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Orientación sexual en la CIE-11

A homossexualidade deixou de ser considerada transtorno mental em 1973 quando a Associação Americana de Psiquiatria decidiu retirá-la do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM). No entanto, continuou na lista de doenças mentais até 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a versão 10 da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Embora isoladamente deixasse de ser definida como doença, esta orientação sexual permaneceu conectada a uma linguagem patologizante por meio de categorias que a associam a distúrbios mentais. Diante desse cenário, um grupo de trabalho, comandado pela psicóloga e epidemiologista Susan Cochran (UCLA) e o psiquiatra Jack Drescher (NY Medical College) – do qual faz parte Alain Giami (INSERM, França), pesquisador convidado no Programa da Cátedra Francesa da UERJ -, está propondo a eliminação de qualquer vínculo entre orientação sexual e doença para a edição 11 da CID.

Na CID-10, o capítulo 5 (Doenças Mentais e Comportamentais) define, através das categorias F66, três transtornos ligados à orientação sexual: “sexual maturation disorder”, que situa a orientação sexual (homo, hetero ou bissexual) como causa de ansiedade ou depressão em razão da incerteza do indivíduo quanto ao seu desejo; “ego-dystonic sexual orientation”, quando o indivíduo, embora seguro de sua orientação, deseja mudá-la; e “sexual relationship disorder”, manifesta nos casos em que a orientação é responsável pela dificuldade em formar ou manter um relacionamento com um parceiro sexual.

“A proposta do grupo de trabalho é eliminar tais categorias, considerando que orientação sexual não é uma causa de transtorno mental, do ponto de vista biomédico, mas uma questão de variabilidade social que não pode ser definida como patológica. É uma variação normal das diferenças do comportamento. Assim, a proposta é não usar a homossexualidade como transtorno ou como causa de doença”, destaca Alain Giami, integrante do grupo de trabalho designado especificamente para revisar o tema da orientação sexual – há outros três grupos que revisam o capítulo 5, no tocante a temas como identidade de gênero, parafilias e disfunções sexuais.

No artigo em que sintetizam a proposta do grupo, os autores argumentam que as causas da orientação sexual são desconhecidas, mas afirmam que provavelmente reflete um conjunto de fatores genéticos, de exposição pré-natal a hormônios, experiência de vida e contexto social. A partir disso, destacam que a variação de orientação sexual é ubíqua, em distintas sociedades.

Entretanto, o estigma social é um traço comum em diversas sociedades, afetando as pessoas que não se enquadram no modelo hetenormativo – que situa homem e mulher como seres distintos e complementares com papéis naturalmente determinados – e também aquelas que estão em situação de discriminação por raça, etnia, classe social, religião e portadores de deficiência. Assim, vivendo em contextos de exclusão, discriminação e violência, indivíduos homossexuais estão expostos a significativo nível de estresse. “Evidências mostram que gays, lésbicas e bissexuais demonstram com frequência graus de estresse maior que os heterossexuais”, afirmam os autores no artigo. Nesse sentido, a proposta do grupo é eliminar as categorias F66 de maneira que a perspectiva biomédica não seja a fundamentação para doenças e sofrimentos relacionados à homossexualidade. A intenção é vincular os transtornos – como ansiedade e depressão (que acometem pessoas gays ou bissexuais) – ao ambiente em que vivem, geralmente hostil, designando-os como problemas psicossociais: para isso, são indicadas as categorias Z, que estabelecem protocolos de atendimento para os indivíduos que precisam de aconselhamento em matéria de sexualidade, sem a presença necessária de uma doença mental. Com essas categorias, a possibilidade de se acessar o sistema público de saúde seria mantida, na medida em que a despatologização não representaria uma desmedicalização das dificuldades, problemas e sofrimento que podem afetar os indivíduos.

Do outro lado, alguns profissionais de saúde pesquisados alegam, por sua vez, que as categorias F66 podem ser úteis para melhorar a precisão do diagnóstico, ao servirem como pistas para o trabalho médico, inclusive como sinalização de outras doenças. Por essa lógica, “sexual maturation disorder” ou “sexual relationship disorder” poderiam ser mantidos como diagnósticos alternativos para o transtorno de gênero – utilizado para enquadrar indivíduos transexuais. Também nesse sentido, profissionais de saúde afirmam que o estresse em um/uma pessoa homossexual pode ser evidência de “ego-dystonic sexual orientation”, isto é, quando o indivíduo quer mudar de orientação sexual. Porém, de acordo com os integrantes do grupo de trabalho, isso não permite afirmar que as categorias F66 melhoram a precisão de diagnóstico e, assim, sejam clinicamente úteis. “Uma situação de estresse, por exemplo, pode ser uma resposta adaptada a um acontecimento, sem ser clinicamente relevante. Por isso, não parece haver evidência que justifique intervenções específicas para orientação sexual, distintas daquelas utilizadas para doenças como depressão e ansiedade. Isso pode levar, inclusive, a um tratamento inapropriado para o paciente. Um estresse ligado a relações sociais ou psicossociais não pode ser considerado transtorno”, pondera Alain Giami.

