Autor do recém-lançado Nous, les mecs (Nós, “os homens”, “os caras”, “os machos”), o sociólogo francês Daniel Welzer-Lang dará a palestra “Masculinidades e Violência” na Universidade Cândido Mendes, no dia 4 de maio, onde, assim como faz no livro, abordará as construções sociais do masculino, das lutas e transformações das sexualidades e as relações entre as duas questões.
“Nós estamos vivendo, hoje, uma época paradoxal: nunca antes as mulheres, ainda submetidas a formas variadas de dominação masculina, falaram, discutiram e contestaram tanto. Nunca antes os gays, lésbicas e bissexuais abordaram tanto seus modos de vida. Entretanto, os homens continuam em silêncio. A tal ponto que o sociólogo canadense Marc Chabot pôde escrever: ‘A palavra dos homens, é o silêncio’”, afirma Welzer-Lang.
Especialista em questões de gênero, sexualidade e violência – com um enfoque particular na questão do virilismo – Welzer-Lang dirigiu um grande número de pesquisas sobre violência masculina, estupro, prostituição e novas práticas sexuais no espaço público. Além de “Nous, les mec: essai sur le trouble actuel des hommes”(Paris, Payot, 2009), é autor de “Utopies Conjugales” (Paris, Payot, 2009), Les Hommes violents (Paris, Lierre et Coudrier, 1991), Arrête, tu me fais mal… (Montréal, Paris, 1992), traduzido para o espanhol em 2007 sob o título La violencia domestica a traves de 60 preguntas y 59 respuestas , e Violence et masculinité (Montpellier, 1998).
Segundo o sociólogo, seus estudos sobre as mudanças masculinas mostram que, na Europa, a idéia de igualdade homem/mulher se tornou uma evidência para uma grande parte dos homens. “A violência física doméstica, na França, estaria ligada a « apenas » 5% dos companheiros; 10% em uma definição mais ampla da violência. Dito isso, quando se examinam os casos desses 5% de homens ‘violentos’, a maior parte é de jovens formados nos valores viris e homofóbicos”, diz ele ao analisar os laços entre violências domésticas e violências públicas, na entrevista a seguir.
Daniel Welzer-Lang é professor titular do departamento de Sociologia e pesquisador do Laboratório Interdisciplinar Solidariedades, Sociedades, Territórios (LISST)/CNRS) da Universidade de Toulouse II. Sua palestra será realizada na Universidade Cândido Mendes (UCAM), às 16h do dia 4 de maio (Rua da Assembléia, 10 – Auditório do 42º andar – Centro – Rio de Janeiro). O evento está sendo promovido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM) em parceria com o CLAM, o SerH e o ISER..
Nous, les mecs é um título que chama a atenção. Qual a sua pretensão ao escrever este seu novo livro?
Meu propósito é falar de nós, os mecs, os homens. Estamos vivendo, hoje, uma época paradoxal: nunca antes as mulheres, ainda submetidas a formas variadas de dominação masculina, falaram e contestaram tanto. Nunca antes os gays, lésbicas e bissexuais abordaram tanto seus modos de vida. Entretanto, os homens continuam em silêncio. A tal ponto que o sociólogo canadense Marc Chabot pôde escrever: ’A palavra dos homens, é o silêncio’. Então, minha idéia é tentar explicar o porquê desse silêncio; dizer como nós somos socializados, enquanto dominantes, na luta para ver quem é o melhor, o mais forte. Mas também como nós somos socializados de maneira homofóbica e vistos como “os grandes incapazes afetivos”, naquilo que eu chamei, como Maurice Godelier, de “a casa dos homens”, esses lugares onde nos ensinam os valores das masculinidades. Em suma, tentar explicitar a alienação masculina criada pelo sistema de gênero.
Da mesma forma, trata-se de desconstruir a heterosexualidade que nos faz homem ou mulher. Deixemos de ingenuidade. É tempo de os héteros fazerem também seu coming out, falarem da pluralidade de seus desejos e de suas práticas. Para mim, é importante deslocar o olhar, colocar as pseudo-margens (das sexualidades) no centro. Mostrar que todo o sistema sócio-sexual está, hoje, desestabilizado devido às lutas em torno das políticas sexuais. Assim, é preciso explicitar as visões estreitas da heterossexualidade que são transmitidas aos meninos como herança, pelas quais todo o foco é posto sobre a pseudo-diferença dos sexos, a impossibilidade (e a interdição) que nos é legada, de ser “passivo”, penetrado… As angústias e as reações de violência que isso pode gerar. Como, diferentemente das mulheres, nós somos, antes mesmo da nossa puberdade, socializados como clientes….
