A droga misoprostol, conhecida no mercado de medicamentos como Cytotec, é hoje vista no país como droga abortiva ilegal e perigosa. Entretanto, o medicamento é aprovado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde para a indução do parto, procedimentos para retirada de feto morto e para a realização do aborto nos países em que o aborto é legal ou nos casos permitidos por lei no Brasil. Por sua vez, médicos obstetras e ginecologistas defendem a ampliação de seu uso e a necessidade de difusão da informação correta sobre o medicamento no sentido de reduzir os danos causados pelos abortos clandestinos.
A estratégia de redução de danos não é novidade no país. Ela é adotada pelo Ministério da Saúde vinculada à prevenção e controle da epidemia de AIDS, desde o início dos anos 90, o que tem permitido a redução de casos de AIDS entre usuários de drogas injetáveis – a proporção passou de 13% em 2000 para 7% em 2006, segundo dados oficiais. Segundo definição do próprio Ministério, a redução de danos é uma estratégia da saúde pública que visa reduzir os danos sociais e à saúde. Segundo o programa oficial do governo uruguaio intitulado “Iniciativas sanitárias para redução do aborto em condições de risco”, toda mulher que não deseja a gravidez tem direito a uma consulta médica onde ela será informada sobre o uso do misoprostol como redução de danos. Então por que esta abordagem causou e ainda causa desconforto no Brasil quando vinculada ao uso do medicamento na redução da morbi-mortalidade materna, sendo seu uso obstétrico aprovado pela OMS, pelo Ministério da Saúde e pelas Federações Brasileira e Latino-Americana de Ginecologia e Obstetrícia?
O Brasil foi o primeiro país no mundo a aprovar, em 2001, o uso do misoprostol em ginecologia e obstetrícia, na forma de um novo produto chamado Prostokos, produzido pelo laboratório brasileiro Hebron e registrado como medicamento para indução do parto e aborto legal, havendo indicações para seu uso nas Normas Técnicas do Ministério da Saúde. Contudo, em 2005, o registro do Cytotec (nome comercial do misoprostol) foi cancelado no Brasil por pedido do distribuidor e hoje a droga – na forma Cytotec – é objeto de normas restritivas bastante draconianas, expressas em resoluções da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e portarias de agências similares estaduais que dispõem sobre sua comercialização e proíbem sua publicidade em fóruns de discussões, murais de recados ou sites na internet. Sua venda no país está restrita a estabelecimentos hospitalares com cadastro especial na ANVISA, para uso em obstetrícia e em serviços de abortamento legal. O problema é que as restrições do órgão, além de não condizerem com as resoluções do próprio Ministério da Saúde, acabam por criar barreiras burocráticas para o uso da droga no SUS (Sistema Único de Saúde). Menos de um quarto das maternidades tem acesso ao medicamento – das 4 mil credenciadas, menos de 400 têm o medicamento. E mesmo quando cadastrados, os hospitais se defrontam com exigências burocráticas. Assim, criou-se um mercado clandestino onde o medicamento pode ser encontrado tanto na internet como nos vendedores ambulantes dos centros das grandes cidades, ou mesmo vendido por traficantes.
No entanto, a existência desse mercado clandestino e o uso indevido do misoprostol estão diretamente ligados à falta de acesso à informação e à crescente ideologização do debate sobre aborto Brasil, que termina por restringir o acesso da população e mesmo dos profissionais de saúde à informação qualificada e necessária sobre uma tecnologia médica segura, eficaz e necessária. O acesso ao medicamento e às informações corretas sobre ele está hoje associado ao crime, por efeito da criminalização da interrupção voluntária da gravidez no país.
“O misoprostol, ou Cytotec, é tratado como qualquer droga ou procedimento abortivo ilegal, quando na verdade é resultado de extensa pesquisa e considerado um avanço da ciência para a ginecologia e obstetrícia”, avaliou Margareth Arilha, diretora-executiva da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR/Cebrap), durante a Reunião Técnico-Científica sobre o Aborto Medicamentoso no Brasil, evento sediado pela CCR na semana passada que reuniu especialistas de todo o Brasil, incluindo representante da ANVISA, para discutir o tema Misoprostol. Mas quais as verdadeiras implicações por trás das restrições à sua comercialização e uso no país, uma vez que evidências científicas apóiam seu uso na ginecologia e obstetrícia e vários estudos demonstram que as mulheres, apesar das limitações legais, continuam de fato a usar o medicamento? “O problema da ampliação do uso do misoprostol tem cunho político”, afirmou Margareth.
