto mais amplo. De acordo com a pesquisa, a vergonha (66%) e o medo de ser assassinada (58%) são vistos como os principais motivadores para a mulher não se separar do agressor. Além disso, 49% pensam que a mulher mantém a relação em função dos filhos e 47% em função da dependência econômica do marido. “As distinções de gênero refletem uma história, uma relação secular de dominação o homem sobre a mulher. Por que a mulher fica numa relação violenta? Nossa cultura de gênero é para preservar o casamento, criar os filhos. A mulher fica com vergonha de abandonar tais papéis. A culpa acaba recaindo sobre a figura feminina. A mulher não é somente ela. Ela é uma unidade doméstica, pois inclui os filhos. Ela pensa onde irá morar com os filhos, em caso de separação. A violência de gênero é um fenômeno muito complexo. Não depende apenas de medidas punitivas. Demanda medidas mais amplas, embora a Lei Maria da Penha seja fundamental”, avalia Jacira Melo.