O CLAM publica o segundo texto da série de artigos do projeto Ciência e Religião na Mídia, realizado para o Prosare (Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva) para o exercício de 2006/2007. “Os poderes do santo, do papa e das ciências: a Igreja Católica pautando a mídia”, escrito pela socióloga Maria Teresa Citeli (Unicamp), analisa como temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos estão sendo pautados pela Igreja no Brasil, em apelo ecumênico, como parte da preparação da visita do Papa.
Os poderes do santo, do papa e das ciências: a Igreja Católica pautando a mídia
Maria Teresa Citeli*
Quando chegar ao Brasil, em maio, um dos destaques da agenda do papa Bento VXI será a canonização de frei Galvão, o santo brasileiro que até 15 dias atrás era conhecido pelo milagre de suas pílulas – nada a ver com contracepção. Na última quinzena, a Igreja Católica (IC) pautou ativamente a grande imprensa e garantiu, como fonte principal, a publicação de inúmeras matérias sobre a vida, a obra e os poderes do frei franciscano. Em apenas quatro dias, de 24 a 28 de fevereiro, Frei Galvão brilhou como estrela nos quatro veículos pesquisados pelo projeto Ciência e religião na mídia: rendeu reportagem capa em duas revistas semanais (Veja e Época) e páginas inteiras na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo.
Nessa investida da IC em prol do santo 100% brasileiro é notável a inflexão conservadora no tratamento de temas relacionados à saúde reprodutiva e à sexualidade. Para reforçar as mensagens eclesiais sobre os dois temas, em 24 de fevereiro, quase todos os grandes portais brasileiros de notícias divulgaram uma mensagem do Papa, após reunir-se com membros da Pontifícia Academia para a Vida, tratando do tema «A consciência cristã como pilar do direito à vida». Na notícia, distribuída pela Agência EFE (Espanha), o papa conclama a mobilização dos cristãos, pedindo que o direito à vida, do começo ao fim, seja «defendido e promovido de maneira especial pelos que crêem em Cristo», porque «os ataques ( …) no mundo todo estão se estendendo e se multiplicando, assumindo formas diferentes (…) e as pressões para a legalização do aborto na América Latina e nos países em vias de desenvolvimento são cada vez mais fortes».
Bento 16 falou também sobre «a liberalização do aborto químico sob o pretexto da saúde reprodutiva», assim como apelou para a «consciência cristã» diante das «leis para legalizar a eutanásia e dos incentivos à legalização das convivências alternativas ao casamento, fechadas à procriação natural». E, por fim, dirigiu um pedido a «profissionais, juristas e médicos» que se empenhem em «elaborar um competente julgamento» desses assuntos, e que, se for o caso, expressem «uma valente objeção de consciência». Para quem não sabe, aborto químico é a palavra utilizada pelos grupos anti-aborto, criados ou incentivados por integrantes da Igreja Católica, para referir-se à pílula do dia seguinte.
Sexualidade, aborto, pílula do dia seguinte, aborto legal, união civil entre pessoas do mesmo sexo, procriação natural (o que será que o papa quer dizer com isso?) estão sendo postas na ordem do dia pela Igreja aqui no Brasil, em apelo ecumênico, como parte da preparação da visita do Papa.
Na última quinzena, o grande intercessor em favor investida católica foi mesmo o santo genuinamente brasileiro, frei Galvão, que tem conquistado bom espaço na grande imprensa e nos websites dos grupos contrários ao direito ao aborto, que se multiplicam a cada dia na internet.
Os resultados têm sido formidáveis, como manter o tema da visita do Papa na pauta da grande mídia e, ao mesmo tempo, abrir espaço para o discurso de condenação ao aborto em qualquer circunstância (voluntário ou permitido em lei), exaltar a maternidade e apontar o lugar das mulheres na família, na Igreja e na sociedade tem sido obtidos com o apelo da Igreja a frei Galvão.
Até pouco tempo o novo santo brasileiro era conhecido apenas pelas filas de devotos que atraía ao Mosteiro da Luz em busca de pílulas (não são contraceptivas, ao contrário, como se verá adiante) capazes de produzir curas milagrosas. Na avalanche recente de notícias, ficamos sabendo do crescimento da busca por essas pílulas que contêm, não substâncias ativas, mas uma frase escrita em latim em papel de arroz, atribuída a frei Galvão: «Após o parto, ó virgem mãe de Deus, permaneceste inviolada. Intercede por nós».
A conversão recente: de padroeiro da construção civil a protetor do bom parto
Depois de declarado padroeiro da construção civil pelo Vaticano em outubro de 2000, uma nova perspectiva comunicacional de Igreja Católica, iniciada há poucos meses, mudou o perfil do futuro santo. Desde dezembro de 2006 — quando seu segundo milagre foi “reconhecido pela ciência e pela Igreja” —observa-se uma inflexão na carreira de frei Galvão, agora convertido em protetor “das mulheres grávidas que buscam proteção e um bom parto”.
