Certa vez, ao entrevistar um antropólogo cujo foco de pesquisa era a sexualidade, o repórter de uma rede de televisão, antes de fazer uma pergunta e julgando que o especialista pudesse achar sua questão simplista demais, foi logo se desculpando: “O senhor desculpa a pergunta, mas é que o conhecimento de um jornalista tem quilômetros de extensão e centímetros de espessura”. O antropólogo não avaliou inadequada a pergunta do jornalista, mas o exemplo revela a árdua tarefa da mídia – e o receio de muitos repórteres – em abordar um tema que envolve tabus sedimentados. O assunto abrange um conjunto de temáticas que em geral são enfocadas pelos veículos de comunicação de forma estereotipada e frequentemente conservadora. Nesse sentido, o texto da matéria “Como mudar de sexo”, capa da edição de número 43 da revista brasileira Piauí, é um excelente exemplo de pesquisa jornalística bem realizada que, através da adequação de linguagem e de abordagem ao tratar do tema da transexualidade, pode servir de inspiração a outros profissionais de Comunicação na hora de escrever um bom texto sobre sexualidade.
Em seis páginas da revista formato tablóide, a jornalista Clara Becker mostra como funciona o processo transexualizador no ambulatório de urologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ), referência em cirurgia reconstrutora genital, onde o urologista Eloísio Alexsandro realiza procedimentos de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Sem cair em clichês, a jornalista acompanha a rotina do médico e de seus/suas pacientes, relatando suas vidas e expectativas em relação à operação.
Foram três meses de apuração, termo no jargão jornalístico equivalente à “investigação” que se faz em um trabalho de campo para uma pesquisa acadêmica. A jornalista pesquisou e leu trabalhos de autores como o da socióloga Berenice Bento – “O que é transexualidade” (Editora Primeiros Passos) e partes de sua tese de doutorado, que resultou no livro “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual” (CLAM/Ed. Garamond). Outros autores como Judith Butler e Harry Benjamin, o famoso endocrinologista alemão que em 1966 publicou o livro “O fenômeno transexual”, também foram importantes fontes. Clara conversou com especialistas no tema, como o bioeticista Aníbal Guimarães (Fiocruz) e a pesquisadora Márcia Arán, professora do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) e coordenadora da “Pesquisa Nacional sobre Transexualidade e Saúde: condições de acesso e cuidado integral”.
Apesar de todo o embasamento teórico, provido por pessoas de uma academia mais militante, Clara lembra que, em uma primeira versão, o vocabulário que usou fez com que o texto ficasse um pouco pesado, acadêmico demais. “Teria que ficar mais leve. Por isso, mesmo juntando informações de um especialista e outro que me ajudaram a entender o fenômeno, não procurei fazer um texto com viés mais político, na versão final”, conta.
A opção por uma “gramática” e pelo uso de termos específicos para o tratamento das questões que envolvem os direitos das minorias sociais (mulheres, homossexuais, negros, índios, entre outras) é uma das principais reivindicações de pesquisadores e militantes dos diversos movimentos e também motivo de preocupação e cautela para o profissional de Comunicação que escreve sobre tais segmentos e assuntos. Sugere-se, por exemplo, que a palavra homossexualismo, que remete à doença, seja substituída por homossexualidade. Recentemente, em uma esmerada reportagem de TV sobre um projeto de lei de Uganda que propõe a pena de morte a pessoas homossexuais, o jornalista só pecou ao usar o tempo todo o termo homossexualismo. Por sua vez, a “gramática” da transexualidade determina que falar em «o transexual» significa reforçar o caráter de aberração e universalidade desta aberração. Há esse resvalo na matéria da Piauí. Clara Becker explica: “Como optamos por não usar as siglas MTF (male-to-female) ou FTM (female-to-male), achamos que o uso do artigo ‘o’ resumiria a ideia”.
“A questão é que as pessoas transexuais não são uma ‘espécie’, com características universais que os unifica em uma identidade desvinculada de contextos geopolíticos, religiosos, classe social, posições político-ideológica, etnia, biografia”, avalia a socióloga Berenice Bento. Para ela é imprescindível tanto em textos jornalísticos quanto acadêmicos, para uma boa análise da transexualidade, “a pluralidade interna entre as pessoas que vivenciam conflitos com o gênero atribuído ao nascer. Algumas pessoas transexuais querem a cirurgia, outras não. Algumas mulheres transexuais se posicionam como feministas; outras acreditam que o melhor dos mundos é o estruturado no binarismo; há homens transexuais gays; outros são machistas e outros ainda libertários. O que há de mais interessante na transexualidade e travestilidade é apontar as diversas expressões que o gênero pode assumir”, diz.
Berenice assinala um ponto importante na reportagem da Piauí, ao tratar da classificação da transexualidade como doença pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (APA). “É necessário discutir a farsa da patologização da transexualidade. Ao se afirmar que há ‘transtorno de identidade de gênero’ está se afirmando que uma categoria cultura (masculino e feminino) foi apropriada pelas ciências psi e pela bio-medicina como categoria diagnóstica. Portanto, a luta contra a patologização da transexualidade é mais ampla. Estamos tentando apontar que os critérios para se definir ‘o transexual de verdade’ reforçam as normas de gêneros que aprisionam a todos/as”, afirma a socióloga.
