Na próxima quarta-feira, 26 de abril, o sociólogo norte-americano John Gagnon lançará no Rio de Janeiro a primeira de suas obras traduzidas para o português – Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade (CLAM/Editora Garamond). Gagnon se tornou conhecido no final da década de 1960 ao abordar, de forma pioneira, a sexualidade como um fenômeno social. Foi em Sexual Conduct (A conduta sexual) que ele e o colega William Simon, co-autor do livro, apresentaram a primeira versão de sua sociologia da sexualidade, baseados numa teoria elaborada por ambos: a dos “scripts” ou roteiros sexuais.
Segundo esta teoria, as experiências sexuais decorrem de aprendizados sociais: foram aprendidas, codificadas e inscritas na consciência dos indivíduos, os quais aprendem a identificar e mesmo produzir situações potencialmente sexuais. Gagnon ignora as dimensões naturais/biológicas da sexualidade, considerando-as exteriores à sua teoria. A sexualidade é tratada como um objeto definido, como um comportamento roteirizado. Para ele, o comportamento sexual é um processo aprendido, possibilitado não por impulsos instintivos ou biológicos, mas por se inserir em roteiros sociais complexos, que são específicos de determinados contextos culturais e históricos.
“Nossa abordagem enfatizava a artificialidade das culturas humanas e, conseqüentemente, a artificialidade da vida sexual. A vida sexual é adquirida e construída da mesma maneira que todas as performances sociais. A rejeição à idéia de precedência do natural ou do biológico na vida sexual é que foi a novidade em nossa abordagem”, lembra o sociólogo.
Formado pela Universidade de Chicago em 1959, Gagnon fez parte de uma geração que, com o declínio da hegemonia da Escola de Harvard-Columbia, passou a reformular a disciplina da sociologia nos Estados Unidos do pós-guerra. Trabalhou no Instituto Kinsey de Pesquisas sobre Sexualidade e atualmente é professor da Universidade do Estado de Nova York, em Stonybrook. Nesta entrevista, o pesquisador atualiza sua teoria, fala de direitos reprodutivos, de feminismo, de hétero e homossexualidade, e faz críticas à abordagem naturalista das pesquisas de Alfred Kinsey e às idéias de Freud.
No livro “A Conduta Sexual”, escrito em 1973 em parceria com William Simon, o sr. propõe uma nova maneira de pensar o sexo e a sexualidade, isto é, encará-los como um fenômeno social. Nele é apresentada pela primeira vez a teoria dos “scripts sexuais”, segundo a qual o comportamento sexual é um processo aprendido, construído como roteiro, ou seja, todas as nossas experiências sexuais já foram codificadas e inscritas na consciência, decorrentes de aprendizados sociais e não de fatores fisiológicos. Como e por quê os srs. chegaram a essa conclusão?
Como todas novas idéias, o que Bill e eu argumentamos tinha base em trabalhos anteriores. Como sociólogos formados pela Universidade de Chicago, fomos influenciados pelo trabalho de Burgess e Park. A metáfora da carreira, importante no trabalho de Becker e outros, sugeriu-nos um modelo para a construção da vida sexual. Algumas formas de vida sexual já eram organizadas como trabalho (a prostituição masculina e feminina é um exemplo), nossa percepção era que esta metáfora podia ser estendida para todas as formas de sexualidade, assim podia-se pensar em como todos os tipos de atores sexuais adquiriam as habilidades sociais e desempenhavam papéis apropriados para práticas sexuais específicas. E também como eles aprendiam a participar no mundo social que os cercava. Tais performances requeriam que os atores aprendessem o que passamos a chamar de roteiros para a atuação dos papéis.
De acordo com esta abordagem, são três os tipos de “scripts” ou “roteiros”: os culturais, os interpessoais e os intrapsíquicos. Quais as diferenças entre eles?
