O ano era 1975 e um grupo de mulheres organizou na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, a semana de debates intitulada «O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira», que reuniu uma platéia de mais de quatrocentos participantes e deu início ao Centro da Mulher Brasileira (CMB), primeira organização feminista no país. O encontro da ABI era conseqüência organizada dos grupos de mulheres que, anos antes, começaram a se reunir para conversar sobre o que então se chamava “condição feminina”, expressão comum à época. A grande maioria dessas mulheres havia militado em partidos de esquerda, como o PCB – posto na clandestinidade pela ditadura em 1964 – ou em organizações políticas que naquele momento tentavam arregimentar a resistência ao governo militar.
Eram tempos difíceis, nos quais o direito de reunião estava suspenso e, para promover os debates, as mulheres circulavam com um salvo-conduto emitido pela ONU, que naquele 1975 promovia, no México, a primeira Conferência Internacional da Mulher, com a qual o encontro do Rio estava articulado. Com o documento internacional, as participantes tiveram garantia de imunidade. O mesmo 1975 foi também o ano da criação do Movimento de Mulheres pela Anistia, cujo objetivo era denunciar as torturas do governo militar e pedir a volta dos exilados.
Entre os inúmeros exilados estava a feminista Danda Prado, que trocou o Brasil pela França em 1971 depois de saber do seqüestro do deputado Rubens Paiva pelos policiais do DOI/CODI/RJ. Filha do intelectual Caio Prado Jr., Danda sabia, desde a prisão de seu pai, em 1964, que a repressão estava chegando perto. Muito amiga do casal Paiva, considerou que o seqüestro de Rubem indicava que ela estava vulnerável demais no Brasil.
Foram 10 anos de exílio na França, período no qual ela se aproximou de Simone de Beauvoir, cuja principal obra feminista, “O Segundo Sexo”, ela conhecia desde sua publicação, em 1949. As afinidades intelectuais e políticas fizeram com que, em 1960, Danda tenha recebido o lendário casal Sartre-Simone em São Paulo para um jantar. Eles passaram dois meses no Brasil, visitaram Brasília, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, onde foram ciceroneados por Danda. A anfitriã avisou aos dois filhos mais velhos, Claudia e Nelson: “Vocês vão conhecer hoje duas pessoas das quais vocês nunca se esquecerão. Quando crescerem, vão entender a importância deles”.
Danda também nunca se esqueceu. Ao chegar em Paris, em 1971, voltou a se aproximar de Beauvoir, agora com o o objetivo de conseguir a publicação de um artigo de Caio Prado na revista “La Nouvelle Question”. Exilado depois de dois anos na prisão por liderar a Aliança Libertadora Nacional contra o Estado Novo de Getúlio Vargas, ele havia sido militante do Partido Comunista Francês nos anos 1930, e Danda integrava, levada pela madrasta, Nena, a Federação de Mulheres do Partido Comunista Brasileiro.
Beauvoir, que em 1974 fundaria a Liga dos Direitos das Mulheres, apresentou Danda a sua assistente, Anne Zelensky, a quem a brasileira acompanharia nas reuniões sobre legalização do aborto e violência contra mulheres. Danda integrou o grupo das mulheres casadas, embora já estivesse separada desde o final dos anos 1960. O tema do casamento foi parar na sua tese de doutorado e no seu livro “Ser Esposa – A Mais Antiga Profissão” (Brasiliense, 1979), em que discute questões da subordinação da mulher. Em 1972, Danda formou o Grupo Latino-Americano das Mulheres em Paris e passou a reunir brasileiras e latino-americanas que moravam na cidade. O grupo cresceu a partir de encontros para discussão de temas como sexualidade, aborto, emancipação, e para troca de experiências entre as suas integrantes.
Foi com uma troca de experiências, memórias e histórias do passado que um grupo de mulheres se reuniu no último sábado, 10, em torno de Danda Prado. A intenção era comemorar e lembrar os 35 anos do marco inaugural da segunda onda do feminismo no país, o encontro na ABI. Organizado pelas feministas Madalena Guilhon, Maria José de Lima, Rita de Cássia Lima Andréa e Rosane Reis Lavigne, esta última também a anfitriã, a noite foi de reencontros.
