CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Aborto e eleições

De acordo com pesquisa realizada pela Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), uma em cada cinco mulheres brasileiras já fez um aborto, o que representa um contingente de mais de 5 milhões de mulheres entre 18 e 39 anos, que abortam com métodos inseguros e correm risco em clínicas ilegais ou com medicamentos adulterados. A maioria daquelas que recorre à clandestinidade, acaba finalizando o procedimento nos hospitais públicos, o que traz custos ao Sistema Único de Saúde (SUS) e altas taxas de mortalidade feminina. As mulheres de maiores recursos econômicos realizam aborto em clínicas particulares de baixíssimo nível de risco, o que demonstra a profunda desigualdade social no país quando se trata de direitos reprodutivos. O aborto ilegal e inseguro é, portanto, uma importante questão de saúde pública no Brasil. Apesar disso, no contexto em que o tema foi colocado para o segundo turno das eleições presidenciais, o aborto se transformou em uma moeda de troca e, sobretudo, numa categoria de acusação para ganhar votos, particularmente de evangélicos e católicos.

Buscamos, a seguir, relembrar o que os dois principais candidatos à presidência já afirmaram à imprensa sobre o tema (e como têm recuado), e analisar o fato de, no momento atual, se considerar que o tema do aborto seja capaz de decidir as eleições para Presidente da República no Brasil, assunto fomentado pela imprensa brasileira nos últimos dias.

Imprensa, aborto, Dilma e Serra

A candidata do Partido dos Trabalhadores (PT), Dilma Rousseff, em entrevistas durante sua campanha, defendeu que o governo cumpra a lei e faça o procedimento em estabelecimentos públicos de saúde nos casos estabelecidos por lei.

“O que nós defendemos é o cumprimento estrito da lei, que prevê casos em que o aborto deve ser feito e provido pelo Estado”, afirmou a candidata ao jornal O Estado de São Paulo, em junho.“Não conheço nenhuma mulher que ache aborto uma coisa maravilhosa. Não se deve tratar a questão como religiosa ou de foro íntimo, mas de saúde pública”, afirmou.

A candidata, porém, parece não defender publicamente uma mudança na lei, para que se abram mais permissivos legais. Segundo declarou, o aborto para ser possível tem de estar previsto em lei. “Mudança é um processo que tem que ser discutido com a sociedade e tem que ver o que um governo fará”, declarou, na mesma entrevista.

Mas embora tenha defendido a discussão sobre o tema em sociedade, posição também sustentada pela candidata do Partido Verde (PV), Marina Silva – que defendeu plebiscito sobre o tema –, Dilma Rousseff foi “acusada”, na reta final das eleições de 03 de outubro, de “ser favorável ao aborto”, o que, segundo a grande imprensa, teria sido a razão principal de ela não ter vencido logo no primeiro turno, conforme prenunciavam todas as pesquisas de opinião – ela se manteve com mais de 50% das intenções de voto nos últimos três meses. As acusações contra a candidata do governo foram fortes e correram por emails e pela internet. De acordo com o que tem sido noticiado pela mídia, boa parte de seus eleitores – especialmente os ligados às religiões católica e evangélicas – teriam desistido de votar nela por esta “ser favorável ao aborto”, direcionando seus votos para a evangélica Marina Silva. De lá para cá, tem-se especulado se Dilma e o Partido dos Trabalhadores (PT) vão recuar e retirar de sua plataforma política o debate sobre a descriminalização do aborto neste segundo turno. Nota-se: nesta lógica manipulatória, “ser favorável” ao aborto é a visão reducionista de “ser favorável ao direito de realizar o aborto”.

Por sua vez, o candidato à Presidência pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), José Serra, segundo colocado nas pesquisas, afirmou-se contra a descriminalização do aborto e de mudanças na lei durante sua campanha. Em entrevista a um programa do canal Sistema Brasileiro de Televisão, afirmou: “Eu não sou a favor do aborto. Não sou a favor de mexer na legislação. Agora, qualquer deputado pode fazer isso. Como governo, eu não vou tomar essa iniciativa”, declarou.

Para ele, a liberação promoveria uma “carnificina” no País e prejudicaria programas de prevenção à gravidez indesejada, conforme anunciou em sabatina no jornal Folha de São Paulo, em junho. “Dificultaria o trabalho de prevenção, como no caso da gravidez na adolescência, que é um assunto muito grave. Vai (ter) gravidez para todo o lado porque (a mulher) vai para o SUS (Sistema Único de Saúde) e faz o aborto”, disse Serra, não parecendo ser o mesmo que, quando ocupava o cargo de Ministro da Saúde, em 1998, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, assinou norma técnica para o SUS (Sistema Único de Saúde), estabelecendo regras para fazer abortos previstos em lei, até o 5º mês de gravidez. (Leia a íntegra da norma em: http://www.cfemea.org.br/pdf/normatecnicams.pdf)



Além do aborto legal, o manual de 1998 liberava o uso de uma série de medidas de emergência para as vítimas de violência sexual, entre elas, a pílula do dia seguinte, considerada por religiosos como abortiva. Assim, segundo seus adversários, José Serra foi quem mais contribuiu para o avanço da interrupção da gravidez no País, tanto por normatizar a prática do aborto em serviços públicos como por incluir o uso da pílula do dia seguinte.


