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“Iglesias inclusivas”

Auto-denominada “inclusiva”, a Igreja Cristã Contemporânea integra um movimento de vertente evangélica que não vê a homossexualidade como uma doença a ser curada. Muito pelo contrário. Tais congregações religiosas, pesquisadas pelo antropólogo Marcelo Natividade em sua tese de doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCS/UFRJ), têm um discurso positivo em relação à diversidade sexual, abrindo a possibilidade para que lésbicas e gays se tornem não apenas fiéis, mas também pastores.

“Ser gay dentro de uma igreja conservadora é uma impossibilidade, não há lugar para essa pessoa, a menos que ela venha a aderir à norma e se torne ex-homossexual, por exemplo. A diferença do movimento inclusivo para as outras igrejas é que nele o poder eclesial é concedido às pessoas LGBT, já que há uma proposta política de desconstrução da homofobia religiosa”, explica Natividade.

Do lado de fora de uma delas, sediada na Lapa, tradicional bairro boêmio do Rio de Janeiro, um letreiro sugere o que lá dentro se deve encontrar: uma igreja “diferente, ungida e sem preconceitos”. De maneira geral, observa o pesquisador, as igrejas inclusivas têm o compromisso de construir uma teologia que entenda positivamente a diversidade sexual e, nesse sentido, a própria homossexualidade. “Orientações sexuais plurais podem ser vistas como uma benção divina, uma obra de Deus, algo natural. É uma perspectiva de aceitação”, afirma Natividade.

Assim, passagens da Bíblia que geralmente são lidas como “prova” de que a homossexualidade é pecado são, em algumas dessas igrejas, reinterpretadas. A tentativa, segundo o antropólogo, é de compreender tais passagens a partir de uma perspectiva histórica e contextual. O pecado que levou à destruição das cidades de Sodoma e Gomorra – atribuído à homossexualidade por evangélicos conservadores – é compreendido, por exemplo, como resultado do sexo não consentido. Como este, vários trechos são relidos, buscando-se reconstruir a exclusão do povo LGBT da teologia cristã tradicional. Outro esforço dessas igrejas é no sentido de comparar as traduções bíblicas, já que, segundo avaliam, algumas são especialmente excludentes. Por fim, há iniciativas que tentam ainda resgatar a participação de pessoas LGBT dentro da própria história bíblica.

Natividade, porém, chama atenção para o fato de que o movimento inclusivo é bastante plural, havendo consideráveis variações entre as igrejas que dele fazem parte. Nesse sentido, mesmo que praticamente todas compartilhem um ethos evangélico – o pesquisador localizou apenas um grupo católico –, é possível observar ênfases diferenciadas em relação às cosmologias. Isto é, enquanto algumas podem ser consideradas “mais protestantes”, na medida em que privilegiam a palavra bíblica e a liturgia – como é o caso daquelas que promovem uma releitura da Bíblia –, outras se identificam mais com igrejas pentecostais, enfatizando experiências místicas, em cultos que têm como marca a emoção e a entoação de louvores.

Segundo o pesquisador, o fato de as igrejas inclusivas serem majoritariamente evangélicas encontra relação com a própria dinâmica da expansão dessas igrejas no Brasil, que está diretamente associada à ausência de uma hierarquia religiosa centralizada, como ocorre com a Igreja Católica. Este fator permite que o universo evangélico desfrute de uma maior liberdade, já que é “possível sair de uma igreja e fundar outra que seja mais adequada ao ethos privado dos fiéis”, observa Natividade, que destaca a existência de um variado mercado de ofertas religiosas.

Durante a pesquisa, o autor buscou recuperar a história do movimento inclusivo no Rio de Janeiro e, nesse processo, analisa o surgimento da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM) no Brasil para, dois anos mais tarde, investigar a cisão que deu origem à Igreja Cristã Contemporânea (ICC).

Fundada nos Estados Unidos, a ICM possui um viés ativista, identificando-se como uma igreja que tem como proposta a defesa dos direitos humanos, o que inclui a luta contra a homofobia religiosa. A ICM chegou ao país em 2003, mas já durante a década de 1990 havia um intenso contato entre militantes brasileiros – entre os quais representantes do movimento Atobá – e membros da igreja.

“Fui à primeira conferência da ICM no Brasil, em 2004, e lá assisti a um show de drags gospel. Era o louvor cantado por uma drag. A igreja tem essa dimensão, que é a de produzir uma teologia aberta para a diversidade sexual”, conta Natividade, lembrando ainda do lançamento do primeiro CD gospel cantado e direcionado a pessoas LGBT.

De acordo com o antropólogo, a ICM, no Rio de Janeiro, e a Igreja Acalanto, em São Paulo, despontaram como as primeiras igrejas no Brasil abertamente voltadas para a inclusão da população LGBT. Dois anos depois, porém, teve início a autonomização da matriz americana, que deu origem à Igreja Cristã Contemporânea. Tal processo veio acompanhado de uma busca por construir uma identidade brasileira que singularizasse a congregação religiosa, o que se traduziu na adoção de um viés que se poderia definir como “mais pentecostal”. Além do nome, portanto, as mudanças implicaram também em um rompimento com a proposta ativista que predominava na igreja vinda dos EUA.