A droga foi aprovada no Brasil em 1985 com o nome Cytotec para o tratamento da úlcera estomacal. Mas sua bula continha a indicação contra seu uso por grávidas porque poderia provocar abortamentos. A prostaglandina, base farmacológica do Cytotec, possui ação estimulante sobre a musculatura uterina, promovendo sua contração, o que explica sua utilização na indução do parto e do aborto. Segundo o médico e pesquisador do Unicamp, Aníbal Faundes, que participou do encontro promovido pela CCR, as vendas do Cytotec se ampliaram rápida e geometricamente porque os balconistas e farmacêuticos, ao identificar seu efeito abortivo, promoveram seu uso num contexto em que a demanda por esse tipo de produto foi e continua sendo elevada, pois estima-se que se realizem no Brasil cerca de um milhão de abortos clandestinos e inseguros ao ano.
Mas em 1988, quando os Estados Unidos regulamentaram a utilização do medicamento, houve uma forte reação dos grupos pró-vida, que passaram a chamá-lo de “droga da morte”. Neste período, com a pressão do Comitê Nacional pelo Direito à Vida sobre o FDA (Food and Drug Administration, agência americana responsável pelo controle de alimentos e medicamentos), não muito mais tarde o assunto chegaria à mídia brasileira. Segundo Margareth Arilha, diretora executiva da CCR que conduziu uma pesquisa sobre o medicamento no início dos anos 1990, “de acordo com os argumentos disseminados pela mídia na época, o medicamento provocava nascimento de crianças com malformação e gerava infecções uterinas fatais, além de ser abortivo. Isso mobilizou a reivindicação no Brasil pelo enquadramento do misoprostol como droga controlada. Foi nesse contexto que se deu a primeira regulamentação do medicamento em nosso país, sem que, entretanto, se enfrentasse com racionalidade a questão do aborto clandestino e inseguro, que era e é o fator que mobiliza a compra do medicamento”.
Apesar das restrições então estabelecidas o medicamento continuou a circular no mercado e, o que é mais importante, médicos e profissionais de saúde que lidam no seu dia a dia com as conseqüências do aborto seguro, muito rapidamente perceberam que seu uso estava claramente reduzindo infecções, perfurações uterinas, hemorragias, ou seja, fazendo cair a morbimortalidade feminina por aborto. Isso explica por que mesmo hoje, quando há maiores restrições ao medicamento, são inúmeros os médicos que, diante de uma paciente decidida a abortar, optam por orientá-las a fazê-lo da melhor forma, ao invés de denunciá-las à polícia.
“Se uma mulher chega em meu consultório dizendo ter decidido abortar, eu não posso impedi-la. Tenho o dever ético de explicar a ela quais são os métodos abortivos e, se necessário, ajudá-la”, disse o obstetra Osmar Ribeiro Colas, da Universidade Federal de São Paulo e presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual da FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
A orientação médica, segundo ele, é essencial neste momento de decisão da mulher. “Ela pode comprar o Cytotec clandestinamente e se automedicar. Mas imagina se ela, depois de tomar quatro comprimidos – dosagem geralmente indicada – e não abortar, resolver levar a gravidez adiante e não procurar um médico. Essa criança pode, de fato, nascer com algum tipo de deficiência e malformação – ou mesmo morta”.
Aníbal Faúndes, em sua intervenção, também enfatizou sistematicamente que: “bons resultados dependem de como ele será ministrado, as indicações, as doses, as vias de administração (sublingual, oral, vaginal etc) e o intervalo entre as doses”, afirmou.
Segundo os médicos presentes no encontro da CCR em São Paulo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o misoprostol na lista de medicamentos essenciais por que, de acordo com evidências científicas, a droga pode e deve ser indicada em casos de aborto terapêutico, indução do parto/aborto com feto morto retido, indução do parto com colo imaturo, tratamento do aborto incompleto e prevenção da hemorragia pós-parto, além de diminuir as complicações decorridas do aborto. É indicado como método seguro para indução ao parto/aborto no 1º, 2º e 3º trimestres de gestação.
