A supressão da expressão “direitos reprodutivos” do texto final da Conferência Rio+20 não pode ser interpretada como um fato isolado. Pelo contrário, reflete um horizonte de tensas disputas – que se arrastam há décadas – marcadas pela atuação de forças religiosas conservadoras combativas. Em jogo, a autonomia e a liberdade das mulheres, cujas vidas parecem cada vez mais vulneráveis, na medida em que tradicionais defensores dos direitos humanos recuam ante a prioridades econômicas que compõem a geopolítica mundial.
A atuação de setores religiosos dogmáticos é uma constante histórica. Nos anos 1990, durante as Conferências da ONU sobre População e Desenvolvimento (Cairo/1994) e sobre as Mulheres (Pequim/1995) que definiram e consagraram os direitos sexuais e reprodutivos como diretrizes a nortear os países-membros das Nações Unidas, tais forças, capitaneadas pelo Vaticano, tentaram impedir a elaboração de princípios progressistas para a vida das mulheres.
Na posição de líder conservador, o Vaticano sempre teve forças auxiliares – na América Latina, Nicarágua, Honduras e El Salvador integram a tropa de choque do Estado papal – para atuar nos fóruns internacionais. Esta aliança – chamada criticamente pelos movimentos sociais de “unholy alliance” – tornou-se uma presença constante nas negociações internacionais que tratam das questões sexuais e reprodutivas. A visão dogmática de sacralização da vida norteia tal postura, trazendo tudo o que diz respeito a eventos biológicos para o campo da política. Não é por outro motivo que temas como aborto, eutanásia e pesquisas com células-tronco são empalmados como bandeiras de luta.
Nas revisões das Conferências dos anos 1990 – Cairo+5 e Pequim+5 –, houve uma forte atuação destes setores. “Não há nada de novo na pressão que forças conservadoras fazem nas arenas internacionais. O que é novo é o recuo de atores que tradicionalmente sempre se colocaram na defesa das mulheres. Infelizmente, há uma perda de força de vozes progressistas nas deliberações que se dão em fóruns internacionais”, afirma Sonia Correa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política.
Nas negociações do texto final da Rio+20, apenas EUA e Noruega tiveram uma posição mais explícita de contrariedade com a retirada do termo. Em seu discurso na Conferência, a secretária de estado norte-americana, Hillary Clinton, afirmou ser necessário assegurar os direitos reprodutivos das mulheres e que tais direitos devem ser respeitados em acordos internacionais.
Já países como o Brasil, que nos anos 1990 teve uma atuação consistente em prol da elaboração de princípios favoráveis às mulheres, preferiram o silêncio. Mesma atitude teve a União Européia, que permaneceu calada.
Nos últimos anos, a pressão de setores conservadores liderados pelo Vaticano e por países islâmicos tem encontrado um flanco aberto para sua artilharia. No final de 2011, durante exposição do relatório especial sobre saúde, de Anand Grover, na Assembleia da ONU, houve ataques de diversos países. O texto definia a criminalização do aborto como uma violação de direitos humanos e pedia, neste sentido, o fim de legislações penais sobre o tema. Tradicionais promotores dos direitos femininos permaneceram em silêncio, como o Brasil, onde a vida reprodutiva das mulheres – fator relevante nas estatísticas de mortes – ainda é vista predominantemente pela ótica do controle religioso e da moral.
O silêncio de antigos aliados na luta pela autonomia feminina é um reflexo da configuração das relações internacionais nos tempos atuais. Sobretudo a partir da subida ao poder de governos de esquerda, houve uma intensificação dos elos entre países do Hemisfério Sul. Nesta dinâmica, a agenda econômica determina o rumo das condutas governamentais. Em prol da união do G77 (grupo de países em desenvolvimento), direitos reprodutivos e sexuais tornaram-se moeda de troca na Rio+20. Em tempos de crise econômica mundial, salienta Sonia Correa (foto), “há um tensionamento da geopolítica diante dos efeitos gerados pelas dificuldades financeiras dos Estados. Entrincheirados na defesa de suas economias, os governos usam os direitos sexuais e reprodutivos como escambo”, observa.
A situação interna dos direitos femininos, em muitos países, também deve ser compreendida no bojo do recrudescimento das pressões de setores conservadores. Em 2007, para obter sustentação política, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, patrocinou a criminalização do aborto em todos os casos. Anos antes, em 2004, a descriminalização do aborto no Uruguai – país tradicionalmente aberto aos direitos femininos e reconhecido como dos mais laicos da América Latina – chegou ao Congresso e, desde então, está travada diante das conveniências políticas.
