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Derechos incompletos

O Brasil é reconhecido mundialmente por ter desenvolvido um marco programático para a norma universal que define a saúde como um direito fundamental da pessoa humana. Sob essa lógica foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que garante atendimento público, universal e integral a todos os cidadãos. Nem todos os países contam com essa perspectiva, que no Brasil adquiriu o valor de ideia-força: um modelo de saúde que a conceitua como direito humano. Com o propósito de mensurar o impacto da abordagem dos direitos humanos no campo da saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS) desenvolveu a pesquisa “Saúde das mulheres e das crianças: evidência do impacto dos direitos humanos”, que indica o alcance, limites e dificuldades desse impacto no contexto brasileiro.

O encontro do direito à saúde com a linguagem dos direitos humanos tem sido há décadas estimulado por organizações, autoridades, pesquisadores e ativistas. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua Constituição de 1946, define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou de enfermidade. A partir disso, tanto a OMS quanto a Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU preconizam que o direito à saúde deve ser concebido, oferecido e garantido a partir de uma abordagem de direitos humanos. Quer dizer, com atenção especial a grupos vulneráveis, com qualidade nos serviços e no atendimento, aberto à participação e sujeito a controle social, avaliação e prestação de contas por parte do Estado.

Nesse contexto, o Estado brasileiro vem criando, há algumas décadas, políticas e programas voltados para a saúde das mulheres e das crianças. O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAIMS), 1983, foi umas das primeiras iniciativas a reconhecer oficialmente a especificidade da saúde feminina, bem como a inscrevê-la em uma perspectiva de direitos e de autonomia sobre o corpo. Nessa época, se produziam no Brasil 149 mortes maternas para cada 100 mil bebês nascidos vivos. A taxa tem caindo ao longo das décadas, assim como as taxas de mortalidade infantil, foco de outras iniciativas do Estado brasileiro: o Programa de Humanização do Parto (2000); a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2004); e a Política Nacional de Assistência Social (2005).

A partir daqueles registros, a tendência tem sido de queda. Em 1990, morriam 69 mães por 100 mil nascidos vivos, sendo atualmente 56 mortes para cada 100 mil. Um patamar que o país tem dificuldades em reduzir, afastando-se de uma das metas do milênio das Nações Unidas que recomendam, até 2015, taxas de 35 mortes maternas para cada 100 mil crianças nascidas. Em relação à mortalidade infantil, em 1980 morriam 69,1 crianças com até um ano de vida para cada mil nascidas vivas. Em 1991, o numero desceu para 45,1 e em 2012 o índice estava em 15,7, alcançando a meta da ONU que previa 17,9 mil mortes para cada mil nascidos vivo até 2015.

Por vários motivos, não surpreendem as dificuldades do Brasil em diminuir os índices de morte materna. A pesquisa da OMS afirma que a abordagem de direitos humanos está muito mais ligada à concepção das políticas do que à execução. O resultado é um cotidiano no qual a assistência e o direito à saúde projetam desafios significativos para gestores e, sobretudo, para as mulheres e crianças .

Em Pernambuco, por exemplo, o Comitê Estadual de Estudos sobre Mortalidade Materna (CEEMM) realizou em abril uma série de visitas surpresa a sete maternidades do Estado. O cenário encontrado sinaliza que o acesso à saúde está longe de ser universal. Muitas mulheres encontram diversas restrições, passando dias à procura de um serviço onde possam iniciar o acompanhamento pré-natal. Quando encontram, não são informadas sobre o local do parto, nem sobre seus direitos. Assim, no pré-parto e no parto, geralmente não são autorizadas a ter acompanhante, embora desde 2005 a lei 11.108/2005 garanta esse direito.

Um dos aspectos que mais destoam de um modelo baseado nos direitos humanos é a indução à cesárea. Com frequência, de acordo com a médica Sandra Valongueiro (coordenadora do CEEMM), os profissionais de saúde usam desculpas vazias ou nem mesmo permissão pedem para realizar a cesariana, ignorando evidências científicas sobre os benefícios do parto vaginal. Este panorama recentemente ganhou destaque na imprensa brasileira após uma gestante ter sido forçada pela polícia a realizar uma cesárea.

No Brasil, um projeto de lei do deputado Jean Wyllys (PSOL) propõe a humanização da assistência à mulher e ao neonato. A iniciativa é fruto do movimento pela humanização do parto, que nos últimos anos tem ganho densidade e visibilidade no cenário brasileiro. O movimento propõe uma atenção individualizada, franca, transparente e o menos tecnológica possível em relação ao processo de nascimento.

Não se pode negar, por outro lado, que a perspectiva dos direitos humanos tem proporcionado ganhos à saúde materna e infantil. Os índices de natalidade têm caído no país; de acordo com dados de 2011, a mulher brasileira tem, em média, 1,8 filho, número próximo ao de países desenvolvidos. Além disso, o uso crescente de métodos contraceptivos modernos, bem como o aumento da rede pré-natal são efeitos desse processo.

Mas o hiato entre teoria e prática é notável, particularmente em se tratando de um país de proporções continentais, marcado por graves desigualdades. Por isso, ainda que as políticas sejam desenhadas e planejadas para serem aplicadas igualmente em todos os lugares, tais desigualdades inibem que isso ocorra.

