A ilegalidade e a clandestinidade do aborto no Brasil fizeram mais duas vítimas nas últimas semanas. No Rio de Janeiro, Jandira Magdalena dos Santos Cruz, 25 anos, mãe de dois filhos, foi levada a uma clínica de aborto clandestina e “desapareceu”. Seu corpo carbonizado foi encontrado dias depois dentro de um carro. Elizângela Barbosa, 32 anos, saiu de casa para realizar o procedimento e não voltou mais. Seu corpo foi encontrado numa estrada de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. As tragédias de Jandira e Elizângela aconteceram justamente enquanto duas mulheres disputavam o primeiro lugar na intenção de votos do primeiro turno das eleições para a presidência da República. E, embora a bancada feminina no Congresso Nacional tenha aumentado de 45 para 51 deputadas e uma das candidatas à presidência permaneça na disputa do segundo turno, seria de se esperar que questões que dizem respeito às mulheres estivessem na agenda do debate eleitoral. Mas não estão.
Houve um tempo em que se achava que isso se devia à baixa representatividade e participação de mulheres na política. Mas apesar de o Brasil ainda ter representação feminina de apenas 9% na Câmara dos deputados e de 13% no Senado federal (no mundo, a presença de mulheres ocupando tais cargos chega a 20%), o acesso de mulheres aos mais importantes cargos eletivos não deixa de ser um avanço, e poderia sinalizar uma mudança de pauta no debate eleitoral. Mas o que se verifica nestas eleições é uma grande cautela na abordagem de demandas feministas.
O debate “O gênero das campanhas: mulheres nas eleições de 2014 no Brasil”, realizado na UERJ no dia 24 de setembro, abordou esse paradoxo.
Apesar de mais escolarizadas que os homens, elas recebem menos
Não é só a questão do aborto, de cunho moral, que está sendo silenciada. Outras demandas feministas, como o combate à desigualdade salarial entre homens e mulheres, também não são defendidas pelas candidatas em suas campanhas. Os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2013, divulgada na semana passada (já com os dados corrigidos pelo IBGE), mostram que, entre a população feminina adulta, 15% completaram o nível superior. Entre homens, a proporção é de 11%. O avanço na escolarização feminina, no entanto, não foi o suficiente para diminuir as diferenças salariais. Estudo da UFRJ tendo como base os registros do Ministério do Trabalho revela que, de 2001 a 2012, a remuneração média das mulheres no mercado formal cresceu de R$ 1.465 para R$ 1.805, ao passo que entre homens esse aumento foi de R$ 1.814 para 2.184.
Não bastasse a desigualdade enfrentada no mercado de trabalho, elas ainda se deparam com a dupla jornada e têm que enfrentar a distribuição desigual dos afazeres domésticos. A PNAD mostra que o número de horas dedicadas a funções como cuidar dos filhos ou da casa praticamente não varia entre homens. Independentemente do grau de escolaridade, a média entre a população masculina fica entre 5 ou 7 horas semanais de trabalho não remunerado em casa.
Na população feminina, esse número muda bastante de acordo com o grau de instrução. As que não completaram o ensino fundamental trabalham em média 28 semanais horas em casa, enquanto aquelas que chegaram ao mais alto grau acadêmico, mestrado ou doutorado, dedicam 12 horas a essa função. Ou seja, mesmo tendo pós-graduação, uma brasileira, em média, dedica mais horas a cuidar dos filhos e da casa do que um homem de qualquer nível de instrução.
Ou seja, as mulheres que trabalham fora ainda têm um ônus dentro de casa. E, segundo as participantes no debate “O gênero das campanhas: mulheres nas eleições de 2014 no Brasil”, as que se dedicam à política não fogem à regra.
“Quantas podem conciliar a vida de dona-de-casa com a vida política? E se cruzarmos os dados de escolaridade, vamos ver que as mulheres na política são, em média, menos escolarizadas que os seus colegas políticos, o oposto do que acontece na sociedade brasileira”, afirmou Maria Aparecida Abreu, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), no debate.
Existem candidatas mulheres e candidatas feministas
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma mulher morre a cada dois dias no Brasil por complicações decorrentes do aborto. De acordo com o estudo Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes regiões, realizado pelos pesquisadores Leila Adesse e Mario Giani, com base no DATASUS, em 2013 houve no país 205.855 internações de mulheres resultantes dessas complicações. Ainda segundo o estudo, nesse mesmo ano o número de abortos induzidos no Brasil variou de 685.334 a 856.668.
Realizada em 2010 e coordenada pela antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB), a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), primeira pesquisa nacional domiciliar sobre o tema, mostra que 15% das brasileiras entre 18 e 39 anos já fizeram aborto – o que significa uma em cada sete ou cerca de 5,3 milhões de mulheres. A criminalização do aborto vitima principalmente as mulheres mais pobres. As mais ricas viajam para o exterior ou abortam aqui em clínicas com melhores condições sanitárias.
Frente ao quadro descrito, era de se esperar que a descriminalização do aborto fosse defendida com veemência pelas candidatas. Mas não é. Por que isso acontece?
“Em primeiro lugar, é preciso lembrar que existem candidatas mulheres e candidatas feministas. Nem todas as mulheres são feministas, assim como nem todos os homens são machistas. E há uma diferença entre representação das mulheres e representação das ideias feministas”, avaliou Maria Aparecida Abreu no debate “O gênero das campanhas: mulheres nas eleições de 2014 no Brasil”.
Outras hipóteses, segundo ela, para o não comprometimento das candidaturas mulheres com a agenda feminista são: a herança familiarista – muitas entram na política para seguir a tradição de pais e/ou maridos – e também a entrada de mulheres somente para preencher as cotas partidárias.
De acordo com Maria Aparecida, outra possível razão para o silêncio das candidatas em relação à questão do aborto é a exposição que gera estar entre os favoritos e a consequente cautela de todo candidato com reais possibilidades de vencer uma eleição para não abordar questões altamente polêmicas, que poderiam afetar o apoio de um importante caudal de votantes. “Estar na frente das eleições constrange”, disse ela, citando como exemplo, na atual disputa, uma candidata de um partido de esquerda – com cerca de 1% das intenções de voto nas pesquisas – que se declara publicamente a favor da legalização do aborto, da criminalização da homofobia e do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
“Resta saber se, caso estivesse ocupando o primeiro lugar nas pesquisas, ela manteria tal posição. Parece que, na política, ganha-se muito pouco com argumentos feministas”, observou Maria Aparecida.
Seja por medo de perder o apoio de eleitores e parceiros políticos mais conservadores, ou por ideologias pessoais ligadas à religião, os candidatos com mais expressão nas pesquisas – não somente elas – preferem calar-se quando o assunto é aborto e outras questões feministas.