O mal-estar brasileiro não é responsabilidade das meninas pobres
Maria Luiza Heilborn*
No Artigo “As Nossas meninas-mães” (O Globo, 31/03/07), o escritor Zuenir Ventura coloca o planejamento familiar como um tema tabu que, sob o nome de controle da natalidade, enfrenta fortes resistências morais e ideológicas por parte da igreja e até da esquerda. Entre outros aspectos, ele ressalta que milhares de meninas muito jovens (antes dos 14 anos) e pobres estão tendo filhos cedo demais.
Sobre esse texto, é importante destacar que há um esquema intelectual viciado em diversos articulistas da grande imprensa, armadilha que volta e meia reaparece travestida de preocupação com a infância pobre. Desta vez, foi o artigo de Zuenir, mais um a se render à equação reducionista: reprodução entre os pobres é igual à invasão das hordas de criminosos que assola as grandes metrópoles brasileiras. Ele chama atenção para o tabu do “planejamento familiar”, mas o modo como é feito revela profundo desconhecimento da realidade demográfica do país. Diminuir o número de pobres impedindo-os de nascer aparece como a salvação das mazelas sociais e da violência urbana. Mais do que isso, é a fecundidade dos mais pobres que deve ser controlada, sobretudo das mais jovens, pois são elas que “fabricam em série” os delinqüentes juvenis.
Sair deste esquema de relação causa/efeito é o que pode nos levar a ter um debate sério a respeito da gravidez na adolescência. Afirmar que estas “meninas” estão despreparadas para a tarefa de ser mãe é desconhecer que, muitas vezes, são elas que ficam em casa cuidando de irmãos menores para que suas mães possam trabalhar. É essa atribuição doméstica que, na maior parte das vezes, corta a infância no estilo do que a classe média entende, preconiza e idealiza para os seus próprios rebentos. É estar muito longe da realidade social das favelas cariocas. A falta de “condições psicológicas, econômicas ou emocionais” deve ser entendida no quadro mais amplo de “falta de perspectiva de vida” dos jovens pobres. Ignorar que problemas sociais subjacentes aos contextos das favelas, como a brutal concentração de renda, a precariedade das condições de moradia nos grandes centros urbanos, a baixa qualidade do sistema de ensino para os pobres, fatores que não permitem a essas jovens descortinar outros horizontes de realização que não seja ter um filho no colo.
Um dos problemas do texto é que, citando números absolutos, mistura fenômenos de magnitude distintas. De saída, é necessário separar as trajetórias de meninas de 13, 14 anos, daquelas que possuem 18, 19 anos. Nessa última faixa, projetos de constituição de família nem sempre mal-sucedidos constituem o horizonte das ditas meninas. Elas engravidam antes e se unem depois. De nada adianta massificar a distribuição de contraceptivos se nada for feito em relação à inclusão dos jovens mais pobres e a constituição de possibilidades reais de melhoria de vida para que possam sonhar com um futuro melhor e aspirar condições outras do que a que eles têm a sua própria volta… Há soluções alternativas mais respeitosas com os direitos reprodutivos dos pobres: creches públicas para receberem os filhos das mulheres que precisam trabalhar fora de casa, escolas de tempo integral e com diversificação de atividades que preencham o cotidiano destas crianças e jovens, tornando-os menos vulneráveis às intempéries.
Planejamento familiar só funciona, de modo democrático, com processo de educação para a vida sexual, com a capacidade de planejar condições de vida e não apenas as condições de reprodução e com um amplo debate sobre a descriminalização do aborto, como apontou o jornalista Elio Gaspari (O debate sobre o aborto faz bem à saúde, 1/04/07). É bom repetir: meninas que engravidam muito cedo já abandonaram a escola. Os dados da pesquisa GRAVAD – , pesquisa nacional realizada por três universidades públicas, UERJ, UFBA e UFRGS – mostraram que estar na escola é um elemento de grande importância de prevenção da gravidez na adolescência. Cerca de 20% das meninas que tiveram filhos antes dos vinte anos voltam a estudar depois de ser mãe. O mal-estar da sociedade brasileira tem condições de ser amenizado por ações de distribuição de renda e melhorias educacionais e de trabalho para os pobres. O desconforto não passa com a demonização dos pobres. Jovens pobres também querem sonhar.
* Antropóloga, diretora do CLAM (IMS/Uerj), coordenadora nacional da pesquisa Gravidez na Adolescência (GRAVAD)