Ao desenvolvermos a teoria, nossa primeira preocupação era quanto à situação social psicológica do sujeito – o ator e o seu/sua coadjuvante. Para o propósito analítico, isto implicava em dois domínios – o privado (o que passava na cabeça dos atores) ou intrapsíquico, e o domínio público da interação interpessoal. A conexão entre o que foi planejado ou fantasiado por qualquer indivíduo e o que aconteceu na interação foi sempre inesperado e impreciso. Nas análises posteriores, usamos estas idéias para caracterizar o mundo inter-subjetivo da cultura e os roteiros culturais. Meu modo de tratar as conexões entre os “scripts” é enxergar o interpessoal e o cultural como “público”, ligados um ao outro através das ações dos indivíduos, ou seja, mediados pelos roteiros intrapsíquicos desses indivíduos.
O sr. desenvolveu a teoria dos “roteiros sexuais” durante a chamada “revolução sexual”. No prólogo auto-biográfico de seu livro, o sr. afirma não acreditar muito nessa idéia de “revolução”.
Sempre fui receoso a respeito do conceito de revolução, pensada como uma transformação total e repentina das práticas sociais, mesmo quando aplicado às mudanças políticas. Não que eu seja insensível à idéia de grandes mudanças sociais ocorridas na época. O problema é que não nos damos conta das mudanças que estavam ocorrendo antes daquele momento, e acabamos subestimando as continuidades sociais e culturais entre o antes e o depois do chamado “período revolucionário”.
Os anos 60 e os 70 trouxeram uma mudança significante na sexualidade nos Estados Unidos, a qual esteve sempre ligada à mudanças ocorridas na “vida não sexual” da sociedade. O pós-guerra produziu o “baby boom”, isto é, mais 70 milhões de novos cidadãos norte-americanos num período de 18 anos. Ao mesmo tempo, o país experimentou um período de prosperidade, o qual criou uma crescente classe média. Os nascidos nesta geração entraram na adolescência como consumidores mais prósperos do que os jovens de qualquer outra geração. Isto fez com que os jovens pudessem testar seu senso de competência no domínio sexual durante a adolescência.
Mas talvez a principal mudança acontecida nos Estados Unidos foi a emergência dos movimentos sociais organizados em torno do gênero, sexualidade e reprodução. O movimento pelos direitos civis das décadas de 50 e 60 serviram de modelo para o movimento de mulheres quanto para o de gays e lésbicas, os quais se expandiram ao incluir os bissexuais e os transgêneros. Além disso, diversos assuntos ligados aos direitos sexuais e à saúde vieram à tona, inclusive o HIV/AIDS. A reação dos fundamentalistas religiosos a esses movimentos e o conseqüente conflito são a base central do que chamamos “guerras culturais” nos Estados Unidos.
Esta idéia de “revolução sexual” influenciou seu trabalho de alguma maneira?
Quando escrevemos “A Conduta Sexual”, Bill Simons e eu estávamos cientes e em contato com as mudanças que estavam ocorrendo entre os jovens e em certos setores da bem-educada classe média. Como participantes na vida diária da sociedade, estávamos vulneráveis à retórica e aos prazeres da revolução, mesmo duvidando da sua veracidade.
Como o sr. avalia a teoria na atualidade, levando em conta as mudanças sociais do mundo contemporâneo em relação a temas como o feminismo e o movimento de gays e lésbicas?
A teoria tem se mantido estável e aplicável à vida sexual atual. Ao mesmo tempo, o surgimento de movimentos sociais com agendas fortes foi uma grande surpresa. O papel da sexualidade nos movimentos pelos direitos reprodutivos, pelos direitos de gays e lésbicas e pelos direitos das mulheres não é exatamente o mesmo, embora eles constantemente tenham objetivos comuns. O movimento pelos direitos reprodutivos, centrado na idéia de “escolha reprodutiva” (a qual inclui o controle da fertilidade antes e depois da concepção) trata a sexualidade como uma forma de conduta nas relações entre mulheres e homens. O movimento de gays e lésbicas, incluindo aí os bissexuais e os transgêneros, é organizado em torno de indivíduos cuja vida sexual e gênero parece diferenciar-se da maioria. É um movimento centrado na idéia de identidade sexual e de gênero e no direito à diferença. O movimento feminista é composto por mulheres heterossexuais e lésbicas, mas ambos os grupos compartilham objetivos como a liberdade sexual e a igualdade de oportunidades para as mulheres. A importância da sexualidade para cada um desses movimentos é móvel e mutante, mas fazem parte do campo dos direitos humanos. Os “roteiros sexuais” dos indivíduos envolvidos nos três movimentos não diferem tanto quanto no passado, o que os torna diferentes é a política sexual.
