Por Washington Castilhos
Adélaide Herculine Barbin nasceu em 1838 em Saint-Jean-D’Angély, França, com uma genitália que variava do padrão culturalmente vigente do binarismo sexual, e logo lhe foi assignado o sexo feminino. Mas ao apaixonar-se por uma mulher já na fase adulta, teve que assumir – por ordem judicial – uma identidade masculina, passando a chamar-se Abel. Como no século XIX não havia intervenção médica nesse processo, foi necessário apenas um novo registro. Após a mudança de sexo, porém, Abel cometeu suicídio, em função de sua dificuldade em fazer a transição do feminino para o masculino. O caso é hoje conhecido principalmente depois que Michel Foucault republicou as memórias de Herculine Abel na sua coleção “Vidas Paralelas”, e assinou a introdução da edição em inglês da publicação. Nesse prólogo, Foucault destaca o objetivo das instituições sociais de restringir “a livre escolha de indivíduos indeterminados”.
Foucault – que em seus estudos sobre as definições de “anormalidade” analisa as diferentes medidas “reguladoras” que recaíam sobre os indivíduos hermafroditas – interessa-se pelo caso de Herculine para criticar a assignação médica de um verdadeiro sexo, notando como os esforços legais para controlar a identidade de gênero já ocorriam na época de Barbin. Desde então, o texto autobiográfico, originalmente publicado pelo médico Ambroise Tardieu em 1872, será lido através de Foucault, portanto a partir da crítica à imposição do sexo e ao poder médico.
A história de Barbin prova o que os estudos feministas vêm dizendo há décadas: o sexo também é construído. No relato, Herculine pede a um padre para que o seu verdadeiro sexo seja conhecido. “Barbin demandou o reconhecimento de seu verdadeiro sexo”, assinalou o sociólogo francês Eric Fassin em recente palestra no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), onde fez uma releitura do texto de Herculine Abel, Mas o que constitui a verdade de um sexo? É possível produzir “verdadeiros” homens e “verdadeiras” mulheres?
Na narrativa, percebe-se que sexo/gênero não têm a ver com anatomia, exceto no que diz respeito à menstruação e à pilosidade. O texto não faz referência aos órgãos genitais. O que leva Barbin a dizer ‘sou um homem’ é por que ele faz amor com uma mulher, no caso sua companheira Sarah. “Ou seja, é a heteronorma que faz o sexo”, observou Fassin.
As memórias de Herculine Barbin são um guia para pensar a intersexualidade e para criticar a imposição do sexo. Sua história mostra o quanto é difícil pensar uma existência fora dos limites dicotômicos do sexo (masculino ou feminino), já que o sexo se apresenta como tudo o que define uma pessoa. Mas e quando tal pessoa não se enquadra nesse binarismo? Em Undoing gender (2004), Judith Butler pergunta que vidas e que corpos podem viver fora desses parâmetros. Herculine Barbin não conseguiu. Ao não se reconhecer no sujeito que lhe foi imposto, Barbin se suicidou.
“Herculine-homem se queixa muito. É um heterossexual muito infeliz. Ele fala de casamento, há um momento em que fala de gravidez. ‘Serei um marido horrível’, diz ele, ‘porque fui uma mulher, conheço por dentro o que é ser uma mulher… não poderei nunca ser um bom marido num mundo gravado na diferença sexual’”, lembrou Fassin.
Foucault atribui a imposição do sexo como causa do seu suicídio. Na palestra realizada no IMS/UERJ, Fassin apresentou outra interpretação àquela oferecida por Foucault. “A felicidade com sua companheira Sarah vinha de uma combinação entre homossociabilidade e a heterossexualidade. O sofrimento não vem da imposição, mas da impossibilidade de juntar homossociabilidade e heterossexualidade. Herculine era um intersexual verdadeiro”, afirmou o sociólogo francês.
Algo semelhante aconteceu com o canadense David Reimer. Ainda criança, após sofrer uma complicação durante um procedimento de circuncisão que o fez perder o pênis, Reimer teve o sexo reformulado e foi transformado em uma menina, por sugestão do psicólogo norte-americano John Money. Em maio de 2004, aos 38 anos, suicidou-se após uma longa história de “correções” cirúrgicas.
Os dilemas vividos por Barbin e Reimer aparecem recolocados no debate atual sobre a necessidade da cirurgia em casos de crianças e jovens intersex, nascidos com o que, na linguagem biomédica contemporânea, denomina-se “genitália ambígua” ou “genitália incompletamente formada” (com a genitália interna e/ou externa nem claramente feminina nem claramente masculina). A crítica ao modelo centrado na cirurgia – dada a insatisfação por ela gerada – e o olhar generificado sobre a anatomia são temas estudados pela pesquisadora Paula Sandrine Machado na tese de doutorado “O sexo dos anjos”, a ser lançada em livro na coleção Sexualidade, gênero e sociedade (CLAM/Eduerj).
