Há pouco mais de um ano, em agosto de 2008, o Ministério da Saúde baixou a portaria nº 1.707 que instituía, no Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador. Esta norma técnica estabeleceu um conjunto de estratégias assistenciais para transexuais que pretendem realizar modificações corporais do sexo, em função de um sentimento de desacordo entre o sexo biológico e o gênero.
A concretização dessa política foi resultado de anos de debates, regulamentações e discussões entre o poder público, a sociedade civil organizada, representantes de classes profissionais e os próprios transexuais. Entretanto, isto não significou a linha de chegada dos debates, muito menos a aceitação plena do que foi implementado. Pelo contrário: existe ainda a clara percepção, entre pesquisadores, de que impasses e desafios impõem-se na agenda pública para que se possa avançar em alguns pontos.
A pesquisadora Márcia Arán, professora do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) e coordenadora da “Pesquisa Nacional sobre Transexualidade e Saúde: condições de acesso e cuidado integral” (IMS-UERJ/MCT/CNPq/MS/SCTIE/DECIT), ressalta a importância das negociações que foram feitas entre vários atores sociais para a construção desta política. A iniciativa do Ministério da Saúde reconhece que a orientação sexual e a identidade de gênero são determinantes e condicionantes da situação de saúde, e que o mal-estar e o sentimento de inadaptação em relação ao sexo anatômico de usuários e usuárias transexuais devem ser acolhidos e tratados pelo SUS, seguindo os preceitos da universalidade, integralidade e da equidade da atenção.
Mas chama a atenção, por outro lado, para a preponderância do discurso médico. “Nessa pactuação, ainda predominam as resoluções do Conselho Federal de Medicina, que considera a transexualidade uma patologia, um transtorno de identidade de gênero”, afirma, jogando luz sobre um dos principais elementos de discussão desta política do SUS: a patologização da condição transexual.
A exemplo de outros países, o Brasil condiciona o acesso ao serviço à definição do diagnóstico de “transtorno de identidade de gênero”. Em artigo de janeiro de 2009 na revista Physis, cujo tema foi “Transexualidade e Saúde”, Márcia Arán, que atuou como editora adjunta deste número, fez um inventário histórico sobre como a medicina e a temática da transexualidade se entrelaçaram de maneira que, até hoje, a literatura médica influencia diretamente as políticas públicas.
Na esteira de um processo de incremento das possibilidades tecnológicas da biomedicina e de maior liberdade sexual, a partir de meados do século XX, a transexualidade foi ganhando terreno nos fóruns acadêmicos e nas ciências. Segundo a pesquisadora, “em meados da década de 1960 do século passado novas teorizações médicas e sociológicas – como os estudos de Harry Benjamin, John Money e Robert Stoller – começaram a esboçar as especificidades da transexualidade que, somadas ao progresso da biologia e da viabilidade técnica para adequação do corpo à identidade de gênero, deslocaram essa experiência de uma situação individual e absolutamente marginal para um problema médico-legal reconhecido e passível de tratamento”.
Neste contexto, o doutor Norman Fisk definiu um primeiro diagnóstico para a transexualidade, categorizando-a como uma patologia. “Isso é um problema sério, porque esse diagnóstico, criado com o objetivo de regulamentar o acesso ao tratamento, acaba estabelecendo um modelo normativo e correcional de sexo-gênero. O que faz com que transexuais acabem se apresentado, muitas vezes, de forma estereotipada e artificial para se encaixar no padrão esperado de masculinidade e de feminilidade condizentes com a noção de ‘transexual verdadeiro’”,observa Márcia Arán.
Em 1980, a condição transexual foi adicionada ao manual de diagnóstico psiquiátrico da Associação de Psiquiatria Americana (APA) e, em 1994, o termo “transexualismo” foi substituído por “transtorno de identidade de gênero” (TIG).
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou, em 1997, a operação de transgenitalização, condicionando-a ao acompanhamento prévio mínimo de dois anos por um médico psiquiatra, dentre outras especialidades. A normatização da transexualidade, portanto, criou, via diagnóstico médico, uma porta de entrada para o processo transexualizador. A própria portaria 1.707 vincula, inclusive, sua efetivação ao atendimento das condições estabelecidas pelo CFM, que determina o diagnóstico, as terapêuticas prévias e o acompanhamento pós-operatório como “atos médicos em sua essência”.