A opinião de especialistas

O fato é que, a mais ou menos três semanas para as eleições do segundo turno – que serão realizadas no dia 31 de outubro – Dilma e Serra recuaram e mudaram discursos e projetos devido a interesses eleitorais, especialmente sobre temas que envolvem questões morais, como o aborto. No entanto, avaliam especialistas, o que deveria estar em jogo não é a opinião moral dos candidatos Dilma Rousseff ou José Serra acerca da interrupção da gravidez, mas sim como eles pensam em cuidar dos milhões de mulheres que chegam aos hospitais públicos para finalizar um aborto (e muitas vezes acabam morrendo). Ou como responderiam a pergunta: se uma mulher teve que recorrer ao aborto por razões econômicas, ela deveria ser presa? Ou se eles acreditam que uma mulher deva ser forçada a manter uma gravidez mesmo sabendo que o feto não irá sobreviver, como nos casos de anencefalia. Ou seja, o tema precisa ser tratado como uma questão de saúde e não como bandeira conservadora e religiosa utilizada para eleger candidatos.

“Foi lamentável o duelo entre Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PV), duas mulheres com origens de esquerda e que sabem que o aborto é uma problemática real e concreta, ficarem dizendo, cada uma a seu modo, que são contra. O Serra, inclusive, fala que sempre foi contra, apesar de ter assinado a norma técnica quando ministro da Saúde. Um ponto importante é sempre retomar o aborto como um problema de saúde pública. Outro ponto é tentar sair da polarização de ser contra ou favorável, porque ninguém é favorável ao aborto. Trabalhamos com a idéia de que o aborto é uma escolha, uma alternativa na vida daquela mulher. Mas certamente não é uma alternativa fácil, não é um método corriqueiro. É um direito à autonomia da mulher”, avalia o pesquisador Maurílio Castro de Matos, professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do livro recém lançado “A Criminalização do Aborto em Questão”.

Para Regina Jurkewicz, da organização Católicas pelo Direito de Decidir, o momento atual deveria ser propício para uma discussão mais ampla. “A legalização do aborto não pode ser vista como um meio de incentivo à interrupção da gravidez. O aborto não tem sido usado como tema, e sim como uma arma política. Quem mais se prejudica são as mulheres pobres, que terminam no SUS com complicações decorrentes de um aborto feito em condições ou por métodos precários, enquanto as mulheres com condições realizam o aborto com segurança”, analisa a socióloga.

Na opinião do demógrafo José Eustáquio Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), cabe ao Estado desempenhar o seu papel e colocar em prática o que a legislação brasileira estabelece e garantir a homens e mulheres a autodeterminação reprodutiva, diminuindo, assim, o número de gravidezes não planejadas e de abortos.

“Muitas mulheres, mas especialmente as mais pobres, recorrem ao aborto inseguro para interromper uma gravidez indesejada. Ao fazer isto, morrem ou ficam com seqüelas físicas e/ou psicológicas. Portanto, é preciso reduzir o número de abortos inseguros no país, e a forma de se fazer isto não é colocando estas mulheres na cadeia, mas sim dando acesso aos métodos de regulação da fecundidade. A Constituição Brasileira e a Lei 9.253/1996 estabelecem que o planejamento familiar é um direito das pessoas e cabe ao Estado fornecer as informações e os meios para o controle voluntário da fecundidade. Portanto, cabe ao Estado fornecer os métodos contraceptivos necessários para evitar a gravidez indesejada. Se o Estado conseguir fazer a sua parte e universalizar os serviços de saúde sexual e reprodutiva haverá redução do número de abortos. Cabe ao próximo Presidente da República tornar a letra da lei em realidade”, afirma José Eustáquio.

Em entrevista à revista Época desta semana (Clique aqui para ler), a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB), ressalta: “Neste momento, se considera que o tema do aborto é capaz de decidir as eleições para Presidente da República no Brasil. Isso é um absurdo e pelo menos por três razões. A primeira razão é que há dezenas de outras questões fundamentais para os rumos do país, e que precisamos de clareza sobre as proposições dos candidatos, tais como a desigualdade social, a violência urbana, ou questão rural. Colocar o aborto como questão prioritária é uma estratégia perversa de silenciar os temas que verdadeiramente importam para o debate político. A segunda razão é que esse fenômeno atualiza no Brasil o que foi o estilo Bush de governar, com o fortalecimento das religiões na política. (…) Por fim, é perverso ignorar o impacto que a ilegalidade do aborto tem na vida de uma mulher. As mulheres morrem e adoecem ao fazer um aborto ilegal. O risco não está no aborto como um ato médico, mas na ilegalidade do aborto. Elas passam a ser criminosas por resistirem à imposição do Estado em serem mães contra a vontade”.

Cabe a todos a pergunta se, de fato, o aborto é a questão central do debate eleitoral ou se o tema está servindo, de modo instrumental, a uma estratégia de (ambos os lados) de evitar o detalhamento de proposições governamentais prioritárias. O aborto é a cortina de fumaça ou tema decisivo nessa campanha?