CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

“Alguém tem que ceder”

Não existia no mundo, até então, outro exemplo de uma Conferência convocada pelo Estado para discutir apenas políticas públicas para gays, lésbicas, travestis e transgêneros. Nesse sentido, a I Conferência Nacional LGBT brasileira, realizada entre os dias 5 e 8 de junho, em Brasília, foi um evento único. Decisões importantes foram tomadas, entre elas: a criação do Plano Nacional de Políticas Públicas para LGBT; de um Conselho Nacional LGBT e da Subsecretaria LGBT dentro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. No plano legislativo, a decisão unânime foi pela criminalização da homo-lesbo-transfobia; o reconhecimento da união civil, e a criação do Estatuto LGBT. No campo jurídico, foi aprovada a proposta de que os juízes e as juízas de todas as instâncias devam reconhecer os direitos pautados pelos princípios constitucionais “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e que não haverá “quaisquer formas de discriminação”. A plenária também atendeu uma demanda antiga das lésbicas: a inversão do L pelo G na sigla que representa o movimento – agora LGBT. De agora em diante, em todo e qualquer documento governamental, essa nova sigla deverá ser usada.

“Esperamos agora que o movimento saiba se utilizar de todas essas decisões para implementar as políticas públicas, o que vai depender muito da sociedade e do controle social que possamos fazer”, avaliou Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transgêneros (ABGLT).

Nas palavras do ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), Paulo Vannuchi, a Conferência foi um evento “inovador no sentido de que o Brasil sai na frente na construção de um processo em que participaram governadores dos 27 estados, as assembléias legislativas e os ministérios públicos dos Estados. A nação parte decididamente para enfrentar os principais desafios dos direitos humanos no Brasil. Este é um dos marcos do calendário de comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos”, analisou o ministro na mesa de abertura da Conferência

“Em nosso país o ódio, o preconceito e a discriminação produzem violência como a que se abate especialmente sobre o segmento LGBT, e faz com que uma pessoa desse segmento seja assassinada no Brasil a cada três dias. De 1980 para cá, foram registrados quase 3 mil casos de mortes por ano. A luta pelos direitos LGBT é a mesma luta em defesa dos direitos da criança, da igualdade de gênero homem-mulher, da igualdade racial, dos índios e das pessoas portadoras de deficiência”, relatou Vannuchi.

O ministro salientou que, enquanto um ditador africano – o presidente de Gâmbia – declara que aquelas pessoas de seu país que queiram ser gays devem abandonar a nação e tornar-se gays em outros países, “o Brasil está declarando ser um lugar da convivência da diferença e que não aceita a estigmatização na escola, no trabalho e na saúde”.

Paulo Vannuchi também elogiou a unidade do movimento LGBT brasileiro, prestes a completar 30 anos de atividade – em 1980, além da formação do grupo SOMOS, considerado o primeiro grupo LGBT do país, houve também uma manifestação em São Paulo contra uma prática de limpeza social, como se chamava então, de um delegado que sistematicamente prendia travestis, trabalhadoras sexuais e gays que freqüentavam a área central da cidade. Sobre o tema – “30 anos de movimento no país” – o historiador inglês James Green, especialista na história da sexualidade no país, falará em conferência no CLAM, na quarta-feira, dia 18 de junho (Auditório do Instituto de Medicina Social/UERJ).

Paulo Vannuchi continuou seu discurso ressaltando a existência, no atual governo, de um enorme espaço para estratégias de negociação e convencimento para se implementar propostas – no Ministério da Educação, da Saúde, nas Secretarias Especiais da Mulher, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e nas Frentes Parlamentares pela Livre Orientação Sexual no Senado e na Câmara. “Além da idéia de sair daqui com um definido e estratégico programa de ação, vamos sair mais sensíveis com a idéia de nos unirmos em prol dos direitos humanos para garantir a construção de um Brasil para todos os brasileiros”, finalizou o ministro.

Transgenitalização no SUS

José Gomes Temporão, ministro da Saúde, destacou algumas iniciativas empreendidas pelo Ministério da Saúde relativas à promoção da saúde da população LGBT, como a inclusão da identidade de gênero na carta dos direitos dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), a qual atende a uma histórica reivindicação pelo uso do nome social das travestis e transexuais.

