Com clara motivação religiosa, a Câmara Municipal de Jundiaí, no estado de São Paulo, aprovou em março, por unanimidade (e uma abstenção), uma lei municipal que proíbe a distribuição da pílula do dia seguinte em postos de saúde da cidade. Dias antes da votação, o arcebispo da cidade, d. Gil Moreira, visitou a Câmara Municipal pedindo a aprovação da lei e apresentando o tema da Campanha da Fraternidade deste ano: “Fraternidade e defesa da vida humana: Escolhe, pois, a vida”.
Lançada no início da Quaresma, a Campanha da Fraternidade é realizada anualmente pela Igreja Católica. Nos últimos 40 anos, contemplou temas como violência, desemprego, racismo, meio ambiente, mas desde 1998 tem dado especial ênfase a temas “em defesa da vida”. Em sintonia com o documento da V Conferência de Aparecida, reunião realizada ano passado com a presença do papa Bento XVI, a Campanha de 2008 trata de sexualidade e afetividade, esterilidade, gestação indesejada, de questões de bioética – especialmente as relacionadas às pesquisas com células-tronco embrionárias –, aborto e eutanásia. A escolha desses temas ocorreu em um momento em que o Congresso estuda a possibilidade de descriminalização do aborto e o Supremo Tribunal Federal analisa a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias.
“A Igreja se opõe a qualquer tipo de manipulação de embriões e a outros tópicos relativos à dimensão reprodutiva do ser humano, como a pílula e o preservativo. A resistência a esses temas é aceitável. Inaceitável é dizer que a sociedade está errada e é criminosa, e que Deus mandou fazer de uma determinada maneira. A Igreja não tem competência para dizer que qualquer forma de aborto ou intervenções com células-tronco embrionárias sejam inaceitáveis”, avalia o teólogo Olinto Pegoraro, professor de ética no Departamento de Filosofia e presidente da Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
“A ética laica é fundamentada no princípio da qualidade ou da disponibilidade da vida – o homem se apropria de sua vida, e dispõe dela da maneira que ele acha melhor com uma limitação referente aos efeitos negativos que seu comportamento pode ter sobre terceiros”, analisa o especialista em bioética Fermin Roland Schramm, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Roland lembra que, embora o conceito de fraternidade tenha sido incorporado nos ideais da Revolução Francesa, foi esquecido na articulação com a liberdade e a igualdade. “É o conceito mais difícil dos três, do ponto de vista filosófico. A Igreja aceitou a fraternidade – uma forma não atéia de comunismo – mas nunca aceitou a autonomia individual, por esta ser de fato o que atacava o seu poder. Eles sempre tentaram controlar os indivíduos, como tentam fazer agora através da Campanha da Fraternidade”.
O filósofo e poeta Antonio Cícero considera que as religiões apenas espelham os princípios e a regras que os homens elaboraram para conviver melhor em sociedade. “A prova disso é que, embora muitos dos princípios e regras que os homens se impõem não sejam espelhados pela religião, eles são, no entanto, respeitados”, diz ele.
Ética e razão
Para Marilena Correa, professora do Instituto de Medicina Social da UERJ, ética está relacionada à idéia de que existem valores que definem o que é o bem e o que é justo. “Esses valores, diferentemente de uma visão teológica, podem variar. Culturas diferentes têm visões diferentes do que é ou não é moral. Diferenciar ética e moral é um pouco difícil, não é interessante usar essas palavras de maneira intercambiada”, diz.
Especialistas concordam é que, contemporaneamente – e diferentemente do que a Igreja prega –, não existe somente uma única moral. “Existem grupos sociais que podem ter valores morais diferentes. O desafio é como estabelecer um sistema de tolerância, de respeito. Esse, por exemplo, é um ponto muito importante dentro da discussão ética. E uma ética que não pretende ter uma raiz ou uma base religiosa tem que enfrentar esse desafio”, ressalta Marilena Correa.