De que perspectiva Nous, les mecs aborda as relações de gênero hoje?
Eu tento articular duas coisas: primeiramente, a análise geral do sistema de gênero que eu acabo de desenhar em linhas (muito) gerais. Mas minha pretensão é fazer isso pela via da principal lente através da qual nós (os homens) analisamos essa questão. A saber, nosso “eu”. Como eu, um mec (homem,“macho”), vejo as transformações atuais? Se cada um é único, eu tento, como sociólogo, que a análise integre todos os “eus”, esses milhares de homens encontrados ao longo dos meus diferentes estudos – a violência masculina doméstica, o trabalho sexual, a homofobia, a libertinagem, os novos pais e os homens anti-sexistas. Mas também esses homens reunidos em mini-grupos de discussão, durante a preparação do livro. Trata-se, portanto, de começar a realizar o inventário da virilidade obrigatória por todos os mecs, individualmente e coletivamente.
Parece igualmente importante começar a pensar o depois da dominação masculina. Participar, desde o nosso lugar atual de homem, da revolução antropológica que nós estamos prestes a viver. Os homens são, ao menos podem ser também, um motor de mudança do sistema de gênero. Para isso, é preciso mapear os debates atuais. Compreender as dificuldades atuais de interação de homens e mulheres através das nossas duplas socializações. Não significa jogar fora todos os valores ditos masculinos. Certos valores – a solidariedade, o senso de esforço, o esquecimento de si em nome de valores comuns, o fato de ser (não exclusivamente) ativo – são partilháveis por todas as pessoas (homens, mulheres, transgêneros etc). Assim como certos valores classificados como femininos. Em suma, é preciso renegociar o “contrato de gênero”. Não é porque somos dominados (as), oprimidos (as) que temos razão em tudo. Ou porque somos dominantes que estamos errados. Eu dou alguns exemplos, no meu trabalho, em torno das noções do limpo e do correto, no erotismo. Hoje, homens e mulheres sabem o que não querem mais viver – violências, opressões, explorações. Resta-nos conceber o que queremos viver juntos e remover as dificuldades e obstáculos instituídos pelas representações e práticas ligadas ao sistema de gênero.
Sobre que aspecto o conceito de « viriarcado » proposto no seu trabalho se diferencia da noção de patriarcado? Eu utilizo “viriarcado” no sentido que lhe deu a antropóloga feminista Nicole-Claude Mathieu (1985, 1991). Ela definiu o viriarcado como o poder dos homens, sejam eles pais ou não, sejam as sociedades patrilineares, patrilocais ou não. De todo modo, como ela mesma reconhece, esse termo, composto do latim (vir-) e do grego (-arkhia, de arkhein “comandar”) é também insuficiente.
A utilização do conceito de viriarcado busca se distanciar do tema popular do “patriarcado”, reavivado por Christine Delphy, em 1970, quando ela explica a dupla opressão das mulheres (capitalismo + exploração patriarcal da produção doméstica não remunerada, no contexto do contrato de casamento que representa também um contrato de trabalho para as mulheres). O sucesso do conceito de patriarcado, amplamente adotado pelos movimentos sociais, fez com que ele se tornasse um tema mal definido que não leva muito em conta as mudanças na relação entre homens e mulheres.
Assim, hoje, em numerosos países, mesmo vivendo ainda sob uma dominação masculina, as leis sobre a parentalidade suprimiram as vantagens concedidas de fato e de maneira genuinamente “patriarcal” [no sentido antropológico] aos homens. A homoparentalidade, por exemplo, contestou, com sucesso, a naturalidade da predominância dos pais biológicos e sociais. De fato, quanto mais as lutas avançam, mais precisos devemos ser nos instrumentos de análise que concebemos. Isso para conseguir, no melhor dos casos, avaliar o caminho que resta a fazer rumo ao desaparecimento do gênero (o que o senso comum chama de igualdade homens/mulheres, homo/heteros), e também – e nós o esquecemos frequentemente nas análises vitimológicas atuais – para apreciar o caminho já percorrido.
Por falar nisso, é sempre agradável reler os textos dos anos anteriores para se dar conta de que é absurdo dizer que a dominação masculina, ou o patriarcado, se reproduz igual a si mesmo, de maneira a-histórica. Sim, as lutas “rendem” em termos de mudanças individuais e coletivas.