Segundo o relato divulgado pela Igreja Católica, o milagre que garantiu nosso santo brasileiro, escolhido a dedo entre outros 4.500 declarados por devotos, dependeu de “estudos médicos e exames de nomes complicados, como uma histerossalpingografia”. As fotos da família e os detalhes da história de uma paulista que “sonhava em ser mãe” são oferecidos pela revista Veja:
por causa de uma má-formação do útero, [Sandra] já havia sofrido dois abortos espontâneos, um deles de gêmeos. Quando, em 1999, engravidou pela terceira vez, os médicos a avisaram de que o feto provavelmente não passaria do quinto mês. Desde o início da gestação, começou a ter sangramentos. Diante da perspectiva de mais uma perda, desesperou-se – até que uma amiga levou a ela três minúsculos pedacinhos de papel enrolados em forma de cânula. Eram as pílulas de frei Galvão.
No dia seguinte, o sangramento cessou e depois nasceu um garoto que já completou sete anos. Este foi o milagre: evitar um aborto espontâneo decorrente de características do útero que impossibilitavam levar a gravidez a termo. Em dezembro de 2006, depois da análise de exames, uma comissão médica “atestou que a ciência não tinha explicação” para a conclusão da gestação. Uma religiosa, que participa de um grupo que distribui em São Paulo cerca de 5.000 pílulas por dia, declara: “a maioria das cartas que chega até nós, com pedidos para frei Galvão, vem de grávidas”.
De Guaratinguetá, a presidente da Irmandade Frei Galvão, que distribui cerca de 90 mil pílulas por mês, em declaração à Folha comprova busca da interseção do frei para impedir um aborto, narrando o pedido de uma mulher querendo “a intervenção do frade para salvar o filho ainda na barriga, que possui problemas de formação. Ela diz na carta que foi aconselhada a abortar, mas que está disposta a levar a gravidez até o fim, pois tem esperança de que frei Galvão irá ajudá-la».
Pelas informações constantes nas matérias publicadas pelos veículos pesquisados, percebe-se que, segundo as declarações das partes interessadas, o total de pílulas distribuídas (em São Paulo e Guaratinguetá) chega a 240 mil por mês, um bom indicador do sucesso de público desfrutado pelo santo, agora designado para cuidar de partos e impedir abortos.
Não é de admirar que o discurso da Igreja sobre o frei, trazendo para a pauta da mídia a abordagem conservadora da Igreja sobre saúde reprodutiva, tenha obtido tanto sucesso, principalmente quando se observa a capacidade da instituição para alistar a autoridade dos cientistas (representantes da natureza) para confirmarem o que afirmam os legítimos representantes de Deus. Em seu discurso de divulgação para a mídia, a Igreja reiteradamente afirma que cabe à ciência comprovar a ocorrência de um milagre, para que um santo seja reconhecido como tal. Ou seja, até os santos dependem da legitimidade e da autoridade da ciência moderna. Para se ter uma idéia, texto sobre o processo de santificação veiculado no website oficial da visita do Papa ao Brasil, termos remetendo a ciência e à medicina aparecem sete vezes em apenas um parágrafo:
[ter] realizado, ao menos, dois milagres – reconhecidos pela Igreja e pela ciência. Por “milagre” entende-se um fato inexplicável segundo as leis da natureza, realizado por Deus, e pela intercessão do Servo de Deus. Este milagre possui algumas características de grande relevância: deve ser um fato, normalmente uma cura, que deve ser instantânea, perfeita, duradoura e não explicável cientificamente. Este suposto milagre é analisado por uma comissão de médicos do país, que emitirão um parecer a ser encaminhado ao Vaticano. Lá chegando, será novamente estudado o caso em questão por uma comissão em geral de cinco médicos, que também emitirão o parecer próprio. Note-se que aqui o que realmente interessa neste parecer não é que afirmem a existência de um milagre, mas que concluam por uma impossibilidade científica de explicação. É um parecer propriamente “científico”.
Faltando ainda dois meses para a chegada do papa ao Brasil a Igreja Católica já teve oportunidade de sinalizar claramente sua desenvoltura para atrair a atenção da mídia e passar seu recado conservador a respeito de sexualidade, contracepção e aborto, como sempre aconteceu em visitas de outros papas ao país. O que resta saber é se a imprensa vai demonstrar a mesma habilidade para buscar outras fontes de informação sobre esses assuntos, sem esquecer que, por sorte, além de santos o Brasil é o país da América Latina que conta com o maior número de estudos nestas temáticas graças à qualificação de pesquisadores e especialistas atuantes em universidades, centros de pesquisa e ONGs. Independente das divergências ou convergências com as propostas da Igreja, se as vozes desses “especialistas” não contribuírem para o tão alardeado “jornalismo pluralista”, podem trazer novos pontos de vistas aos quais os leitores merecem ter acesso. Melhor ainda se conseguirem imprimir novo ritmo secular que supere a monotonia uniforme dos discursos conservadores.
* Maria Teresa Citeli é socióloga, professora no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e coordenadora do projeto “Ciência e religião na mídia”.