Para ela, também é imprescindível desvincular as transformações corporais (inclusive as cirurgias de transgenitalização) da mudança dos documentos. “O fim do diagnóstico de gênero não pode retirar do Estado a obrigação de assegurar a integralidade do atendimento à saúde física e mental. Nesse sentido, a mudança dos documentos deve ser assegurada, não como uma boa vontade de um/a juiz/a progressista, mas como dever do Estado”.
Professor do departamento Interdisciplinar da Universidade Federal Fluminense (UFF) e usuário do programa GEN – Grupo de Atenção Integral às Pessoas que Vivenciam a Transexualidade do Hospital Pedro Ernesto, o assistente social Guilherme de Almeida considera a matéria da Piauí, de maneira geral, boa e oportuna, ao discutir na grande mídia um tema que ainda não tem visibilidade. No entanto, Guilherme acha que ainda que a reportagem comece com uma experiência masculina, um problema é que todas as falas de profissionais referidas ao longo da matéria tratam unicamente as/os usuárias/os a partir do gênero feminino. “Embora ousadamente comece com a experiência de um jovem FTM (female-to-male), o texto limita-se a esta única experiência masculina. O mais grave neste caso é que, mesmo sendo o único caso relatado, a jornalista foca apenas na mãe do rapaz e no médico e fica nos devendo a leitura do próprio sujeito sobre sua decisão de vir ao programa e suas experiências de sofrimento e discriminação, como faz em todos os outros casos. Além disso, a abordagem da transexualidade masculina termina com a palavra ‘risco’ e na ênfase no caráter experimental das cirurgias genitais, o que soa um tanto pessimista. A matéria também falha ao historicizar as cirurgias feitas para MTF (male-to-female) e não fazer o mesmo com as cirurgias FTM”, argumenta Almeida.
Como se vê, o cuidado com a “gramática” e a terminologia não deve se limitar somente ao como e o que deve ser dito, mas também a palavras que devem ser evitadas. Na hora de se escrever uma reportagem, é importante evitar preconceitos para não incorrer em desserviços, por melhores que sejam as intenções do jornalista. Foi assim no caso do envolvimento do jogador de futebol Ronaldo com três travestis no Rio de Janeiro, descoberto pela imprensa em abril de 2008. Na ocasião, a revista Época, uma das principais publicações semanais brasileiras, apresentou o tendencioso título “Por que os homens procuram travestis”. Apesar de contar com análises de renomados especialistas em sexualidade e líderes do movimento trans, o texto apresentava erros “gramaticais” – como no trecho em que falava na “sedução exercida pelos travestis” – e trazia ainda um questionamento moralista: «Está bem da cabeça um homem casado (…) que paga R$ 40 por uma hora de sexo com um homem que parece ser mulher?”. Ou seja, de nada adiantava o texto da revista apresentar análises consistentes se a conclusão colocava a questão na vala comum onde sempre esteve: no rol das praticas condenáveis.
Embora muito melhor escrita, a matéria da Piauí, segundo algumas vozes, comete alguns tropeços. “A edição da fala da professora Heloísa Helena fortalece a visão de que existe uma personalidade típica das MTF: não feminista, submissa, recatada, delicada… e compromete a afirmação da diversidade de experiências de mulheres e homens transexuais, que aparece em outros momentos do texto. Embora retrate posicionamentos diferentes, mesmo entre os que são especialistas no tema, politicamente contribui para a reificação dos comportamentos e fortalece a patologização dos mesmos”, analisa Guilherme de Almeida.
Sugestões válidas, mas, como explicou Clara Becker, a intenção não foi fazer um texto com viés político. “A Academia tem uma linguagem muito própria, muitas vezes difícil de ser entendida pelo grande público”, diz a jornalista, referindo-se aos modos e estilos de linguagem acadêmicos. Segundo ela, não se deve esquecer também que a «gramática» apregoada pelos movimentos sexuais ou pelos estudiosos do tema da sexualidade, tanto pode favorecer a compreensão dos fatos quanto dificultar a inteligibilidade do público. Um exemplo é a palavra “homofobia”, atualmente usada como baluarte do movimento LGBT na luta contra a discriminação e o preconceito por orientação sexual. Como o termo causa dissensões e dúvidas dentro do próprio movimento e das universidades, a grande imprensa evita usá-lo. O argumento pode ser válido nas duas direções. A sigla LGBT foi aos poucos sendo assimilada pelo grande público, que antes estava acostumado a falar em “movimento gay” ou “GLS”.
A reportagem da revista Piauí sinaliza um avanço, mostrando como a mídia em geral, e o jornalismo em particular, podem ser ferramentas de disseminação de abordagens inteligentes de assuntos complexos.