Jandira Feghali*
Ao criar o conceito de Seguridade social, coerente com o processo de democratização do Brasil, o Movimento Nacional de Reforma Sanitária estabeleceu as condições para uma grande reforma no Estado brasileiro. Perpassou os espaços acadêmicos, políticos, institucional e popular, ganhando apoio suficiente para quebrar resistências e carimbar expressões como universalidade, equidade e integralidade no então fragmentado sistema de saúde brasileiro. Embora não tenha resolvido os graves problemas enfrentados cotidianamente pelos cidadãos, foi forte o bastante para suscitar mudanças na realidade epidemiológica brasileira e quebrar importantes paradigmas: deu respostas a graves questões, como a da AIDS, e enfrentou a reforma psiquiátrica contra os empresários da loucura.
O movimento feminista, por seu turno, enfrentou dilemas e preconceitos. Precisou estabelecer instâncias plurais, criou personalidade própria ao longo dos anos e, principalmente, construiu um arcabouço constitucional e infra-constitucional que, desde a luta pelo direito de votar e ser votada, da conquista da licença maternidade, da instituição do conceito de crime de violência doméstica e de assédio sexual, vem avançando na criação de políticas claras na área dos direitos das mulheres — inclusive os sexuais e reprodutivos, nos quais se incluem o atendimento integral à saúde.
Há décadas esses dois movimentos de grande visibilidade − o de reforma sanitária e o feminista – se entrecruzam. A eficácia de suas ações e leis depende profundamente do grau de informação, escolaridade e renda da população e, portanto, supera o limite técnico, entrando no campo da política econômica e do combate às desigualdades sociais e regionais. Mas não é só.
Por exemplo, na defesa da vida, o Ministério da Saúde lançou o Pacto pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, em 2004. Três anos depois, o programa contabiliza seus ganhos: conquistou a adesão de 27 estados da federação, com a diminuição de 4,3 mil óbitos de recém-nascidos e de 210 mortes maternas.
Agora, coerente com a necessidade de ampliar as armas de combate à mortalidade materna, o Ministério da Saúde lançou corajosas e avançadas medidas de planejamento familiar, com base na Constituição Federal de 1988, na lei 9263/96 e na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), adotada pela Organização das Nações Unidas. O Programa de Planejamento Familiar do Ministério da Saúde é de tal forma inovador que não se limita à distribuição gratuita de métodos contraceptivo, à redução dos preços de pílulas anticoncepcionais ou à abertura de financiamentos às maternidades que prestam serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS): ele obriga os homens à participarem do processo, ao estimular à vasectomia.
O lançamento do programa se fez em 28 de maio, Dia Internacional de Combate à Mortalidade Materna. Ao mesmo tempo, está sendo convocada a segunda Conferência Nacional de Mulheres, que até o momento já realizou perto de 1500 conferências municipais e reuniu 200 mil mulheres em todo o Brasil, para discutir assuntos de políticas públicas de gênero — entre os quais exatamente os direitos sexuais e reprodutivos e de atendimento integral à saúde da mulher.
Considero, no entanto, que falta um amálgama entre essas duas legítimas e importantes movimentações da sociedade brasileira. Para isso, o movimento de mulheres precisa assumir a defesa do SUS de forma prioritária e lutar para que suas políticas sejam assumidas pelos governos estaduais e municipais, porque de nada adiantam competentes programas se eles não atingirem seu público alvo. É necessário que eles sejam implementados de maneira conseqüente pela gestão municipal, que é a responsável pela atenção básica − postos de saúde, programas de saúde da família e maternidades.
A defesa do Sistema único de Saúde não pode ser uma luta apenas dos profissionais de saúde ou dos conselhos de saúde. E também não basta às mulheres levantar as bandeiras. É necessário integrar forças, fazer parcerias e alianças. Ou seja, torna-se necessário que o movimento feminista assuma que o SUS, seu financiamento e sua gestão ética e comprometida são problemas essenciais para as mulheres. Só assim vamos garantir um planejamento familiar democrático, no qual mulheres e homens possam definir de maneira soberana o tamanho de suas famílias, sem que as mulheres arrisquem suas vidas. Só assim reduziremos as gestações indesejadas e o número de abortos. Só assim atingiremos metas importantes de combate à mortalidade das mães brasileiras. O pleno funcionamento do SUS é indissociável da viabilização das medidas anunciadas. Esta é uma questão decisiva para a Conferência Nacional de Mulheres: assumir o SUS, de fato, como uma bandeira feminista.