Segundo a pesquisadora, pode-se falar, por exemplo, em uma ética da democracia em oposição a uma moral religiosa. “São normas dentro da democracia que se estabelecem para que haja um diálogo e você consiga incluir, cada vez mais, sujeitos e grupos que pensam diferente. Ainda não se inventou um fórum mais interessante que um funcionamento democrático da sociedade. No caso da Igreja Católica, tenta-se impor um código moral fechado ignorando tudo o que acontece na realidade das pessoas e dos grupos, e isso é lamentável”, diz ela.
Na ocasião da visita aos vereadores da Câmara Municipal de Jundiaí (SP), o bispo da cidade carregava o documento base da Campanha, elaborado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para justificar a escolha do tema – a defesa da vida –, o texto é permeado por reflexões do tipo: “Escolhemos o caminho da morte porque não nos abrimos integralmente para a realidade (…) Passamos a acreditar que a ciência e a técnica podem solucionar os problemas, sem a necessidade do compromisso ético (…) Essa limitação de nossa razão nos impede de compreender o que é verdadeiramente o amor (…) Essa razão limitada e esse amor desnorteado não são capazes de perceber a sacralidade da vida humana e a dignidade da pessoa”.
A Campanha da Fraternidade 2008 é coerente com os ditames que a hierarquia católica do Vaticano tem recomendado ao mundo. Sobre esses “limites da razão” – ou “razão limitada” – João Paulo II já havia falado na encíclica Fides et ratio (1998), e, Bento XVI no discurso de Regensburgo (2006).
Fermin Roland interpreta as críticas da Igreja à razão humana como um posicionamento unívoco e reducionista da razão, ao direcioná-la à razão científica e à modernidade. “Ao falar em razão, eles estão se referindo a uma razão instrumental, e reduzir o logos à razão instrumental, científica, é uma operação arbitrária. A razão dialógica é uma maneira de se evitar o reducionismo da razão à mera razão instrumental. Penso que eles acabam por confundir a razão dialógica com a fé. A fé não é o compartilhamento com o logos. Ela implica na submissão do homem a desígnios supostamente divinos e isso deve ser questionado”, observa.
“A ética humana é guiada pela razão, em cima dos fatos que a ciência nos fornece hoje, e não da lição bíblica. A Bíblia não é um documento de preceitos, e sim uma orientação do ser humano para aderir a um certo modo de viver religiosamente. Os homens de Igreja são apenas porta-vozes dos preceitos divinos e bíblicos. Se o pensamento ético-religioso, vindo da Bíblia, tem autoridade, o intérprete dessa autoridade divina é um ser humano – o papa, o bispo e outros. É aí que começa a fragilidade das interpretações”, diz Olinto Pegoraro.
«A meu ver, o que na verdade ocorreu foi que a teologia da Idade Média tardia se deu conta da irrecuperável incompatibilidade entre a razão e a religião revelada, entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, como diria Pascal mais tarde. Pode-se dizer que o positivismo é a opção pelo lado da razão e, por conta disso, justifica-se tomar o positivismo como uma razão diminuída, uma razão que limita a si própria”, ressalta Antonio Cícero.
Vida não nascida?
Logo na introdução do texto base da Campanha da Fraternidade, fica claro que o que está subjacente é a oposição da Igreja a qualquer possibilidade de interrupção da gravidez, fundamentada no princípio de sacralidade da vida. “A Campanha 2008 expressa a sua preocupação com a vida humana, ameaçada desde o seu início por causa do aborto”, lê-se nas primeiras linhas do documento (clique aqui e veja a íntegra do texto).
É claro que a discussão em torno do início da vida não ficaria de fora. Usando uma linguagem científica e citando inclusive a Biologia e a Genética, o texto base afirma que uma nova vida humana começa no exato momento da fecundação, que é o encontro do espermatozóide no óvulo. “Quando os dois gametas se unem, acontece o milagre da vida: forma-se uma identidade genética única, diferente da simples soma das características dos pais, portadora em si mesma de uma programação própria de desenvolvimento. Suas características constitucionais já estão definidas: cor da pele e dos olhos, estatura, tipo sanguíneo, temperamento, etc. Nem sua mãe poderá mudar o seu “ser-pessoa” (…) Embora esteja na mãe, não é a mãe”.