E quanto aos heterossexuais como um todo, o que mudou em sua conduta sexual?
O que é notável em relação a eles é a diversidade de sua vida sexual. Existem muitos discursos sobre a “hegemonia heterosexual”, os quais não reconhecem que as instituições sociais que “recompensam” os heterossexuais também acaba por oprimi-los. As práticas sexuais e de gênero entre homens e mulheres variam por idade, classe social, etnia, estado civil e crença religiosa – variáveis que influenciam as pessoas com outros interesses e práticas sexuais.
Em primeiro lugar, está claro que ambos os “heteros” e os “outros” têm muitos interesses e objetivos em comum. Em segundo, é preciso enfatizar que os heterossexuais não são uma categoria homogênea.
Qual a diferença entre comportamento sexual e conduta sexual? Comportamento sexual descreve o conjunto de práticas corporais desempenhadas por humanos e não-humanos. A conduta sexual é o significado que estas práticas têm para o indivíduo que as realize e para as culturas e sociedades a que eles pertencem. A conduta sexual é um comportamento avaliado e compreendido pelos atores em situações sociais, definido pela história e pela cultura.
O sr. e Alfred Kinsey, autor dos polêmicos “O Comportamento Sexual do Homem” e “O Comportamento Sexual da Mulher”, desenvolveram pesquisas na área das práticas sexuais, mas tomaram caminhos diferentes. À época da elaboração da teoria dos “roteiros” o sr. trabalhava no Instituto Kinsey. O que mais diferencia as duas abordagens especificamente?
Minha ligação era maior com o Kinsey cientista social do que com o biólogo evolucionista. Quando se examina cuidadosamente seus dois livros, descobrimos que ele combinou pelo menos três papéis: havia o Kinsey teórico sexual, o Kinsey reformador sexual (que acreditava que o regime sexual tanto para mulheres quanto para homens nos Estados Unidos era repressivo), e o Kinsey sociólogo. Haviam outros Kinseys, mas o mais importante pra mim foi a sua orientação sociológica. Todas as variáveis mais importantes em seu trabalho foram sociais, não biológicas.
Nossas abordagens se separaram quando eu percebi que sua pesquisa em sexualidade não era sociológica o suficiente. Kinsey não se deu conta que o orgasmo, por exemplo, era uma experiência sócio-psicológica tanto quanto biológica. Assim, um orgasmo ou experiência sexual (o ultimo termo é mais relevante em seu livro que diz respeito às mulheres) de uma determinada prática sexual ou de um tempo, em uma determinada cultura, não podem ser tratados como equivalentes. Surveys mais cuidadosamente projetados mostram que os estudos originais de Kinsey não representam a conduta sexual dos Estados Unidos no período que estes foram conduzidos.
Então foi sua rejeição ao naturalismo proposto por Kinsey e Freud que acabou por trazer este estudo social da sexualidade?
Sem dúvida. No período em que estávamos escrevendo os ensaios que compõem Sexual Conduct, tentamos reduzir ao máximo o papel do “natural”, tanto o quanto do “biológico”, na explicação da sexualidade. Freud e Kinsey compreendiam a importância dos contextos culturais e sociais na expressão da sexualidade, mas ambos também viam essa expressão como o resultado de uma disputa, um debate entre os imperativos biológicos e a restrição social.
E o que mais distancia o seu trabalho da abordagem freudiana da sexualidade?
Nos últimos anos, eu me distanciei completamente de qualquer influência que as idéias psicológicas de Freud pudessem ter em meu trabalho. O que eu acho mais importante em suas idéias (a fantasia, o inconsciente, a estrutura da mente) é como elas se tornaram amplamente aceitas na metade do século 20. Muitos das críticas ao trabalho de Freud me parecem corretas, incluindo aquelas que se apóiam em uma perspectiva mais positivista. Mas minhas diferenças com suas abordagens apóiam-se mais na falta de utilidade para minhas próprias idéias e práticas de pesquisa. Freud não é útil para mim.