“No caso da resposta brasileira à epidemia da Aids, é reconhecido que o intenso ativismo e atuação do movimento GLBT possibilitou associar o enfrentamento da epidemia à defesa dos direitos humanos, o que criou um ambiente favorável para que a política pública nacional nesta área se configurasse a partir da redução dos contextos de vulnerabilidade que afetam homens que fazem sexo com homens (HSH), gays, lésbicas, travestis e transexuais”, disse Temporão.

O ministro revelou que até o final de junho assinará uma portaria que inclui no SUS a cirurgia para mudança de sexo para os/as transexuais que buscam tal procedimento.

“Alguém terá que ceder”, afirmou o presidente

Último a falar na mesa, o presidente Luis Inácio Lula da Silva afirmou que a Conferência é uma forma de se reparar uma dívida de séculos de história. E mandou um recado aos mais conservadores. “Deveríamos criar no Brasil o ‘dia de combate à hipocrisia’. O preconceito talvez seja a doença mais perversa impregnada na cabeça das pessoas. É uma doença que não se combate apenas com leis, é um processo que deve passar por uma revolução cultural. Não devemos querer que ninguém seja igual a ninguém. Mas se não despoluirmos nossas cabeças de preconceitos, nunca alcançaremos a unidade. Alguém tem que abrir mão de algo para se conseguir o consenso”.

Ao dizer isto, muitos dos presentes acreditaram que talvez o presidente estivesse mandando um recado para os políticos de posições mais conservadoras, que emperram discussões no Congresso através das mais variadas artimanhas. Continuou Lula: “Ninguém nos pergunta, na hora em que vamos pagar qualquer tributo neste país, qual é a nossa sexualidade. Então, por quê discriminar na hora em que livremente escolhemos o que queremos fazer com nossos corpos?”, questionou o presidente.

E finalizou com um compromisso: “No que depender do apoio do governo federal, iremos trabalhar para que o Congresso brasileiro aprove a lei que criminaliza a homofobia”.

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Diálogo oportuno

Para o ativista Beto de Jesus (ILGA/ABGLT), a Conferência teve dois momentos. “Primeiramente, ela garantiu uma capilaridade dessa discussão em todos os Estados. Neles houve conferências regionais e municipais, várias cidades do interior discutiram essa temática também, envolvendo além da sociedade civil, o poder público local. Então, isso em si é um processo bem revolucionário, capilariza essa discussão e traz novos atores sociais”.

Para ele, um grande problema é que a militância muitas vezes não consegue se comunicar com pessoas que não são ativistas de grupos organizados. “Isto coloca um questionamento interessante também, como você dá voz a diferentes atores sociais e como você modula essa relação com esses desníveis de experiências. Não que seja melhor ou pior, mas existe um desnível de experiência e isso é um processo pedagógico interessante para que nós, militantes que estamos em grupos organizados há mais tempo, exercitemos essa possibilidade de como dialogar”, disse ele.

Na análise do ativista, o momento mais forte na Conferência foi a presença do presidente e a forma como ele se dirigiu à comunidade LGBT. “As delegações internacionais estavam muito impressionadas com esse nível de relação que nós estabelecemos entre sociedade civil e poder público, este assumindo questões que são muito importantes para a população LGBT, coisa que não acontece em outras regiões, que também nos traz uma responsabilidade. É uma conferência muito pedagógica para pensarmos quais são as nossas práticas e quais são as nossos papéis frente a essa responsabilidade que nós temos. Nós abrimos uma grande caixa e agora temos que começar a colocar as coisas nos seus lugares”, concluiu.

Durante a Conferência, Toni Reis e Beto de Jesus informaram que, de acordo com informações da Secretaria de Pesquisa e Opinião Pública do Senado, mais de 80% das 36 mil ligações que o Senado recebeu sobre o PLC 122/2006 (de dezembro de 2007 até maio de 2008) são para expressar opiniões contrárias ao Projeto. Assim, a ABGLT sugere que as pessoas que sejam favoráveis ao Projeto liguem para o Disque PLC 122/2006 (ligação gratuita), para expressar opinião favorável à sua aprovação. O número é 0800 612 211.

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