Márcia Arán afirma que a necessidade do diagnóstico de “transtorno de identidade de gênero” como condição de acesso à saúde restringe em muito os processos de cuidado. Segundo a pesquisadora, é necessário construirmos uma noção mais ampliada de saúde, baseada na individualização do cuidado e na integralidade da assistência para que se possa acolher de fato as necessidades de saúde desta população. Essa restrição biomédica, observa, foi determinante para que a pesquisadora, quando psicóloga do Hospital Clementino Fraga Filho (UFRJ) em um programa de assistência a transexuais, vislumbrasse a necessidade de realizar uma pesquisa sobre os Serviços que prestam assistência a transexuais no país com o objetivo de colaborar com a gestão de uma nova política.
“Ao conversar com homens e mulheres transexuais, conviver com eles e elas, no movimento social, ou mesmo a partir da minha experiência clínica, pude perceber que estas pessoas têm várias experiências de construção de gênero e existem várias formas de subjetivação da transexualidade. Na minha opinião, não tem nada que justifique definir a transexualidade como uma patologia, nem mesmo como uma estrutura psíquica. É uma experiência de desacordo entre sexo e gênero que pode se manifestar de diversas formas. Isto não quer dizer que as pessoas trans, assim como qualquer outra pessoa, não possa manifestar uma forma de sofrimento psíquico, principalmente em função da experiência de exclusão social, de discriminação e muitas vezes de injúria e violência, e não possa necessitar ou desejar realizar uma psicoterapia ou um tratamento psiquiátrico”, explica Márcia Arán.
Segundo ela, é preciso pensar e discutir alternativas de regulamentação do acesso à saúde que possam, mesmo reconhecendo o sofrimento psíquico em algumas pessoas, não enquadrá-las em uma patologia psiquiátrica.
Além disto, num cenário de extrema vulnerabilidade de gênero, principalmente em função da dificuldade de mudança da identidade civil, a cirurgia de transgenitalização não pode se tornar uma tábua de salvação, ou seja, uma forma de inclusão social. “É importante considerar em que contexto se dá a opção pela transformação corporal. Alguns homens e mulheres transexuais podem desejar a cirurgia de transgenitalização pela exclusiva necessidade de reconhecimento social, o que nos faz pensar que a cirurgia não necessariamente seria indicada se vivêssemos num mundo onde a diversidade de gênero fosse possível. Algumas destas pessoas, já têm uma vida afetiva e sexual satisfatória e já são reconhecidas pelo gênero que dizem pertencer e em outras condições poderiam permanecer como estão. Porém, outras pessoas consideram a realização de modificações corporais do sexo, inclusive a cirurgia, um evento vital para a construção de si. Entre estes extremos há um continuum de possibilidades que devem ser consideradas. Como por exemplo, muitos homens trans que desejam a realização de cirurgias para a modificação de caracteres sexuais secundários (como a mastectomia – remoção da mama), mas não desejam realizar a cirurgia de transgenitalização, ou o caso das travestis que desejam apenas as modificações dos caracteres sexuais secundários. É por isto que a individualização do cuidado é parte constitutiva de qualquer projeto baseado na integralidade da assistência”, acrescenta Arán.
De acordo com a pesquisadora, “apesar da experiência de vulnerabilidade estar presente na vivência trans, é importante que se diga o quanto estas pessoas conseguem, em situações muito adversas, construir modos de vida satisfatórios, produtivos e alegres”. Um dos maiores entraves para a realização plena de suas vidas não é, a dificuldade de relacionamento afetivo e sexual, nem a construção de redes de amizade, mas a extrema dificuldade de profissionalização proveniente da impossibilidade de mudança do nome civil. Por isto que muitas pesquisadoras já vêm afirmando que a permissão para a troca de nome e sexo no registro civil independentemente da realização da cirurgia, resolveria o problema mais agudo da vida cotidiana de transexuais.
A qualidade das cirurgias é um elemento que também merece atenção. Segundo Arán, “é importante que o Ministério da Saúde possa acompanhar e fiscalizar a qualidade das cirurgias que estão sendo realizadas, e principalmente possa apoiar os Centros de Referência para que eles se transformem em Centros de formação de profissionais, já que este é um dos grandes problemas para a organização de novos serviços. Além disto, observamos que os poucos profissionais que se dispõem a realizar este tipo de assistência, muitas vezes ficam muito sobrecarregados, já que tem a tarefa de realizar a capacitação profissional da equipe interdisciplinar e implementar medidas de humanização, para que se possa garantir um atendimento de qualidade e livre de discriminação”.
