Por José Eustáquio Diniz Alves*
O escritor americano F. Scott Fitzgerald escreveu, certa vez, que «os ricos são diferentes de mim e de você». O seu colega Ernest Hemingway concordou dizendo: «São mesmo, eles têm mais dinheiro». Ironia à parte, os ricos, exatamente, por terem mais dinheiro, têm acesso – comprando no mercado de bens e serviços – a diversos direitos de cidadania que não estão disponíveis aos pobres.
Quando se trata de serviços de saúde reprodutiva, ao revés do que acontece com as parcelas pobres da população, os ricos têm acesso a uma ampla gama de métodos para praticar o sexo seguro e para regular a fecundidade, tais como a camisinha, o DIU, a pílula, a injeção, o diafragma, laqueadura, vasectomia, pílula de emergência, etc.
Por terem atingido melhores condições educacionais, os ricos também sabem utilizar corretamente os métodos contraceptivos naturais como a tabelinha, o método Billing e o coito interrompido.
Os ricos também têm acesso, caso algum destes métodos falhe, ao aborto seguro feito em clínicas sofisticadas e caras que fazem uso do ultra-som, sedativos, anestesia e adotam as técnicas de sucção de última geração.
Raramente uma mulher rica engrossa as estatísticas da mortalidade materna, em primeiro lugar, porque consegue evitar a gravidez indesejada, em segundo lugar, porque tem meios eficazes para realizar a interrupção voluntária da gestação.
Ao contrário, os pobres – por terem insuficiência de renda e parco acesso à educação de qualidade – não possuem os meios adequados para ter uma vida sexual plenamente sadia e acesso irrestrito aos métodos de regulação da fecundidade.
A parcela pobre da população brasileira não tem autonomia para separar, efetivamente, a sexualidade da reprodução.
Para mudar esta história e tornar disponíveis os direitos sexuais e reprodutivos estabelecidos na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo, em 1994, e que o Brasil é signatário, o Estado precisa suprir os direitos de cidadania, de modo a corrigir as imperfeições do mercado e promover a inclusão das parcelas que estão sem acesso à saúde reprodutiva.
Uma boa iniciativa neste sentido poderia ter sido a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos, que foi elaborada pelo Ministério da Saúde e lançada no dia 22 de março de 2005, tendo três eixos principais de ação: a ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis (não-cirúrgicos), a melhoria do acesso à esterilização cirúrgica voluntária e a introdução de reprodução humana assistida no Sistema Único de Saúde (SUS).
Contudo, esta política ficou apenas no papel, pois, por falta de recursos e por deficiências na distribuição, os postos de saúde dos municípios brasileiros continuam sem meios para atender a demanda da população pobre do país.
As mulheres de baixa renda no Brasil também são as principais vítimas da prática de abortamentos clandestinos – grave problema de saúde pública, responsável pela quarta causa de mortalidade materna e pelo alto índice de morbidade.
O aborto por curetagem em condições precárias causa inúmeras complicações, como a perfuração do útero, a hemorragia e diversos tipos de infecção, agravando as condições de saúde das mulheres e provocando um alto custo para o sistema público de saúde.
Para tratar deste grave problema, foi instalada, em 6 de abril de 2005, uma Comissão Tripartite para Revisão da Legislação Punitiva sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, integrada por dezoito representantes dos Poderes Executivo e Legislativo e da sociedade civil.
Os trabalhos da Comissão Tripartite resultaram na elaboração de um projeto de lei que começou a ser votado semana passada e cuja votação deve ser completada no dia 7 de dezembro na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.
O projeto permite que as mulheres optem pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem precisar justificar o motivo, e até a 20ª semana, se a gravidez for conseqüência de estupro.
Em casos de anencefalia ou de risco para a gestante, o aborto poderia ser realizado a qualquer momento. Se aprovado, o projeto passará pela Comissão de Constituição e Justiça antes de ir ao plenário.
Todavia, tanto a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos quanto o projeto da Comissão Tripartite estão sob ataque do fundamentalismo religioso que é contra a distribuição de camisinhas, os métodos anticoncepcionais modernos e contra a legalização e a descriminalização do aborto.
Porém, o Estado laico não pode ficar à mercê dos dogmas religiosos e deve garantir a liberdade de escolha.
A proibição e a omissão do Estado são fatores que agridem os direitos reprodutivos e agravam as condições de pobreza, condenando milhões de brasileiros a conviver com o preconceito e a fatalidade.
*José Eustáquio Diniz Alves é professor do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE do IBGE.