Pernambuco, localizada na região Nordeste (uma das mais pobres do país), é um exemplo disso: nas maternidades visitadas pelos integrantes do Comitê de Morte Materna do Estado foram encontradas instalações inacabadas, falta de itens básicos como lençóis e berços, ventilação precária, entre outros problemas. Nas cidades mais afastadas da capital Recife, a situação se agrava, pois em algumas unidades nem mesmo equipe obstétrica foi encontrada nos finais de semana, o que força as mulheres a ir para a capital, sobrecarregando a já esgotada capacidade da rede.

“A gestão da saúde é muito política. Além do subfinanciamento, da má gestão e da corrupção, os serviços de saúde ficam à mercê das trocas de comando nas Secretarias. Assim, as políticas são descontínuas”, destaca a médica e coordenadora do CEEMM Sandra Valongueiro.

Em 2011, o governo federal lançou a Rede Cegonha, principal programa de saúde materno-infantil que prevê um acompanhamento amplo, oferecendo atendimento integral desde o pré-natal até o puerpério. A situação do programa em Pernambuco, nesse momento, é difícil de avaliar. “Ele está perdido”, observa Sandra Valongueiro, argumentando que isso reflete “a falta de articulação entre as esferas de poder, criando um cenário no qual os municípios enfrentam muitos problemas para gerir os serviços e políticas de saúde. Nesse percurso, a qualidade da atenção e do atendimento é prejudicada”.

Aborto fora de cena

Uma das principais críticas à Rede Cegonha destaca que nem sempre os problemas estão na execução. A perspectiva materno-infantil, como apontam pesquisadores e feministas, esvazia o modelo de integralidade da saúde feminina ao priorizar a ótica materno-infantil em detrimento, por exemplo, à questão do aborto.

Criminalizado no país, a não ser em casos de gestação resultante de estupro, com risco de morte à gestante ou de feto anencéfalo, o aborto é uma prática disseminada clandestinamente. De acordo com a pesquisa Nacional do Aborto (2010), uma em cada cinco mulheres brasileiras já interrompeu voluntariamente a gestação. Nos últimos anos, tem sido um tema raramente abordado pelo Governo Federal e pelo Congresso em termos de autonomia e saúde. Pelo contrário, setores religiosos dogmáticos têm explorado o assunto como forma de chantagear eleitoralmente as autoridades. Assim, a legislação e as políticas públicas pouco avançam, quando não retrocedem no compasso dos discursos conservadores.

A manutenção da ilegalidade agrava a situação das mulheres, pois reforça as desigualdades sociais. Afinal, as mulheres com condições financeiras conseguem interromper a gestação em clínicas, em condições seguras. Ao passo que as mais pobres, geralmente recorrem a métodos precários e inseguros, contribuindo para que o aborto seja a quinta causa de mortalidade materna no país. “Infelizmente, o aborto é uma questão residual. Não tratá-lo como uma questão de saúde não está de acordo com uma abordagem de direitos humanos. Além disso, dificulta os esforços de redução dos índices de mortalidade materna”, destaca Sandra Valongueiro.

A situação da mortalidade de materna no Brasil parece contrastar com a mortalidade infantil – que foi reduzida de maneira consistente nos últimos anos. O investimento em imunização o incentivo à amamentação contribuíram seguramente para o panorama atual. No entanto, a morte de bebês com até seis dias continua alta e com índices desiguais em relação às regiões do país: por exemplo, em 2011, de acordo com o Ministério da Saúde, o Amapá (região Norte) teve 12,3 mortes de bebês até seis dias por mil nascidos vivos; Mato Grosso (região Centro-Oeste) apresentou 9,2 mortes; já São Paulo (região Sudeste) e Rio Grande do Sul (região Sul), estados mais desenvolvidos, tiveram, respectivamente, 5,7 e 5,4 mortes de neonatos.

Essa situação não deve ser vista senão como um reflexo das limitações da rede de saúde materno-infantil. O modelo de assistência obstétrico dominante tem sido o da intervenção médica, no qual o parto e o nascimento são entendidos como procedimentos. Nas escolas de medicina, a formação privilegia a lógica intervencionista para lidar com o parto. Tanto em hospitais públicos quanto privados, os partos cesáreos predominam – representam 52% dos partos realizados no país, muito acima dos 15% recomendados pela OMS -, o que cientificamente tem sido desaconselhado diante dos riscos criados para mãe e filho.

Do marco dos direitos humanos, a participação e o controle social, assim como os instrumentos de avaliação e prestação de contas parecem apontar os caminhos por onde deve se seguir para que, de fato, a situação mude. O Ministério da Saúde estabeleceu em 2011 o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade na Atenção Básica (PMAQ), destinado a avaliar a atenção básica. Este instrumento permite à sociedade civil acompanhar e demandar mudanças no sistema de saúde. “Sabemos que a qualidade dos serviços é muitas vezes precária, por inúmeras razões. No caso da saúde materno-infantil, é preciso acima de tudo controle social, do qual os comitês de morte materna são um instrumento importante. Precisamos trabalhar no nível micro, empoderando as mulheres no sentido de mostrar seus direitos e suas vulnerabilidades, e no nível macro, cobrando das instituições que prestem contas, assumam suas responsabilidades e ajam para que a perspectiva de direitos humanos seja uma realidade e não apenas uma concepção”, conclui Sandra Valongueiro.

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