Apesar de o aborto ser proibido pela legislação em vigor, mais de 1 milhão são realizados por ano no Brasil. O número, que por si só surpreenderia – sobretudo considerando que há quem defenda que não se trate de uma questão de saúde pública – está, no entanto, subestimado. Na realidade, esta é apenas “a ponta do iceberg”, afirma a epidemiologista Greice Menezes, pesquisadora do Programa de Estudos em Gênero e Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da Bahia (MUSA/ISC/UFBA). Durante a palestra intitulada “A difícil mensuração da magnitude do aborto: questões éticas e metodológicas”, apresentada no dia 27/03 no CLAM, Greice analisou os desafios que envolvem os estudos sobre o tema, considerando que a prática de interrupção voluntária da gravidez envolve aspectos de cunho moral e religioso, sendo objeto de forte sanção social.
De acordo com a pesquisadora, a omissão do relato sobre o aborto atinge não apenas países onde o procedimento é considerado ilegal, mas também aqueles nos quais o recurso está previsto em lei. Nesse sentido, afirma Greice, não existe um contexto universal onde os dados sobre o aborto sejam absolutamente fidedignos. “O que se observa é uma espécie de continuum, com cenários mais ou menos favoráveis à declaração do aborto”, diz.
Nos contextos legais, os procedimentos devem ser registrados nos serviços de saúde, o que converte esta em uma fonte privilegiada para se estudar a magnitude do aborto. Entretanto, mesmo tal fonte encontra limitações, tendo em vista que nem todos os abortos são registrados e a qualidade da informação varia muito de um serviço para o outro. Além disso, comenta a pesquisadora, não raro pessoas de países vizinhos, onde o aborto não é permitido, migram para fazer uso desse serviço.
Segundo Greice, o sub-relato é menor em países da Europa Oriental, fenômeno que estaria associado a um posicionamento mais permissivo daqueles Estados em relação à prática, diante de um quadro de grande dificuldade de acesso a métodos contraceptivos. “Estudos apontam que a Estônia é onde se tem menos omissão do relato sobre o aborto, enquanto nos Estados Unidos pesquisas feitas sistematicamente indicam um sub-relato da ordem de 40% a 65%. É quase como se o país vivesse na ilegalidade em relação à prática”, observa.
No caso do Brasil e, de certa forma, de toda a América Latina – região do mundo onde mais são realizados abortos inseguros –, o contexto para avaliação da magnitude do procedimento é particularmente desfavorável. A influência da política e da religião – sobretudo da Igreja Católica – dificulta bastante a elaboração de estatísticas e a realização das pesquisas, observa Greice.
Atualmente, a legislação brasileira proíbe a prática do aborto, permitindo apenas em casos de gravidezes resultantes de estupro ou que impliquem em risco de morte para a mãe. O que os números, apesar de subestimados, sugerem é a clara incapacidade da lei de coibir a ocorrência de abortos, o que, na opinião da pesquisadora, acaba reiterando as desigualdades sociais. A América Latina é considerada a região do mundo onde mais são realizados abortos inseguros, o que gera grandes repercussões na mortalidade e morbidade de mulheres. As mais atingidas nesse processo são jovens, negras, com baixa escolaridade e que se encontram em situação de extrema exclusão social.
Desde a década de 1980, o aborto se configura como uma relevante causa de morte materna, sendo apontado como a mais subnotificada delas. Um estudo nacional conduzido no início do ano 2000 por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) indicou que o aborto, à época, era responsável por 11,4% dos casos de morte materna, o que corresponde a terceira maior causa de óbitos. Os investigadores chegaram a esse resultado realizando uma espécie de auditoria nos dados oficiais, de modo a comparar os dados da declaração com outras fontes, como registro de prontuário e entrevista com familiares das mulheres que morreram.
