O poder público federal brasileiro registrou, em 2011, 6.809 denúncias de violações de direitos humanos de caráter homofóbico (preconceito por orientação sexual e identidade de gênero presumida). Em relatório pioneiro, que sistematiza pela primeira vez dados oficiais, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República mapeou a extensão e as características deste fenômeno: as vítimas e os agressores preferenciais, os espaços onde a discriminação prepondera e a articulação a outros marcadores sociais, tais como a faixa etária e a cor da pele, são elementos que aparecem no “Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: o ano de 2011”.
De acordo com os dados – coletados através do Disque 100 (SDH), pela Central de Atendimento à Mulher, pelo Disque Saúde (Ministério da Saúde) e por emails e correspondências enviadas ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT -, 67,5% das vítimas eram homens e 85,5%, homossexuais. Eles também são maioria na condição de suspeitos (52,5%), categoria cujos heterossexuais predominam (43,9%). As mulheres representam 26,4% das vítimas e 34,5% das agressoras. Do total das vítimas, 69% eram jovens (de 15 a 29 anos). “Os dados evidenciam como os papéis de gênero se refletem nos indicadores de violência. No Brasil, a construção da masculinidade é um processo marcado pela violência. Ser homem implica na adoção de condutas geralmente violentas, dominadas pela lógica da virilidade e do machismo que é assimilada desde cedo. A exigência social pede que os homens sejam heterossexuais. Quando violadas ou subvertidas, tais condutas e normas heteronormativas são motivo para todo tipo de violência. O relatório reflete, nesse sentido, práticas sociais muito arraigadas em um país onde a masculinidade é um elemento que compõe a sociedade”, afirma Marco Aurélio Prado, psicólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, que desenvolve pesquisas do campo das relações de gênero e da cidadania LGBT.
O relatório também mostrou que 62% das vítimas conheciam seus agressores, sendo 38,2% familiares e 35,8% vizinhos. “O tipo mais comum de violência homofóbica se dá em círculos de intimidade. É uma dinâmica que não pode ser vista em separado à questão da violência institucional. A lógica da violência partindo de pessoas próximas está inscrita em um contexto no qual muitas vezes instituições de trabalho, de estudo, de saúde, entre tantas outras, também constituem espaços de manifestação homofóbica”, observa Marco Aurélio.
Para o pesquisado da UFMG, a violência homofóbica é um fenômeno enraizado e complexo, cujo combate não é simples. De acordo com o relatório da SDH, os locais de discriminação são encabeçados pelo ambiente doméstico (42%) e pela rua (30,8%), seguidos pelo local de trabalho (4,6%), pelas instituições governamentais (5,5%) e outros ambientes (17,1%), tais como bares, rios, lagoas, banheiros públicos, postos, albergues, motéis, instituições religiosas etc. “A natureza do fenômeno é multifacetada, não apenas em relação aos espaços de eclosão mas também às modalidades. Há graus de violência, como a humilhação, a negligência na assistência à saúde, à alimentação. A homofobia não é apenas a agressão, o ataque físico. Envolve outras manifestações”, observa Marco Aurélio.
A complexidade do fenômeno exige, de acordo o pesquisador da UFMG, a participação efetiva do Estado. “O Estado brasileiro mexeu-se nos últimos anos, embora tenha sido um movimento de passos curtos. Houve as Conferências Nacionais LGBT e a criação do Conselho Nacional LGBT. Iniciativas que colocaram a temática dos direitos da população LGBT na agenda pública. Canais de diálogo foram criados, o que é muito saudável”, afirma Marco Aurélio Prado, que lamenta, no entanto, o panorama atual.
Direitos sexuais em retrocesso
No horizonte dos direitos sexuais da população LGBT, o recuo, em 2011, do governo federal na distribuição do kit anti-homofobia em escolas é um exemplo das dificuldades existentes. “O relatório da SDH mostra como a homofobia é um fenômeno que permeia as instituições, sobretudo a família. Nesse aspecto, no qual os preconceitos vão se manifestando e sendo aprendidos no ambiente familiar, é que a escola é de vital importância. O enfrentamento do preconceito passa pelo diálogo entre os espaços por onde os jovens circulam e se socializam. A escola deveria ser um ambiente acolhedor e promotor da igualdade, do respeito não apenas das questões da população LGBT, como também de outros estigmas e preconceitos existentes. Infelizmente, sobretudo no atual governo, a temática dos direitos sexuais tem recuado”, lamenta Marco Aurélio.
O destaque para os dados na mídia, acredita o professor da UFMG, espelha o panorama das discussões sobre sexualidade. “A repercussão foi tímida, diante de um problema que se apresenta como grave, pela quantidade de casos reportados. Lamentavelmente, parece um tema proibido”, avalia Marco Aurélio.
De acordo com o pesquisador, há uma maré conservadora que compõe o cenário de retrocesso. “A arena da política institucional está sendo fortemente influencia por setores religiosos. Temos que entender as organizações religiosas como entidades que integram o jogo político, para não cairmos na ingenuidade de achar que a previsão constitucional de laicidade basta como bandeira de luta. Também na sociedade civil, temos visto o fortalecimento de setores conservadores contrários aos direitos sexuais, como no caso da tentativa de se sustar a resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe propostas de tratamento à homossexualidade. Na própria classe de psicólogos, há muitos profissionais que questionam a resolução. Vivemos um momento perigoso, pois os relatos de homofobia têm sido tornados públicos sem que haja estratégias de conscientização e de enfrentamento. A discussão pública tem retraído. É necessário pensar alternativas de conscientização e combate nessas circunstâncias.”, observa Marco Aurélio.
O relatório, enfatiza o pesquisador, é muito bem-vindo. “É a voz do Estado sobre um fenômeno problemático na sociedade brasileira. Os pesquisadores e os ativistas devem reconhecer a importância de um dado oficial”, afirma Marco Aurélio, que faz uma ressalva. “A compilação dos dados é por meio de canais que não dão conta da realidade. Os números mostrados certamente são inferiores ao que de fato ocorre no país. No entanto, é um sinal relevante de que o Estado brasileiro está, de alguma forma, atento ao problema”, afirma . O relatório da SDH também ressalva que a ausência de uma rubrica de orientação sexual e identidade de gênero nos boletins de ocorrência policial dos Estados (mecanismo existente apenas no Rio de Janeiro) e a não obrigatoriedade de se reportar à União os dados de segurança estaduais e municipais abrem espaço para a subnotificação.
O relatório, cuja elaboração contou com a participação de pesquisadores e ativistas, conclui que a homofobia é um problema estrutural no país, “operando de forma a desumanizar as expressões de sexualidade divergentes da heterossexual, atingindo a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em todos os níveis e podendo ser encontrada nos mais diversos espaços”. Afirma ainda que o fenômeno é mais sentido por jovens e negros/pardos, que devem ser prioridade das políticas de combate à violência homofóbica. “A extensão e a gravidade do problema pedem que as formas de intervenção do Estado sejam mais efetivas. Não apenas com campanhas será possível lutar contra a homofobia. É preciso políticas na área da saúde, da educação, da assistência social, da segurança pública. Políticas que abarquem os diversos âmbitos que constituem uma sociedade cuja homofobia é um problema multifacetado”, conclui Marco Aurélio Prado.