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Sexualidade, religião e Estado laico

Nos últimos meses, temos assistido no Brasil a uma intensa discussão sobre as relações entre (homos)sexualidade, moral religiosa, ciência e os limites da intervenção do Estado nessa matéria. Inicialmente, o tema foi trazido à atenção da mídia pela publicação do documento «Família, matrimônio e ‘uniões de fato'», em que a Igreja conclama políticos e legisladores católicos a se oporem ao processo de reconhecimento legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo,
atualmente em curso em diferentes países.
Talvez respondendo ao alerta do Vaticano ou apenas ecoando a reação que se arma frente às profundas transformações por que passa hoje a sensibilidade social em relação à homossexualidade, alguns setores evangélicos brasileiros também começaram a tratar publicamente a questão.
Um grupo de psicólogos cristãos está em campanha para anular a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia. Partindo do pressuposto de que a homossexualidade não constitui doença, distúrbio ou perversão, o Conselho estabeleceu em 1999 que «os psicólogos não devem exercer qualquer atividade que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas», que «não adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados» e nem «colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades».
Solidário aos psicólogos cristãos, um deputado apresenta simultaneamente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro um projeto de lei que incentiva o estado a apoiar financeiramente organizações que se propõem a «ajudar» aos que «voluntariamente» querem mudar sua orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade.
Ao que tudo indica, o cristianismo como um todo (tanto em sua vertente católica, quanto protestante) se vê obrigado a confrontar publicamente a homossexualidade. Para muitos, a homossexualidade, incômoda herança do mundo pagão, vem se configurando, nessa nossa passagem de século, em fenômeno político de primeira grandeza.
Sob qualquer lente que o analisemos, é absolutamente notável o processo pelo qual uma conduta que até o pós-guerra era considerada – se não um crime, uma imoralidade ou um pecado – uma doença ou anomalia inconfessáveis tornou-se eixo de um extenso movimento social (com o surgimento de novos sujeitos políticos, novos mercados e toda uma nova sociabilidade). Ponto de articulação de uma incessante luta por direitos civis e motivo para surpreendentes manifestações de massa.
No âmbito desse processo, legisladores, juristas e operadores da justiça começam a reconhecer direitos fundamentais (entre eles o de constituir família) que não poderiam mais ser alienados por qualquer razão científica (homossexualidade não é doença ou anomalia) ou legal (não é crime ou contravenção).
Invadindo a seara das ciências, o Vaticano estabelece que o desejo heterossexual está inscrito na própria natureza humana e sua função é assegurar a reprodução da espécie através do casamento monogâmico e indissolúvel. Assim, reconhecer arranjos familiares baseados em outros desejos seria um atentado a Deus e à natureza. Além disso, feriria os direitos humanos, uma vez que, desde a carta de 1948, foi reservada à família uma proteção especial. Aos olhos do Vaticano, equiparar a família heterossexual, reprodutiva, monogâmica, fundada no matrimônio, a outras formas de convívio afetivo e sexual (o que aliás nossa Constituição já faz desde 1988) seria desprestigiá-la, feri-la mortalmente.
No documento divulgado pelo Vaticano, o Conselho Pontifício denuncia com especial vigor o «relativismo» do mundo contemporâneo e a «ideologia de gênero», classificada como corolário da «antropologia individualista do neol
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iberalismo radical», segundo a qual, «ser homem ou ser mulher não estaria determinado fundamentalmente pelo sexo, mas pela cultura».
Para o Vaticano, a raiz dos males atuais estaria no afastamento dos homens de sua natureza biológica (expressa na diferença sexual e em seu fim reprodutivo). Assumindo paradoxalmente uma posição naturalista e condenando de fato toda a antropologia moderna (desde Franz Boas pelo menos), o Vaticano declara que a teoria de gênero, com seu correlato «construtivismo social», é uma ideologia perniciosa por não estabelecer uma relação necessária entre o sexo biológico e os papéis sexuais, ou seja, por não entender que sociedade e cultura, para serem abençoadas pela Igreja, devem girar em torno dos imperativos da natureza, ajudando-a a atingir os seus fins.
Em relação ao desejo homossexual, a Igreja parece percebê-lo como característica profundamente inscrita nos sujeitos e não mantém muita esperança quanto a poder extirpá-lo ou «curá-lo». Aposta sim na possibilidade de os homossexuais conseguirem, com ajuda divina, manterem-se castos e abstinentes durante toda a vida, lutando incansavelmente contra sua inclinação.
Em contraponto, a face mais ruidosa dos evangélicos anuncia milagres, apoiando-se na possibilidade de que os homossexuais possam se libertar do pecado ou do «problema» que os aflige para, renascidos, transformarem-se em heterossexuais.
Apelando ao «direito de tratar» os que sofrem e localizando a origem do sofrimento na própria homossexualidade e não na discriminação de que são objeto os homossexuais, os psicólogos cristãos propõem a cura. Desconhecem as posições de Sigmund Freud, pai da psicologia moderna, que em 1935, já no fim da vida, escrevia a esse respeito a uma mãe americana que o consultava a propósito do tratamento de seu filho: «Entendi pela sua carta que seu filho é homossexual. Impressionou-me muito o fato de a senhora não ter mencionado esse termo na informação que fornece sobre ele. Permita que eu lhe pergunte, por que o evita? A homossexualidade certamente não é uma vantagem, mas não é nada de que se possa envergonhar, não é vício, degradação, não pode ser classificada como doença…»
Após afirmar que dificilmente seria possível «abolir» o desejo do rapaz através do tratamento analítico, termina sua carta com a seguinte observação: «O que a análise pode fazer pelo seu filho é algo bem diferente. Se ele está infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer-lhe harmonia, paz de espírito, eficiência, permaneça ele ou não sendo homossexual…»
No calor dessa disputa, argumentos e contra-argumentos envolvendo Deus, a natureza e os direitos humanos se misturam e as fronteiras entre a moral, a religião, a política e a ciência se confundem. Com maior ou menor desenvoltura, os cristãos procuram fazer com que suas opiniões sobre a homossexualidade (tão legítimas quanto quaisquer outras crenças religiosas, desde que mantidas como questões de foro íntimo ou privado) se imponham nos planos científico, político e jurídico. E se esse cenário esconde um perigo, talvez seja justamente aí, nessa mistura, que ele resida.
Nessa discussão, não nos enganemos, não está apenas em jogo a incorporação plena à cidadania de milhões de brasileiros que mantêm orientações sexual e afetiva diferentes da maioria (o que, em si mesmo, já seria um enorme avanço da democracia entre nós). O que está em jogo são os destinos do Estado laico e de um dos mais caros fundamentos do mundo moderno, segundo o qual a política, a religião e a ciência devem permanecer como planos paralelos, como esferas que se olham sem se tocarem. É frente à fratura desse mundo, ameaçado pela maré montante de diferentes fundamentalismos que, independente de nossas crenças religiosas, devemos todos nos pronunciar.

Sérgio Carrara é professor adjunto IMS-Uerj (Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.

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