“Quando retornei para iniciar o campo foi justamente nesse momento de separação e aí o trabalho foi o de buscar entender essa nova identidade que a igreja estava tentando assumir”, revelou Natividade. Uma das preocupações da nova denominação era a de não ser identificada como uma “igreja gay”, propondo-se a se tornar uma igreja para todos os excluídos. “A idéia era ampliar o público dessa igreja, chamar os heterossexuais, os divorciados, os negros, transformar a Igreja Cristã Contemporânea em uma igreja aberta a todos, não direcionada a um grupo especifico”.

Na prática, destaca o pesquisador, o dilema que hoje permeia o movimento inclusivo – e que também está presente no movimento gay – é exatamente esse: a tensão entre adotar uma estratégia particularista, o que implica na criação de igrejas específicas e na disseminação da idéia de um orgulho gay, ou optar por um discurso universalista, que minimiza as diferenças e prevê a criação de igrejas para todos, homossexuais inclusive.

O mesmo dilema se reflete nos posicionamentos adotados pelas duas congregações religiosas. A ICM, por um lado, assume um discurso de orgulho da diferença e crê que, para combater a homofobia religiosa, é necessário que inicialmente haja uma igreja específica. Além disso, é freqüente a participação de líderes dessa instituição em paradas gays e fóruns políticos LGBT, contribuindo para a discussão, por exemplo, da implementação do PL122/2006, que prevê a criminalização da homofobia. A estreita relação entre a ICM e a militância se comprova no fato de a igreja funcionar dentro da sede do Grupo Corsa, reconhecida organização ativista de São Paulo. Outra atuação da congregação religiosa está relacionada à luta contra a Aids, bandeira que levanta desde sua fundação, assim como a denúncia da exclusão de pessoas LGBT da história do cristianismo. Por outro lado, a ICC revela uma preocupação em ampliar o universo de fiéis, buscando atrair para os cultos também heterossexuais. Nesse processo, o foco é transferido aos excluídos de maneira mais ampla, como mulheres, negros e todos aqueles que por algum motivo não tenham encontrado espaço nas igrejas cristãs devido aos dogmas. Por trás dessas mudanças está, segundo Natividade, a intenção de se tornar uma igreja legitimamente aceita no universo hegemônico, livre dos estigmas comumente imputados aos homossexuais.

“Eles vão aderir a uma visão, presente no universo religioso mais amplo, de que a sexualidade deve ser regulada. Em termos de uma moral sexual, portanto, eles têm maior diálogo com as igrejas mais convencionais, embora entendam que a missão de seu grupo também esteja associada à desconstrução da homofobia religiosa. A monogamia e as relações conjugais estáveis são valorizadas nesse ambiente religioso inclusivo mais pentecostal. Nesse sentido, há toda uma tentativa de formular os princípios de uma homossexualidade santificada, cristã”, em continuidade com certos valores do ethos evangélico hegemônico, destaca o pesquisador.

O aumento do rigor em termos doutrinários se traduziu na ampliação do número de fiéis: no período em que foi conduzida a pesquisa a Igreja Cristã Contemporânea passou de 20 membros para cerca de 200, muitos dos quais homossexuais provenientes de outras igrejas evangélicas, como a Assembléia de Deus, a Batista e a Universal do Reino de Deus. No entanto, a igreja inclusiva com maior número de fiéis hoje no Brasil se encontra em São Paulo. Batizada de Comunidade Cristã Nova Esperança, também de vertente pentecostal, a igreja conta com aproximadamente 400 membros. Natividade destaca ainda que o movimento não se limita ao eixo Rio-São Paulo, havendo iniciativas em Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza, entre outras capitais brasileiras.

Mas se o movimento inclusivo hoje se disseminou e atingiu certa visibilidade, tal resultado se deve à iniciativa de um pastor heterossexual. Nehemias Marien foi o primeiro, na década de 1990, a manifestar a intenção de que seus cultos, conduzidos na Igreja Presbiteriana de Copacabana (IPC), pudessem alcançar todos aqueles de alguma maneira se sentiam excluídos da fé cristã. Apesar da amplitude da proposta – de fato, a IPC não se classifica como uma igreja inclusiva – havia a freqüência de fiéis homossexuais e a igreja passou a ser noticiada pela mídia como “igreja gay”.

“Junto a essa igreja surge um movimento de militância em torno da questão da orientação sexual. Esse foi um marco pioneiro das igrejas inclusivas no Rio de Janeiro, a primeira tentativa de produzir uma junção do cristianismo com uma visão positiva da homossexualidade”, comenta o antropólogo.

Buscar romper com o paradigma da homossexualidade entendida como pecado, não foi (como ainda não é) uma tarefa simples. Na ocasião, o pastor Nehemias foi extremamente atacado no universo evangélico, chegando inclusive a ser destituído, anos mais tarde, da hierarquia da denominação. Segundo Natividade, agressões verbais até hoje são freqüentes e líderes religiosos que estão à frente de igrejas inclusivas são, não raro, classificados como “pastores do diabo” e “falsos profetas”. O desafio dessas pessoas é, na avaliação do pesquisador, lidar com a tentativa de desqualificação da teologia da qual são adeptos e com a percepção de que, para a maioria, sua missão religiosa é encarada como uma afronta a Deus.