Nos Estados Unidos, nos últimos anos, movimentos conservadores têm sistematicamente atuado contra a legalidade do aborto. Sobretudo após a passagem de George W. Bush pela presidência do país (2001-2009), tais segmentos têm atuado ostensivamente contra a legalidade do aborto – estabelecida em 1973 pela Corte Suprema do país. No início do ano, houve uma forte pressão contra medida do presidente Barack Obama que obrigava os empregadores a distribuir métodos anticoncepcionais aos funcionários. A Igreja Católica protestou, justificando que a iniciativa infringia a liberdade religiosa ao obrigar as instituições ligadas à Igreja a também oferecerem anticoncepcionais. Pressionado, o presidente Obama recuou e disse que as instituições poderiam alegar “objeções religiosas” para não distribuir os medicamentos.
A atuação consistente, organizada e bem financiada de grupos conservadores nos EUA tem gerado efeitos. Segundo pesquisa do Instituto Gallup, atualmente o apoio à legalização do aborto é de 41%, cifra bem abaixo dos 56% mensurados em 1995.
O silêncio da União Europeia espelha o estado interno de muito de seus países membros. Logo após assumir o governo da Espanha, o primeiro-ministro, Mariano Rajoy, sinalizou que alteraria a lei de aborto. O ministro da Justiça, Alberto Ruiz-Gallardón afirmou que a lei seria reformulada sob o pressuposto de defesa da vida e proteção de indefesos. Atualmente, a interrupção voluntária da gravidez é permitida até a 14ª semana de gestação sem qualquer justificativa.
Outros países também têm apresentado um endurecimento na questão do aborto. As iniciativas se proliferam pela Europa. No ano passado, o governo da Hungria, chefiado pelo ultra-conservador Viktor Orban, incluiu na Constituição “a proteção da vida desde a sua concepção”. Na Suíça, movimento pró-vida conseguiu mobilizar mais de 100 mil pessoas e apresentar no Parlamento uma iniciativa popular para proibir o financiamento público do aborto. Na Rússia, um projeto de lei pretendia que mulheres fossem obrigadas a ouvir o coração do feto. Medidas contra o aborto também foram articuladas na Romênia.
No caso brasileiro, a conduta do governo Dilma Rousseff tem sido alvo de críticas de movimentos que lutam pelos direitos humanos. A presidente, que integra um governo associado a um partido e a uma história de esquerda, tem cedido em termos de direitos femininos desde os tempos de campanha, e a integralidade da saúde da mulher em todos os seus eventos reprodutivos parece ser uma carta fora do baralho das opções de suas políticas. Basta lembrar a MP 557, medida provisória que, editada no recesso do final de 2011, despertou revolta entre as feministas ao prever a criação de cadastro de acompanhamento das mulheres grávidas, o que foi considerado uma espécie de “vigilantismo reprodutivo” que deixava de lado problemas como a qualidade da assistência médica. Tudo isso em um país onde a mortalidade materna está longe das metas do milênio estipuladas pela ONU: no quadro atual, são 56 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos. A ONU vê como meta o número de 35 para cada 100 mil.
A questão dos direitos femininos não pode ser avaliada sem uma leitura da configuração parlamentar. Como em diversos países ao redor do mundo, o Congresso brasileiro vem se mostrando um solo fértil para que setores conservadores finquem terreno e batalhem, institucionalmente, pela agenda contra os direitos sexuais e reprodutivos. Um exemplo de ação é o Estatuto do Nascituro, projeto em trâmite no Parlamento que concede direitos e proteção jurídica ao feto.
As condições políticas atuais estão acirradas. Tanto no plano interno como no plano externo, os direitos femininos estão sob constante ameaça. A inoperância de Estados historicamente atrelados a uma agenda propositiva e o recrudescimento de forças conservadores compõem um cenário inquietante. Até que ponto a vida das mulheres – que representam mais da metade da população mundial – deve ser decidida em razão das conveniências geopolíticas e político-eleitorais? Não deveria a política estar a serviço dos cidadãos e seus direitos, ao invés de servir a determinações econômicas e pressupostos dogmáticos? A resposta para os movimentos de mulheres é fácil e óbvia, assim como as soluções. Difícil parece ser integrar tais soluções às agendas dos Estados nacionais.
Enquanto isso, o panorama atual exige que os movimentos feministas intensifiquem a mobilização em todos os espaços e fóruns de discussão e deliberação. A Rio+20, apesar do retrocesso relativo ao texto final, demonstrou que a bandeira dos direitos femininos tem sido empalmada por diferentes vozes. “As demandas das mulheres, felizmente, têm sido incorporados por outros atores do campo dos direitos humanos, o que fortalece a luta. Apenas por meio de contestação conseguiremos avançar”, conclui Sonia Correa.
Clique abaixo para ler artigos do Observatório de Sexualidade e Política:
O Kamasutra de Bush – sobre os efeitos globais das política sobre sexualidade de George W. Bush
Diálogo Latino-Americano sobre Sexualidade e Geopolítica – coleção de textos que tratam sobre o contexto das políticas sexuais na América Latina