É significativa e amplamente conhecida a distância que impede a integração mais efetiva e justa das mulheres às diversas instâncias do cotidiano. Historicamente, os homens sempre mantiveram e ainda preservam oportunidades privilegiadas. Em matéria de gênero, o fosso que divide homens e mulheres é corroborado por pesquisas que indicam postos de trabalho e salários melhores para eles, por exemplo. A esse quadro atual de desigualdades, soma-se outro aspecto que projeta um cenário de profundas injustiças forjadas histórica e socialmente: a pele negra, que até 1888 (abolição da escravidão no Brasil, através da Lei Áurea) constituiu um passaporte para a exploração e a miséria, ainda carrega a herança que prejudica especialmente as mulheres negras. O dia 25 de julho marca no calendário o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e serve como símbolo de resistência e fortalecimento das demandas dessas mulheres.
A pesquisadora colaboradora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para a área de Igualdade Racial Maria Inês Barbosa afirma que a data comemorativa possui relevância histórica por conta do papel que essas mulheres negras desempenharam ao longo dos séculos. “É uma data criada pelo próprio grupo, mostra que nós construímos essas nações, apesar dos relatos históricos que omitem esse fato. Damos visibilidade a esse processo e mostramos que vivemos em democracias inconclusas, porque nem todos os grupos estão inseridos. Há grupos alijados e não são parcelas pequenas. Não há reconhecimento do papel do negro nem de sua capacidade”, diz e completa que esse não reconhecimento não é aleatório, está inserido num processo de invisibilizar, dominar, tirar e omitir a capacidade dos negros. “É preciso dar visibilidade, protagonismo. Não somos mais objetos de estudo, somos objetos falantes”, salienta a Doutora em Saúde Pública pela USP.
A visibilidade, segundo a pesquisadora, é um primeiro passo para a superação de problemas sociais e estruturais seculares. A atuação do governo, nas circunstâncias brasileiras, adquire papel essencial para desenvolver estratégias de combate às desigualdades enraizadas no país. “O governo tem que desenvolver políticas para superá-las. É necessário desenvolver para dentro das políticas universais – como a educação – um olhar que permita estabelecer estratégias de superação dessas desigualdades. Nós já temos, por exemplo, conhecimento científico que o risco da mulher negra morrer por morte materna é maior que o da mulher branca por fatores de racismo, como a qualidade da assistência, por exemplo. Dessa maneira, eu não posso, enquanto Ministério da Saúde, estabelecer uma meta que seja mediana. Porque a mediana vai esconder os extremos. Se eu tenho diferença, a meta para cada caso tem que ser diferente”, compara Maria Inês, que já atuou como coordenadora do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem).
Atento à temática, o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) está desenvolvendo o Curso de Atualização e Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça (GPPGeR), em conjunto com a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM), a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o Ministério da Educação, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM). A iniciativa constitui-se em uma ação prática para se pensar e executar políticas no âmbito gênero e raça em nosso país.
Para Maria Inês Barbosa, que participou das articulações políticas para concretizar o GPPGeR, o projeto desenvolvido pelo CLAM terá como desafio cumprir esse papel. “Ele surge com lideranças de mulheres negras. E o fato de o curso estar inserido no Ministério da Educação lhe dá um alcance maior, já que será oferecido por universidades públicas”, argumenta. No total, 18 universidades irão promover o curso.
O foco são profissionais envolvidos com políticas de igualdade racial e de gênero, mas Maria Inês Barbosa lembra que ele também está aberto a outras pessoas que eventualmente tenham relação com a área. “O Brasil é uma referência mundial porque colocou esses temas sob a ação do Estado. Historicamente, não temos pessoas habilitadas para essa questão de políticas de gênero e raça, para pensá-las de maneira transversal a outras áreas de ação governamental. Temos que conhecer o porquê da necessidade de se ter política para lidar com as diferenças entre homens e mulheres e aquelas que envolvem os negros”, afirma.