De que maneira, segundo seu ponto de vista, as transformações do modelo patriarcal, ou viriarcal, estão relacionadas às formas atuais de violência, tanto no espaço doméstico quanto no mundo da rua?
Para compreender os laços entre violências domésticas e violências públicas, é preciso, inicialmente, aceitar o postulado dos estudos de gênero sobre a transversalidade público/privado. São as mesmas relações sociais de gênero que constroem os personagens no público e no privado. As relações são transversais. Assim, é porque existe um trabalho doméstico gratuito, realizado pelas companheiras, que certos homens podem fazer uma carreira ascendente e rápida, estando liberados da carga das crianças, do sustento afetivo dos próximos. Assim também, é raro que um homem violento em casa – aquele que pensa ser legítimo manifestar assim sua posição de homem (de superioridade) frente à sua companheira, definida como “mulher” – não seja também dominante no espaço público com seus próximos, definidos socialmente como inferiores a ele. Além disso, é raríssimo que um homem violento no exterior (trabalho, bar ou lazer, onde a repressão das atitudes violentas é mais severa), não o seja também no espaço privado. Eu demonstrei isso amplamente nos meus trabalhos sobre os homens violentos. E esses conhecimentos não são teóricos, pois acolhi homens violentos em um dos primeiros centros da Europa, em Lyon (França), entre 1987 e 1993.
Por outro lado, minhas pesquisas sobre os homens e o masculino, notadamente os estudos sobre as mudanças masculinas, mostram que na Europa a idéia de igualdade homem/mulher se tornou uma evidência para uma grande parte dos homens. Os homens, não sendo o bando de brutos incapazes de pensar – como nos descrevem certos textos naturalistas que infelizmente se reivindicam feministas – se adaptam às novas demandas das mulheres, às evoluções impostas pelas lutas das mulheres, dos gays, das lésbicas… Na medida em que torna-se difícil encontrar empregadinhas submissas, os homens encontram benefícios rapidamente em deixar os hábitos da virilidade machista obrigatória. O que não quer dizer que eles abram mão facilmente dos privilégios masculinos, que não haja “resistências masculinas às mudanças”, ou que as representações carregadas pelas marcas de gênero sejam tão fáceis de modificar.
De todo modo, o número de separações conjugais muito conflituosas, entre homens e mulheres, é minoritário (menos de 5% das separações). E a violência física doméstica, na França, estaria ligada a « apenas » 5% dos companheiros; 10% em uma definição mais ampla da violência. Dito isso, quando se examinam os casos desses 5% de homens “violentos”, a maior parte é de jovens formados nos valores viris e homofóbicos. Homens que integram, inclusive nas suas construções físicas, a certeza de que nós, os mecs somos mais, melhores e diferentes das mulheres e dos “veados”.
Como provar que se é um cara viril, quando desaparecem todos os privilégios da masculinidade como trabalho, dinheiro, honras, mulheres à disposição e as medalhas de virilidade (carros, reconhecimento…)? Como reagir, então, às mulheres, próximas ou não, que reivindicam ainda mais igualdade? Mulheres que, por vezes, lhe contestam o lugar de homem superior. Mulheres que querem concorrer com você pelos melhores lugares. Como reagir face aos gays, aos homens que não são verdadeiramente homens e que reivindicam agora o tratamento e reconhecimento dado aos homens ditos “normais”? Como se comportar quando o capitalismo globalizado lhe interdita o reconhecimento conferido por um trabalho estável, valorizante, onde podemos realizar nossa “obra” de homem? Em resumo, como permanecer um mec, quando não se tem mais nenhum signo exterior de riqueza? E a crise atual contribui, como também os novos valores do liberalismo mundial, a esse enfraquecimento.
Freqüentemente, não resta nada além da violência para provar, a si mesmo inicialmente e depois aos outros, o fato de que somos e de que permanecemos um mec. É o que eu chamei de “retorno virilista”. Nós temos muitos exemplos, na França, de meninos dos meios populares desempregados, sem trabalho e sem dinheiro, que se lançam em ações violentas entre eles e contra outros para provar sua virilidade.
Não estou dizendo que todas as lutas sociais coletivas, inclusive as lutas violentas, sejam o fruto de homens virilistas, de homens desesperados. Eu penso que certos homens utilizam as lutas sociais coletivas, as formas violentas de contestação, para provar sua virilidade, colocada em cheque pela evolução de nossas sociedades. Nesse sentido há laços entre as violências domésticas e as violências exercidas no espaço público.