A associação entre orientação sexual e doença não é recente. Na CID-6 (publicada em 1948), a homossexualidade foi pela primeira vez tratada como patologia, sendo classificada como um desvio sexual ligado a um distúrbio de personalidade. Contudo, pesquisas desenvolvidas ao longo da segunda metade do século XX não corroboraram com a tese. Conforme destacam os autores do artigo do grupo de trabalho da OMS, revisões realizadas em publicações científicas importantes mostraram que a última citação de “ego-dystonic-homossexuality” foi em 1995. Nem mesmo periódicos sobre desenvolvimento psicossexual têm discutido doenças no campo. Além disso, não obstante a CID ser um marco de referência mundial para o monitoramento em saúde pública, as categorias F66 pouco contribuem para esse fim.

Apesar da falta de evidências científicas que sustentem o caráter patológico da orientação sexual, tem sido comum no Brasil e em alguns países africanos a prática da chamada “terapia de reorientação sexual” ou “terapia de conversão”. Formulada e oferecida sobretudo por profissionais da saúde ligados a grupos religiosos dogmáticos, tal terapia consiste em um conjunto de métodos destinados a eliminar a homossexualidade do indivíduo, “restaurando” o desejo por pessoas do outro sexo de modo que as relações sexuais e afetivas sejam heterossexuais. Esse tipo de prática tem sido amplamente criticado e rejeitado por profissionais de saúde, pesquisadores, autoridades e ativistas ao redor do mundo.

No Brasil, inclusive, desde 1999 uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio ou perversão" e que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade”.

A questão dos direitos humanos

Para o grupo de trabalho da OMS, terapias que buscam modificar a orientação sexual de uma pessoa estão à margem dos padrões éticos. Princípios de direitos humanos, especialmente no âmbito dos direitos sexuais, constituem ferramentas importantes para a proposta de eliminação das categorias F66, porque garantem, entre outras prerrogativas, autonomia, liberdade, integridade e escolha livre e responsável para o exercício e manifestação das práticas e desejos sexuais de forma segura. Essas ideias têm sido defendidas e promovidas por órgãos internacionais como forma de combater a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, do que são exemplos a aprovação no final de setembro de resolução pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Declaração dos Direitos Sexuais da Associação Mundial de Direitos Sexuais (WAS, sigla em inglês), que reafirma o respeito e a proteção à orientação sexual.

Não apenas uma questão científica, mas também – e talvez principalmente – política. As lutas travadas em torno da homossexualidade são antigas, envolvendo diversos tipos de linguagens e discursos. Em 1973, quando a Associação Americana de Psiquiatria (APA) retirou-a do rol de doenças definidas pelo seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) , a medida refletiu não apenas argumentos científicos, mas também uma série de mudanças ocorridas após os anos 1960 e o movimento de liberação sexual, momento em que ideias mais inclusivas ganharam densidade em meio às tensões morais que envolvem questões de sexualidade. Por isso, os grupos de trabalho que trabalham na revisão da CID-11 sabem que suas recomendações podem não ser necessariamente aprovadas. As propostas são primeiramente analisadas pelo Comitê Central do capítulo sobre transtornos mentais e comportamentais, seguindo para o Comitê Geral da CID e, por fim, sendo votadas na Assembleia Geral da OMS, com previsão de publicação para 2017.

Um argumento favorável à manutenção das categorias F66 é a proteção que elas oferecem a indivíduos de países que punem, com legislação criminal, relações entre pessoas do mesmo sexo, inclusive com pena de morte. Por essa lógica, a doença os isentaria da execução. No entanto, o estudo do grupo não conseguiu identificar o uso desse tipo de defesa. A realidade de cada país é um desafio difícil de conciliar na proposta de revisão da CID, cuja apreciação é feita em um fórum global, com visões de mundo muito amplas e distintas. Apesar das dificuldades e dos aspectos tanto científicos quanto políticos, Alain Giami acredita que o grupo de revisão apresenta uma postura relevante. “Nossa recomendação não é oficial, é apenas um documento de trabalho. Mas penso que é um progresso, tendo em vista a possibilidade de se eliminar oficialmente uma linguagem estigmatizante”, conclui Alain Giami, que atua como investigador convidado da Cátedra Francesa da UERJ, no Instituto de Medicina Social (IMS), até o mês de dezembro.

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