O país, de acordo a pesquisadora do Ipea, convive com uma realidade de racismo em um contexto histórico que nega isso. A formação e a consolidação do país, explica, foram regidas a partir de desigualdades de classe econômica, de gênero e de raça que se perpetuaram até os dias atuais. Os reflexos são sentidos em várias instâncias do dia-a-dia e rotinizam situações de desrespeito e injustiça em áreas como a educação, a saúde, a habitação, o mercado de trabalho, o saneamento, dentre outras. Por outro lado, apesar das evidências visíveis em todo canto, um dos discursos recorrentes é o da naturalização dessas desigualdades, segundo os quais a clivagem racial seria um fato inevitável e aceitável. Nas palavras de Maria Inês Barbosa, “eu olho aquilo e aquilo não me chama a atenção, é um ‘não-problema’, uma ‘não-questão’. Enquanto for tratado assim, vai se reproduzir eternamente. Isso não é uma questão só da mulher ou só do negro. É uma questão do país. A nação precisa estabelecer um pacto para dizer ‘basta’. No caso das reações às cotas, por exemplo, as pessoas contrárias não estão considerando isso como uma questão”, afirma.
Um discurso ainda recorrente, segundo a pesquisadora do Ipea, é a tese da democracia racial, linha de pensamento segundo a qual a sociedade brasileira conviveria de forma harmônica e integrada em meio às diferenças raciais. De acordo com Maria Inês Barbosa, não vivemos esse modelo de democracia. “Isso é uma ideologia negada pela própria realidade. Quando olhamos os estudos que apontam isso, feitos na década de 1950 e patrocinados pela Unesco, o Brasil era considerado um país aonde não havia o que se notava, por exemplo, na África do Sul (apartheid) e nos EUA (segregação racial). Nesses termos, vivíamos supostamente numa democracia racial”, explica.
No texto “Racismo e República: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil”, do livro As Políticas Públicas e a Desigualdade Racial no Brasil após a Abolição (Ipea), a autora Luciana Jaccoud afirma que “se a democracia racial brasileira afirma-se como deslegitimadora da hierarquia social ancorada na identificação racial, ela não deixa de fortalecer o ideal do branqueamento ao promover a mestiçagem e seu produto, o mulato”. Na análise de Maria Inês, “o elemento de mestiçagem é utilizado para se questionar quem é negro. Todo mundo sabe quem é negro ou branco. É uma forma de camuflar o racismo. Na mestiçagem, há escalas e o fato de você não ser branco faz de você um negro. Não lidamos com uma questão conjuntural. É um fato estruturante, que necessita de respostas estruturantes”, argumenta Maria Inês Barbosa, usando como exemplo a desigualdade dos chamados pardos em relação aos brancos, cujo nível é semelhante ao que separa os negros dos brancos.
As distintas posições em cargos de trabalho e as dificuldades de acesso a serviços oferecidos pelo Estado ilustram o panorama racial traçado por Maria Inês Barbosa. “Por que a maioria dos negros é pobre? Por que somos 70% dos miseráveis? É só a questão da pobreza? Não. Estamos sobrerepresentados na pobreza e não estamos nas outras estruturas de poder. As taxas de homicídio, por exemplo, colocam os negros como maiores vítimas. Essa pretensa democracia racial a gente já desconstruiu, mas ela ainda existe. E é preciso vontade para mudar. Isso implica direitos. E é um debate que veio para a sala de jantar, não está só na cozinha. Estamos dialogando, o que já é uma forma de reconhecimento”.
Para a pesquisadora, os espaços de trabalho corroboram claramente a divisão racial da sociedade. “Veja as nossas empresas aéreas. Não há negros. E isso é normal para atividades que não são complexas. É o que chamamos de supremacia do ideal e da estética. Posso ter a empregada negra, mas não a aeromoça. Existe uma barreira que estabelece que alguns lugares não são para negros. Há um padrão. Veja o caso das cotas e a reação a elas: estamos disputando as melhores universidades e não deveríamos estar fazendo isso, porque este é o local da elite pensante. Se eu for colocar negros, pobres e índios lá, para onde vai essa elite pensante? A democracia é a democracia de cada um nos seus espaços”.
Maria Inês Barbosa comemora os avanços que o país já alcançou no âmbito de gênero e raça, mas reitera que é necessário mais. Ela lembra que, quando criança, na escola, falava-se do negro como vítima. “Não ouvi nada sobre rebeliões, sobre a resistência dos negros. Aprendi tudo sobre França, Inglaterra, mas não aprendi a cultura de povos africanos, suas sociedades que dominaram, por exemplo, a metalurgia”, relembra. “Como lidar essa realidade que nega o racismo? As políticas universais devem atender brancos, negros, pobres, todos sem exceção. Mas se eu não tiver uma política e um olhar voltado para cuidar disso dentro da política maior, eu vou estar reproduzindo desigualdade”, finaliza.