É por isto que apesar de constatar que o serviço do SUS ainda necessita de ajustes, Márcia Arán avalia a portaria como uma iniciativa cujos desdobramentos permitem pensar a construção de uma assistência integral. Além disso, a institucionalização do processo transexual por meio do governo joga luz sobre o tema e contribui para consolidar sua inserção na agenda pública.
Por outro lado, as lacunas a serem preenchidas ainda persistem, sobretudo no que diz respeito a uma política de atenção básica destinadas a transexuais e travestis. Márcia Arán explica que as pessoas trans evitam se expor e, por isso, relutam em ir ao posto de saúde. “Então, não adianta haver um centro de referência para um atendimento de alta complexidade e não se ter uma rede de assistência associada. É fundamental que nos municípios e Estados – tanto as secretarias municipal quanto estadual de saúde – comecem realmente a desenvolver uma política de atenção básica”, diz, citando como exemplos bem sucedidos de ambulatórios TT (transexual e travesti) em Uberlândia e na cidade de São Paulo.
Na lista de desafios a serem enfrentados, há a exclusão dos homens trans (pessoas do sexo biológico feminino que se reconhecem como homens) da portaria do Ministério da Saúde, em razão da natureza experimental da cirurgia de transgenitalização de mulher para homem. Apesar do impasse, reconhecido por Arán em virtude da complexidade da cirurgia de construção do neofalo, ela defende que intervenções de caráter secundário como mastectomia e histerectomia (extração do útero) estejam acessíveis a esse público sem a necessidade prévia da cirurgia de transgenitalização. “A idéia seria dissociar esses dois tipos de cirurgia para que os homens trans pudessem realmente ser acolhidos na sua singularidade”, propõe, argumentando que muitas pessoas não pretendem, num primeiro momento, realizar a cirurgia de transgenitalização.
A não inclusão das travestis na portaria é outro problema apontado. A despeito das diferenças em nível de intervenção e alteração corporal, as travestis, por não estarem contempladas dentro da visão correcional, ficam alijadas da assistência. Um dos efeitos dessa exclusão, por exemplo, é a procura por silicone industrial, nocivo e inadequado para uso em pessoas, o que configura uma situação de extrema precariedade e vulnerabilidade, de acordo com Márcia Arán.
Para além de impasses propriamente médicos, outros ainda se configuram. No âmbito jurídico, a modificação do nome é efetuada na maioria dos casos somente após a cirurgia de transgenitalização. Para a pesquisadora do IMS, o ideal seria desatrelar a realização cirúrgica da mudança do nome. Nas circunstâncias atuais, em que os arranjos legais e burocráticos dificultam o processo de mudança da identidade civil, as pessoas trans acabam tendo dificuldade na escolarização e na profissionalização.“Não tem como ter uma política de assistência à saúde no Brasil sem que haja um suporte jurídico para a mudança de nome”, salienta a pesquisadora, apontando a Espanha, onde a alteração na carteira de identidade independe da realização cirúrgica, como uma referência para as discussões.
Mesmo diante de inúmeros desafios a serem trabalhados e enfrentados, a especialista é otimista. Ela lembra que, em 2001, quando iniciou seus trabalhos com o tema, a única referência existente então era o CFM. “De lá para cá, avançamos muito em termos de propostas de pesquisadores, profissionais de saúde e do movimento social (como o movimento LGBT, o coletivo de mulheres que vivenciam a transexualidade e a participação de homens trans). Todos passaram a dar algum subsídio para essa política, principalmente em relação ao que estamos chamando da necessidade da redescrição da experiência da transexualidade, ou seja, da importância do reconhecimento da diversidade da experiência trans”, afirma, elogiando a postura do Ministério da Saúde ao dar chance para que os diversos atores sociais envolvidos possam influir.
“Desta forma, se inicialmente a institucionalização da assistência a transexuais no Brasil esteve associada ao modelo estritamente biomédico, no qual o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero tem como tratamento possível a cirurgia de transgenitalização, hoje esta política de assistência integral permite uma abertura para uma noção mais ampliada de saúde a partir da real necessidade dos indivíduos envolvidos”, conclui.