Em entrevista a um portal de notícias na semana passada, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, defendeu a legalização do aborto como forma de conter a violência urbana no Estado, afirmando que as taxas de fecundidade entre mulheres residentes nas favelas são uma «fábrica de produzir marginais». O governador declarou ainda que existem «dois brasis», um com padrão de fecundidade de países nórdicos, como a Suécia, e outro com nível de pobreza e fecundidade comparáveis a países miseráveis africanos. As declarações de Cabral geraram um intenso debate entre pesquisadores, políticos e articulistas da grande mídia brasileira em torno dos temas aborto, fecundidade, violência e pobreza.
Na verdade, a discussão não é nova. A associação entre esses temas tem sido recorrente: em março deste ano, no artigo O mal-estar brasileiro não é responsabilidade das meninas pobres, em resposta a um texto assinado pelo jornalista Zuenir Ventura, publicado no jornal O Globo, a antropóloga Maria Luiza Heilborn, coordenadora do CLAM, já chamava a atenção para o que ela designou como um “esquema intelectual viciado”. Coordenadora nacional da pesquisa Gravidez na Adolescência (GRAVAD), Maria Luiza referia-se à equação reducionista segundo a qual “a reprodução entre os pobres é igual à invasão das hordas de criminosos que assola as grandes metrópoles brasileiras (…) Sair deste esquema de relação causa/efeito é o que pode nos levar a ter um debate sério”, assinala a antropóloga..
As afirmações de Sergio Cabral de que as taxas de fecundidade nas favelas cariocas são semelhantes às de países como Gabão e Zâmbia também chamaram a atenção de demógrafos, os quais criticam não somente a imprecisa comparação estatística feita pelo governador – nas favelas cariocas, a taxa de fecundidade é de 2,6 filhos por mulher, contra 1,7 no resto da população carioca; 2,1 na estatística nacional e 5,4 e 6,1 nos países citados (o dobro das favelas) – como também o fato deste, para sustentar sua tese, ter recorrido a um capítulo do livro «Freakonomics», no qual Steven Levitt e Stephen J. Dubner afirmam que a redução da violência nos Estados Unidos, no final do século passado, pode ser atribuída, em grande parte, à legalização do aborto pela Corte Suprema daquele país, em 1973.
“Cabral praticou uma impostura quando embaralhou uma questão de direito – a decisão da Corte Suprema que, em 1973, legalizou o aborto nos Estados Unidos -, com as estatísticas do crime nos anos 90. A Corte decidiu uma dúvida constitucional: o direito da mulher de interromper a gravidez. Esse é o verdadeiro e único debate do aborto”, escreveu o jornalista Elio Gaspari, no jornal O Globo (ed. 28 de outubro). Gaspari salienta ainda que o governador se equivocou ao citar Levitt, uma vez que, embora o economista tenha indicado que o aborto fora responsável por até 50% da queda na criminalidade americana, em momento algum apresentou-o como alternativa para o controle da natalidade.
No artigo “Os perigos da simplicidade”, publicado na Folha de São Paulo (ed. 27 de outubro), o demógrafo George Martine, presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), e a antropóloga Sonia Corrêa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), afirmam: “Não se deve fazer ilação direta entre número de filhos e violência; nesse caso, o Maranhão (estado brasileiro), onde a média de filhos atinge 3,2 por mulher, seria campeão da violência”. Para eles, “as declarações do governador Sérgio Cabral a respeito da legalização do aborto como forma de conter a violência refletem uma lógica simplista: pobre tem filho demais e isso gera mais pobreza, que, por sua vez, gera violência (…) A singeleza de tais raciocínios seduz a opinião pública, escamoteia as principais causas de problemas sociais complexos como a violência e faz dos pobres, principalmente as mulheres, seus bodes expiatórios”.
“O aborto não é uma questão de segurança pública, mas sim de saúde pública. O Planejamento Familiar é uma questão de direitos reprodutivos e não de combate à pobreza. O Estado brasileiro precisa garantir políticas de acesso às informações e aos métodos contraceptivos, precisa garantir a segurança pública e precisa promover políticas de crescimento econômico sustentável para erradicação da pobreza”, ressalta o demógrafo José Eustáquio Alves Diniz, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ENCE/IBGE).
Por outro lado, Sonia Corrêa e George Martine acham louvável o governador Sérgio Cabral ter se posicionado a favor da descriminalização, considerando o aborto um grave problema de saúde pública. ”Entretanto, é preciso sublinhar que, historicamente, as políticas de controle da fecundidade que fizeram recurso ao aborto de maneira instrumental, seja por motivações eugênicas, seja como caminho para solucionar problemas sociais complexos, não apenas foram condenadas como abuso dos direitos mas também não tiveram os resultados esperados”, observam os pesquisadores no artigo.
Recente relatório da Organização Mundial da Saúde e do Guttmacher Institute (revista ‘Lancet’, 13/10) mostra uma significativa diminuição de mais de 40%, em oito anos, na taxa de aborto nos países da Europa Oriental em razão do aumento no acesso e utilização de métodos anticoncepcionais modernos, sem mudanças na legislação sobre o aborto.
As críticas ao pronunciamento de Cabral sinalizam que o debate acerca dos direitos sexuais e reprodutivos não pode ser utilizado politicamente como instrumento de combate à pobreza e à criminalidade, escondendo a ineficiência do governo do estado no enfrentamento da violência urbana.
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