O trabalho de Paula Sandrine reforça o argumento de que o sexo é tão construído na cultura quanto o gênero e de que aquilo que é considerado “natural” dentro das normas sociais deve ser relativizado. A partir de trabalho de campo realizado em ambulatórios de cirurgia/urologia pediátrica de um hospital no Rio Grande do Sul (Brasil) e outro de Paris (França), a pesquisadora demonstra como no manejo médico dos corpos intersex há uma aproximação entre a noção de “natural” e aquilo que é considerado o “ideal” de corpo dentro das normas sociais baseadas na ideia da “natureza binária” inscrita nos genitais.
Segundo a autora, no processo de tomada de decisão no contexto das cirurgias “reparadoras” dos genitais de crianças intersex, a dicotomia (masculino/feminino) é uma referência importante. Assim, o parecer com um pênis ou com uma vagina “normais” é de fundamental importância para o resultado estético pós-cirúrgico, já que, em culturas como a nossa, o que prevalece é a concepção de que o sexo só pode ser de homem ou de mulher e ninguém pode ficar indefinidamente fora dessa norma.
Os corpos intersex são, portanto, emblemáticos porque desafiam o sistema binário de sexo e de gênero, salienta a autora. Por sua vez, como consequência desse raciocínio, o corpo não “corrigido” será considerado não natural. Para essas crianças, portanto, a reconstrução de uma vagina ou de um pênis aparece quase como uma reivindicação social, uma forma de reinserção social desses corpos desviantes, dentro dos parâmetros corporais que tomam a dicotomia como norma e como verdade..
Em seu trabalho de campo, Paula Sandrine Machado pôde observar que uma série de critérios orienta o saber médico na direção do sexo que se pretende construir a partir do momento que este saber apresenta o diagnóstico aos familiares das crianças e jovens. Para o sexo feminino, por exemplo, os fatores mais levados em conta são a capacidade reprodutiva e a possibilidade de reconstrução anatômica de uma vagina. Para o sexo masculino são o tamanho e a capacidade erétil do pênis, de penetrar adequadamente uma vagina, a capacidade reprodutiva (o que é associado à ejaculação) e de urinar de pé. Nota-se que tem de haver uma coerência fundamentada no dimorfismo sexual. O sexo construído tem de estar de acordo com as expectativas sociais e estereótipos masculinos ou femininos esperados para aquele sexo. Assim, enquanto a capacidade reprodutiva apresenta-se como elemento importante na decisão de definição para o sexo feminino – muito embora Simone de Beauvoir tenha sinalizado que para as mulheres a maternidade não é necessariamente o destino –, o desempenho sexual (pênis penetrativo, de bom tamanho e capacidade erétil) tem o mesmo status de importância para o sexo masculino.
Segundo Paula Sandrine, dentro da lógica biomédica, o sucesso terapêutico a partir do diagnóstico está em atingir uma harmonia minimamente satisfatória entre o sexo construído e o sexo verdadeiro, aquele que Herculine Barbin pediu ao padre que lhe revelasse. No entanto, determinadas questões em torno da decisão pelas cirurgias nos genitais de crianças e jovens intersex estão longe de um consenso. Questiona-se o momento mais apropriado para realizá-las, quem deve decidir sobre o sexo de uma pessoa e, ainda, se a operação deve ser feita.
Outro questionamento interessante é se esse tipo de intervenção não poderia ser pensado através da ideia de mutilação, como o são outras intervenções em grande medida análogas. Ao analisar alguns exemplos de intervenções que envolvem cortes no corpo humano, a antropóloga Mariza Corrêa, professora do departamento de Antropologia da Unicamp, questiona até que ponto práticas de mutilação genital consideradas “primitivas” – como a retirada do clitóris (a clitoridectomia) em países islâmicos – estão de fato desvinculadas de outras práticas realizadas no mundo ocidental, tidas como “normais” – como a circuncisão nos meninos, a episiotomia nas parturientes e as cirurgias “reparadoras” nas pessoas intersex.
A análise de Mariza Corrêa nos permite relativizar não só essas diferenças culturais, como também a necessidade de “definição do sexo” decorrente do diagnóstico médico relacionado à intersexualidade, baseado na naturalização de um padrão corporal binário (masculino/feminino) estabelecido culturalmente.
É preciso refletir sobre o significado de uma prática legitimada por um saber biomédico constituído como verdade, que patologiza transexuais e intersexuais, enquadrando-os na lógica normativa e da correção. Grupos de ativismo intersex contestam a patologização da intersexualidade e a exigência social de ter de escolher entre ser um homem ou uma mulher, posição resumida na indagação “E se não há nada a escolher?”, feita por Alex, personagem intersex do filme XXY. Para os ativistas, ser um indivíduo intersex é mais uma possibilidade, e não uma doença.