Apenas na cidade de Salvador, capital da Bahia, em 1993, o aborto respondia por 36% dos casos de morte materna, taxa que apresentou redução (22,5%) quando nova pesquisa foi conduzida na cidade, cinco anos depois. Com efeito, mesmo hoje em dia, os casos de hospitalização por aborto estão diminuindo. No entanto, de acordo com Greice, tal resultado deve ser associado à queda da fecundidade da população feminina brasileira e, sobretudo, à difusão do misoprostol – princípio ativo do medicamento Cytotec –, que tem reduzido as complicações decorrentes do aborto provocado.
“Permanece um grande desconhecimento sobre a magnitude da morbidade por aborto no Brasil”, avalia a pesquisadora. “Não sabemos quantas mulheres usam Cytotec e não vão ao hospital porque o procedimento foi completo, nem temos informações sobre aquelas que usam o medicamento, apresentam sangramento, porém são examinadas e liberadas na maternidade porque o aborto se completou. O que sabemos sobre a morbidade imediata é relativo aos poucos estudos que trabalham com as mulheres que permanecem internadas para completar o aborto ou para fazer algum tratamento em decorrência dele”.
A epidemiologista chama atenção também para o aspecto financeiro associado à prática ilegal do procedimento. Segundo ela, a área da saúde sofre uma carência crônica de recursos, enquanto leitos hospitalares são ocupados e uma quantidade razoável de recursos empregada em tratamentos que poderiam ser prevenidos. “Abortos seguros seriam muito mais baratos para o sistema de saúde”, afirma.
Outro ponto analisado por Greice durante sua exposição foi a situação de discriminação a que são expostas as mulheres que optam por interromper a gravidez, em meio à falta de capacitação dos profissionais que prestam atendimento em situações de abortamento. No estado da Bahia, uma pesquisa etnográfica citada pela epidemiologista, realizada em uma maternidade de Salvador (por McCallum; Reis; Menezes, 2006), aponta uma série de práticas, que, de maneira sutil, afetam profundamente essas mulheres.
“A enfermaria que abriga as pessoas que abortam fica localizada nos recantos mais escondidos da maternidade, enquanto a curetagem é o último procedimento a ser realizado no plantão. Além disso, essas mulheres continuam sendo chamadas de ‘mães’ pelos profissionais da saúde, sendo algumas vezes colocadas para dividir quarto com outras que pariram, tendo que responder a perguntas como: ‘Cadê o seu bebê?”, comenta, lamentando haver poucas pesquisas no país que abordem as repercussões psíquicas do aborto.
Já no que diz respeito às questões metodológicas, Greice destaca a importância dos estudos qualitativos e do diálogo com outros campos de conhecimento.
“Contrariamente ao que acontecia há 20 anos, hoje existe um esforço para incorporar a abordagem qualitativa, com todo o desafio que é colocar em uma mesma mesa antropólogos, sociólogos, epidemiologistas, demógrafos, estatísticos. É necessário adotar uma base conceitual comum, para que as análises possam se complementar”.
Sobre a produção científica brasileira acerca do tema – em pauta na área de Saúde Coletiva desde a década de 1990 –, Greice cita estudo (feito por Diniz et al., 2008) destacando que a maior parte dos trabalhos não possui evidências empíricas (a relação é de cinco para um). Há ainda uma concentração das pesquisas na região Sudeste, principalmente em São Paulo, enquanto não há nenhuma no Norte do Brasil. Além disso, a autoria é principalmente feminina, mais especificamente de profissionais de Biomedicina. Este dado possivelmente encontra relação com a situação de fragilidade em que se encontram os pesquisadores que trabalham com o tema do aborto no Brasil, pois apesar de o direito à pesquisa ser uma norma constitucional, não existe regulamentação específica no Ministério da Educação. No Canadá, exemplifica Greice, quando o investigador submete seu trabalho ao comitê de ética recebe um certificado garantindo que os dados que produzirá estão protegidos por sigilo, o que não ocorre aqui. Isso contribui para que as pessoas que realizam pesquisas sobre aborto no país sejam as que possuem profissões com sigilo garantido, como medicina e enfermagem.