Do ponto de vista ético, respondem os especialistas: “A demarcação do início da vida é aleatória, cultural e temporal. Ela obedece a uma série de variáveis, não pode obedecer a um fenômeno biológico especifico. A Igreja defende que a vida começa no instante da fecundação, no momento da divisão de gametas. Mas é importante diferenciar o fenômeno cientifico – a penetração do espermatozóide no óvulo e a divisão celular – da crença ou fenômeno cultural”, analisa o médico Marco Segre, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP) e membro da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da FM/USP.
Para Olinto Pegoraro, a responsabilidade da reprodução é da razão, não da religião. “A reprodução é uma decisão dos pais. Igreja é particularmente contra o aborto porque, para ela, em cada concepção Deus intervém produzindo a alma espiritual. Então, todo embrião é obra de Deus e nela não se toca. Este é o princípio diretor, por isso a Igreja se opõe a qualquer tipo de aborto. É preciso que a Teologia caminhe com os tempos, sem negar seus princípios, mas sabendo aplicá-los hoje. O mundo não está querendo produzir abortos de forma desmedida, mas existem situações em que o aborto deve ser encarado como uma possibilidade ética a ser considerada”, defende.
Fermin Roland sustenta que o importante do ponto de vista ético não é quando começa a vida na perspectiva biológica. “É claro que no momento da junção de dois gametas se tem uma nova entidade biológica, mas não se pode dizer que isto vai ter uma potencialidade de vida. O importante é que tipo de vida é relevante do ponto de vista ético. Acho que é a vida de relação, não a célula ou zigoto enquanto tal. O importante é o momento em que se estabelece uma relação e quando essa relação é aceita e acolhida pela hospedeira – termo epidemiológico que se refere à dona do útero que hospeda esse novo ser”, explica.
Segundo ele, se uma gestante não aceita essa relação, pelas mais variadas razões, essa relação ética passa não existir e não pode ser imposta por terceiros – seja pela Igreja, pela família, pelo companheiro daquela mulher ou pela sociedade. “Penalizar essa mulher é problemático, visto que as mulheres são donas de seus próprios úteros – porque o feto está dentro de seus úteros e não dos neurônios do papa. O direito dela prevalece sobre os demais eventuais direitos que Igreja, Estado, família ou companheiro possam ter”, ressalta Fermin.
“Não se pode dizer que o embrião não está vivo e que antes da fecundação não há vida, mas esta vida pode ser desprezada em favor do avanço da ciência e da medicina. No judaísmo, a vida passa a ser respeitada a partir do momento da expulsão da cabeça fetal, no momento do nascimento. Antes disso, considera-se que em função da saúde da mãe, esta vida pode ser tolhida. Vida existe sempre, mas é necessário ver em que circunstâncias esta vida pode ser violada ou não”, conclui Marco Segre.
No livro “A moralidade do aborto” (EDU/1997), o bioeticista italiano Mauricio Mori, professor da Universidade de Turim, analisa a posição da Igreja sobre o aborto ao longo dos séculos e mostra que somente na década de 1950 o direito canônico passa a considerar o aborto um crime contra a vida. Até então, era considerado um crime contra a família, porque pressupunha que a mulher havia tido uma aventura extraconjugal.
O livro faz uma distinção entre o princípio da sacralidade da vida e o princípio da qualidade de vida. Segundo o autor, o primeiro seria o pressuposto de todas as éticas religiosas monoteístas e de todos os dispositivos de poder que não colocam em questão suas escalas de valores. Por sua vez, o princípio da qualidade da vida e do bem estar é o fundamento das éticas laicas e seculares. Para ser coerente com um estado laico e com uma sociedade democrática, Fermin Roland sugere outro título – mais amplo e abrangente – para a campanha desse ano: ‘Fraternidade e defesa da qualidade de vida humana: Escolhe, pois, a ética’.