Aborto medicamentoso
“O uso do misoprostol permite que o aborto seja feito mais precocemente, de forma mais segura e menos traumática. Também é muito mais econômico, uma vez que reduz a mortalidade materna e os custos advindos dela. Além disso, é um procedimento simples, que não inclui o uso de anestésicos ou anestesia e que preserva a intimidade da mulher que deseja interromper a gravidez, e o melhor é que ela tem a oportunidade de exercer enorme controle sobre o processo”, salienta a socióloga argentina Silvina Ramos, do Comitê Consultivo para a Investigação da Saúde da OMS e membro da Aliança Regional do Consórcio Internacional pelo Aborto Medicamentoso (ICMA, na sigla em inglês).
Segundo ela, o chamado aborto medicamentoso tem mudado a prática do aborto em todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, tornou-se o principal método para a indução do aborto durante o segundo trimestre de gestação, período em que o método tem se popularizado cada vez mais, apesar de seu uso mais comum continuar sendo durante o primeiro trimestre, especialmente em países onde o aborto é legalmente restritivo. “Na França, os médicos apenas confirmam a gravidez da mulher. No caso de uma mulher decidir que não quer ter a criança, são as enfermeiras ou enfermeiros que realizam o resto do trabalho, provendo as informações e o medicamento necessário à realização do aborto”, relatou a socióloga.
Ela acha importante ressaltar que o uso do misoprostol – comercializado há mais de 30 anos na Europa em mais de 30 países – não se reflete em aumento nas taxas de aborto e sim em diminuição dos casos de morte materna decorrentes da clandestinidade da prática. O aborto medicamentoso, segundo Silvina, também possibilita, no caso das anomalias fetais graves, o parto de um feto intacto, o que é fundamental para efeito de pesquisa.
De acordo com Leila Adesse, mestre em Saúde da Mulher e da Criança e diretora da Ong IPAS Brasil, o problema é que poucos profissionais da área da saúde conhecem os benefícios do método. “Há uma forte associação do misoprostol com o aborto e, consequentemente, com o crime. Não se faz quase nunca uma associação com o parto”. Para ela, o medicamento deveria ser vendido em farmácias, assim como acontece com outros medicamentos controlados.
“Limitar o uso do remédio a uso hospitalar é absurdo em um país com tanta dificuldade de acesso a médicos como o Brasil. No mundo inteiro o medicamento é indicado para uso obstétrico e pode ser adquirido em farmácias. Além disso, é inconstitucional exigir prescrição médica para um remédio que deve ser usado em situações de emergência”, afirmou o médico obstetra Cristião Rosas, da FEBRASGO.
Para os especialistas, o controle efetivo do medicamento no Brasil pela vigilância sanitária é um viés ideológico e representa afronta aos direitos das mulheres.
“O que vemos é uma óbvia ideologização desses instrumentos de regulação e normativas. O texto da resolução da ANVISA de 2006, por exemplo, tem um conteúdo quase religioso”, comparou Sonia Correa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês).
Para Margareth Arilha, a ação dos grupos conservadores na estigmatização do misoprostol evidencia conexões internacionais no âmbito global desde a década de 1980 frase falta palavras. “A criação de barreiras a avanços científicos que promovem benefícios às mulheres no campo da autonomia reprodutiva segue padrões similares às ações em torno de assuntos como as pesquisas com células-tronco, a pílula do dia seguinte e a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos”, finalizou ela.
Dando prosseguimento ao ciclo de debates que vem promovendo, no dia 12 de novembro a CCR realizará o Seminário “Contracepção de emergência no Brasil: Dinâmicas Políticas e Direitos Sexuais e Reprodutivos”.
Sobre a Reunião Técnico-Científica sobre o Aborto Medicamentoso no Brasil, leia também:
O tráfico do Cytotec no Brasil – apresentação de Débora Diniz
“O aborto não pode ser crime” – apresentação do juiz José Henrique Rodrigues Torres
Foto: Diego Kuffer