A problematização das questões de gênero proporcionou o debate em torno da masculinidade, conceito relativamente novo em termos de estudo e pesquisa, que passou a ser teorizado pelas ciências sociais e humanas há pouco mais de duas décadas. Hoje existem cerca de quatro mil artigos abordando a questão e muitas conclusões: a primeira delas é que não existe uma única masculinidade; os padrões e as práticas são variados, aparecem de formas múltiplas. A segunda é que as práticas de masculinidade estão situadas em contextos de relações de poder e autoridade, de crises econômicas e de classes sociais distintas. A terceira conclusão é que as masculinidades não são homogêneas e simples. Elas contêm tensões, incoerências, contradições. São características que abrem possibilidades de mudança.
“O Japão, por exemplo, marcado por um arraigado modelo de masculinidade baseado na figura do homem assalariado e trabalhador, tem abrigado discussões e mudanças nesse modelo. Essas mudanças estão ligadas a diversos âmbitos, como economia, demografia etc”, avaliou a socióloga australiana Raewyn Connell, professora da Universidade de Sydney, durante a palestra “Masculinidades no contexto de globalização”, apresentada no CLAM no dia 03 de novembro.
Segundo ela, a discussão acadêmica e teórica sobre as masculinidades tem resultado em controvérsias. Há críticas ao paradigma pós-estruturalista, que reduziria as análises de gênero à questão da identidade.
“A identidade é um aspecto importante, no entanto, não contempla tudo nem dá conta da discussão teórica. Vejo o gênero como uma estrutura social com quatro dimensões: relações de poder, relações econômicas, relações sociais e relações emocionais. Os estudos em masculinidade não teorizam sobre o pano de fundo colonialista ou pós-colonialista. Ou seja, as práticas de masculinidade são teorizadas a partir de uma perspectiva local, como se houvesse um mosaico de países com características distintas. As implicações coloniais e pós-coloniais estão ausentes nestes estudos. O colonialismo foi um processo histórico generificado, que repercutiu na América Latina, na África e na Austrália.”, afirmou Raewyn.
A pesquisadora destacou que a globalização neoliberal certamente impactou as masculinidades de diferentes modos. “O processo criou uma maior insegurança econômica para um grande número de homens ao redor do mundo, o que cai em contradição com a imagem circulante da masculinidade heterossexual. Esta é uma tensão que existe agora como resultado da globalização em muitas partes do mundo”, ressaltou.
A globalização, para ela, não é um conceito adequado. “O conceito sugere que o mundo esteja tendendo a um único padrão, o que não é verdade. Existem estruturas de desigualdades e de exploração, além de diferentes relações de gênero e distintas práticas de masculinidade”, salientou.
Nascida como Robert Connell, Raewyn é hoje uma das mais influentes sociólogas australianas. Especializou-se no estudo de questões de gênero e foi consultora da ONU. Recentemente coordenou uma pesquisa internacional com 40 executivos (mulheres e homens) de empresas envolvidas na economia internacional que operam na Austrália, no Chile, no Japão e na África do Sul. Durante o trabalho de campo, realizado há quatro anos, os gerentes destas empresas foram inquiridos sobre sua vida doméstica e social.
“Os executivos formam um dos grupos mais influentes do mundo. Contudo, nosso estudo não mostra grandes mudanças. As mulheres continuam sendo minoria tanto nos níveis mais altos quanto nos mais baixos destas companhias. Em relação aos homens entrevistados, os padrões de masculinidade não mudaram muito: enquanto eles investem em suas carreiras nos negócios, suas esposas permanecem ligadas ao ambiente doméstico, cuidando dos filhos”, disse ela.
Críticas ao relatório do Fórum Econômico Mundial: “O conceito de gênero usado por este tipo de índice é errado”
No mesmo dia em que Connell apresentava sua palestra no Rio de Janeiro, o Fórum Econômico Mundial (FEM) lançava o relatório Desigualdade Global de Gênero 2011, que mede as disparidades entre os gêneros em 135 países. Segundo a lista divulgada pelo FEM, na América Latina só o Suriname está pior que o Brasil, que subiu três posições no ranking de igualdade entre os sexos, mas continua na parte de baixo da tabela composta por 135 países, ocupando a 82ª posição, muito por conta das desigualdades em relação às oportunidades no mercado de trabalho. Entretanto, Raewyn Connell afirmou compartilhar o mesmo tipo de crítica de muitos cientistas sociais em relação a levantamentos como este.
“O conceito de gênero usado por este tipo de índice é errado, ao tratar homens e mulheres simplesmente como um grupo de indivíduos, com um certo nível educacional e de renda, ao invés de pensar o gênero em termos relacionais. Tais indicadores não nos dizem muito sobre as instituições e seu funcionamento, ou sobre os costumes e práticas dos empregadores. Tratam homens e mulheres separadamente, como se fossem blocos completamente distintos, e não reconhecem as diferenças entre eles. Sabemos que existem diferentes práticas de masculinidade. Enfim, estes índices não levam em conta as complexidades de gênero”, avaliou.
Outra crítica da pesquisadora refere-se ao fato de o FEM ser composto por executivos. “Eles geram lucro através das desigualdades de gênero, da existência da mão de obra barata e dos baixos salários, além da exploração de mulheres, e ao mesmo tempo lançam um relatório para denunciar as disparidades de gênero. Com o que estão preocupados? Imagine as ‘maquiladoras’ e o salário de exploração destas empresas em muitas partes do mundo, as quais representam uma importante parte de uma economia global desregulada e uma forte segregação de gênero”, questionou.
Outro aspecto importante, segundo ela, é o papel da mídia globalizada nos padrões de masculinidade. A socióloga usou como exemplo a revista Men’s Health. “A mesma edição é encontrada no Chile, na Inglaterra, na Alemanha e na África do Sul, apenas com o idioma diferente. Mas a circulação de imagens generificadas é a mesma, uma circulação global. Mesmo assim, é um risco teórico pensar nessa circulação como sendo homogênea”, concluiu.