Com efeito, no campo religioso evangélico o discurso sobre a cura e a libertação da homossexualidade é hegemônico. Ao longo da pesquisa, Natividade observou inclusive o surgimento de vários grupos que se auto-denominam “movimentos de apoio” e que buscam auxiliar aqueles interessados em “curar-se” da homossexualidade. Entre estas iniciativas inter-denominacionais – assim classificadas por congregarem várias vertentes religiosas – se encontra o Movimento pela Sexualidade Sadia, o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos e a Associação Brasileira de Apoio aos que Desejam Deixar a Homossexualidade. Articulados na proposta de terapia de cura e de retorno à heterossexualidade, os integrantes de tais grupos em geral associam o tratamento religioso do tema à suas formações laicas (em medicina, psicologia, entre outras áreas). O resultado são terapias híbridas, que unem religião, ciência e magia, em torno da idéia de que a sexualidade pode ser objeto de “cura espiritual”.

De acordo com o antropólogo, a forma como a questão da sexualidade é tratada no campo evangélico hegemônico faz parte de uma tentativa mais ampla de lidar com os “problemas da vida moderna”. Não à toa, há uma vasta literatura, parte do que se poderia chamar de um “fenômeno de auto-ajuda” dentro do universo evangélico. Tal bibliografia busca dar orientações sobre como lidar, seguindo os princípios de uma vida cristã, não apenas com a questão da homossexualidade, mas também com situações de depressão, conflitos familiares, entre outros temas.

Interessado não só na cosmologia das igrejas inclusivas, mas também nos personagens que compõem esta história, Natividade buscou compreender e mapear as trajetórias religiosas das pessoas que integram estes movimentos. Entre os 32 entrevistados, uma parcela pertencia a igrejas convencionais, mas procurava conciliar sua orientação sexual ao pertencimento religioso. Entre estes, o pesquisador pôde perceber que o “cultivo do segredo” foi a estratégia adotada para gerenciar as identidades vistas como conflitantes.

“Dentro de uma igreja evangélica pentecostal, por exemplo, é possível ser gay? Sim, desde que isso seja gerenciado pelo cultivo do segredo. Quer dizer, os pastores não podem saber. Porque quando a situação é revelada existem sanções institucionais, propostas de regeneração moral, convites para participar de correntes de libertação ou até a própria perda de cargos. Essa é uma importante dimensão das relações de poder dentro dos espaços religiosos conservadores hoje”, analisa.

Ainda sobre esta parcela dos entrevistados, Natividade chama atenção para o fato de que a maioria vivencia enormes conflitos subjetivos, na medida em que se percebe como gay, mas se sente em pecado, já que compartilha a idéia de que sua orientação sexual implica em um afastamento de Deus. De acordo com o pesquisador, há pessoas que chegam a abrir mão de exercer determinadas funções na igreja, como a de obreiro, por exemplo, por acharem que não comungam do “estado de pureza” necessário para tal. Há também casos de rompimento com a religião e saída da denominação.

Um segundo grupo de entrevistados, por outro lado, estava buscando aderir à norma e mudar de orientação sexual. Naquele momento, se percebiam em luta na esfera da sexualidade e viviam uma imensa tensão entre aceitar-se ou não. A motivação do pesquisador ao procurar essas pessoas era compreender o poder de atração das igrejas, com suas promessas de cura e libertação, àqueles que enfrentam dilemas no que diz respeito à questão da orientação sexual. A partir das entrevistas, o antropólogo concluiu que a adesão a essas igrejas está relacionada à percepção de que são alvos de discriminação, ao sofrimento que isso implica e à tentativa de se adequarem ao modelo proposto pela religião. Em comum esses entrevistados têm o fato de que muitos foram criados em famílias religiosas, assim como aqueles que freqüentam as igrejas inclusivas. Com efeito, alguns são filhos e netos de pastores, isto é, lidam com a questão da hierarquia religiosa dentro do próprio ambiente doméstico.

Sobre os fiéis das igrejas inclusivas, o último grupo de entrevistados, Natividade afirma ter identificado uma importante mudança, na medida em que essas pessoas passam a desenvolver uma visão positiva de si, percebendo-se não mais como pecadoras, mas como sujeitos que podem conciliar a vida religiosa e suas preferências sexuais.

“Há todo um aprendizado na igreja de que Deus os aceita, de que os inclui, independentemente da orientação sexual. Nesse sentido, há formulações teológicas naturalizantes, que informam que a orientação sexual é uma criação divina e por isso certos indivíduos ‘nascem’ homossexuais. Na hermenêutica inclusiva, essa sexualidade é positiva, uma ‘bênção divina’, não uma possessão ou influência de Satanás, percepção que prevalece nas igrejas convencionais”, conclui o antropólogo.

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