Acompanhada das duas filhas, Claudia e Carla, e das netas Juliana e Natália, Danda esteve no centro das atenções como uma das figuras aglutinadoras do movimento feminista dos anos 1970/1980, quando ela voltou ao Brasil, mais especificamente ao Rio de Janeiro. A grande maioria das cerca de 50 convidadas deu depoimentos que relatavam o engajamento no movimento feminista como um marco divisório nas suas vidas. Para muitas, o encontro com Danda, que só voltou de Paris no início dos anos 1980, vem depois. A advogada Comba Marques, por exemplo, já era militante política desde os anos 1960, quando se filiou ao PCB. Foi a partir do encontro da ABI, em 1975, que ela se identificou com a causa da emancipação das mulheres, que passou a defender.
Comba é uma das muitas militantes que foi levada para o movimento feminista a partir da percepção de que os debates políticos no partido eram insuficientes para discutir a “condição da mulher”. “As questões das mulheres só seriam resolvidas depois da revolução”, lembra Danda, que dividiu as homenagens da noite com a enfermeira Maria José Lima. As duas se conheceram em Paris nos anos 1970 e foram, durante pelo menos duas décadas, impulsionadoras da segunda onda do feminismo no Brasil. “A minha vida se divide entre antes e depois da Danda”, reconheceu Zezé, uma feminista histórica cuja militância na área da saúde da mulher tem sido de grande importância. Autora de “O que é a enfermagem”, ela conta que o livro foi escrito por decisão de Danda, que o editou na Brasiliense. “A idéia foi dela, eu nunca teria pensado nisso sozinha”, admite.
Juntas, as duas mobilizaram as mulheres ao longo da década de 1980 em torno dos temas mais candentes de então: a violência contra as mulheres e o direito ao aborto. No primeiro caso, foi o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street que levou as mulheres para as ruas. No primeiro julgamento, o advogado de defesa, Evandro Lins e Silva, alegou “legítima defesa da honra” e conseguiu que Doca fosse condenado a apenas dois anos de prisão, com direito a sursis. O julgamento foi anulado alguns anos depois e, no segundo júri, Doca foi condenado por homicídio.
Também estavam presentes ao encontro de sábado Cícera Fernandes de Oliveira e sua filha, Jacilene, por quem Danda, Maria José e o movimento de mulheres se mobilizaram nos anos 1980. Grávida por conta de um estupro sofrido aos 14 anos, Jacilene pediu ajuda para realizar um aborto legal, mas a autorização só saiu quando ela já estava no sexto mês de gestação. “Era muito tarde para um aborto”, lembrou Jacilene. A vida de Cícera, imigrante nordestina e operária, foi contada em livro a quatro mãos com Danda, e publicado pela Brasiliense, a editora fundada por seu pai e ainda hoje administrada por ela.
Anos depois de assinar essa biografia, cujo objetivo era mostrar as dificuldades da vida de uma mulher pobre, é a vez de Danda expor sua biografia. Sob orientação da historiadora Margareth Rago (Unicamp), a pesquisadora de pós-doutorado Susel Oliveira está partindo da biografia de Danda Prado para escrever a história da segunda onda do feminismo no Brasil (leia aqui o artigo “Danda Prado: por uma estética feminista” ).
Todos os depoimentos foram gravados em vídeo pela cineasta Eunice Gutman, que pretende usar o material como ponto de partida para a produção de um documentário sobre o feminismo no Brasil. Nas cerca de cinco horas de fita gravadas há depoimentos como os da historiadora Rachel Soihet (UFF), ela também pesquisadora da história do feminismo no Brasil e da sua consolidação, como movimento político, ao longo da década de 1980, e da advogada Romy Medeiros, pioneira da causa das mulheres e autora do Estatuto da Mulher Casada. O texto é um importante capítulo na reforma jurídica pela emancipação das mulheres: promulgado em 1962, o estatuto revogou uma série de dispositivos que tratavam a mulher como incapaz, dependendo da autorização do marido para exercer sua vida civil. “Nós não podíamos viajar ou trabalhar sem a concordância do marido”, lembrou Romy.
Situação impensável para a jovem feminista Ana Paula Costa e Silva, ela também advogada, atuante na Defensoria Pública ao lado de Rosane Reis Lavigne. Em seu depoimento, ela se declarou como “neta” das feministas históricas que, em muitos casos, ela só tinha tido oportunidade de conhecer em livros. Da família de Danda, coube à neta caçula, Natália, dar o tom dos desafios do feminismo hoje: “Na empresa em que eu trabalho, 90% dos diretores são homens. Isso a minha geração vai ter que mudar”.
Ainda que a conversa com Danda tenha sido o mote para a promoção do primeiro encontro, as organizadoras pensam em repetir a experiência e promover novas reuniões que cumpram o papel de resgatar a importância histórica do movimento feminista nas transformações da sociedade brasileira.