Por Fábio Grotz
O Brasil promoveu um desvio em seu histórico desempenho de defesa e promoção dos direitos humanos, especialmente em matéria de direitos sexuais e reprodutivos. No final de outubro, o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) Anand Grover apresentou na 66ª Assembléia Geral o relatório sobre “o direito de que toda pessoa goze do mais alto nível possível de saúde física e mental”. O texto trata da “interação entre leis criminais e outras restrições legais relacionadas à saúde sexual e reprodutiva”, citando como efeito a violação da dignidade e da liberdade das pessoas, e defende a remoção dessas barreiras criminais como uma obrigação dos Estados.
Para a advogada e consultora do Ipas Beatriz Galli, o texto de Anand Grover é um marco na área dos direitos sexuais e reprodutivos. “Ele amplia o marco conceitual desde o documento final da Conferência do Cairo, pois avança sobre temas não citados neste documento, como o argumento de que a criminalização do aborto é uma violação de direitos humanos e, portanto, deve ser um obstáculo eliminado. O relator foi muito corajoso, apontando que questões sexuais e reprodutivas, que integram o âmbito da saúde pública, não podem ser tratadas sob a ótica penal”, observa.
O relatório, apresentado no Terceiro Comitê da ONU, em Nova Iorque, enfatizou o impacto que a criminalização do aborto tem nas prerrogativas à saúde das mulheres. “Tais leis infringem a dignidade e a autonomia das mulheres ao restringir severamente o poder de decisão delas no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva”, afirma o relator no texto. Além disso, Anand Grover argumenta que o planejamento familiar é uma forma de empoderamento das mulheres, na medida em que permite escolhas autônomas sobre a vida sexual e reprodutiva. A oferta e o acesso à educação e informação sobre saúde sexual e reprodutiva também integram o rol de componentes essenciais para o direito à saúde. Leis que restringem o acesso à informação, salienta Grover no relatório, “são incompatíveis com a realização plena do direito à saúde”.
Durante sua fala na sessão, Anand Grover criticou o controle do corpo das mulheres por meio de leis criminais que resultam na continuidade de gravidezes não planejadas. Tais leis, destacou o relator especial, perpetuam a estigmatização e a marginalização das mulheres.
Durante a apresentação, a posição dos governos foi variada. A pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) Sonia Correa, que esteve presente na reunião, afirma que o debate em torno do texto do Anand Grover foi tenso. O relatório foi apresentado junto com outros dois relatórios (sobre tráfico de pessoas e sobre a situação dos defensores de direitos humanos). Estiveram presentes à sessão representantes de diversas ONGs que trabalham com direitos sexuais e reprodutivos, assim como pessoas ligadas a grupos pró-família, anti-direitos das mulheres e conservadores.
O Brasil fez comentários apenas sobre o relatório de tráfico de pessoas, ressaltando a política de combate ao tráfico e enfatizando os países de destino. “Em relação ao relatório do Anand Grover, assim como o dos defensores dos direitos humanos, o governo brasileiro se calou. É um silêncio muito contundente e problemático, pois é contraditório à trajetória de bom desempenho do Brasil no que diz respeito a tais temas”, critica Sonia Correa, lembrando a iniciativa do Brasil na defesa dos direitos humanos, especialmente no caso da relatoria especial do direito à saúde. “O que nos espanta é que este procedimento da ONU foi criado com o apoio significativo do Brasil, no início dos anos 2000. O Anand Grover contou com o apoio de movimentos brasileiros durante sua indicação para ocupar a relatoria especial, em 2006. A apresentação do relatório é uma sessão de governos, um momento político muito denso. Se todos atacam ou se silenciam, a posição do relator fica comprometida. Além disso, o Brasil recentemente teve uma boa participação na 44ª sessão da Comissão de População e Desenvolvimento, em maio. Houve uma mudança que não se pode ignorar”, afirma.
O documento de Anand Grover foi atacado pela Santa Sé, pelo Chile, pela Suazilândia e por Honduras. Sonia Correa destaca a posição chilena para se contrapor à postura brasileira. “O Chile, que possui um governo conservador, apoiou o relatório reservando-se a uma posição idêntica à Santa Sé no que diz respeito ao aborto. No entanto, não desautorizou o conjunto do relatório”, lembra. No hemisfério Sul, Argentina e África do Sul apoiaram o texto de Anand Grover. O primeiro, que discute no Congresso a despenalização do aborto, defendeu o relatório, destacando a importância do texto diante dos debates internos.
De acordo com Sonia Correa, a sessão de apresentação dos relatórios revela um panorama preocupante. “Os únicos países que foram consistentes nos três relatórios foram os europeus. Os Estados Unidos destacaram os direitos LGBT, dando pouca ênfase à questão do aborto. O silêncio da América Latina e de vários outros países, que inclusive têm legislações favoráveis ao aborto, é preocupante. É uma situação do ponto de vista global não muito auspiciosa, porque reflete uma fratura que não deveria existir”, observa Sonia Correa. A pesquisadora da ABIA salienta a importância da mobilização de ONGs no apoio ao relatório (clique aqui para ler a declaração de apoio de organizações e redes de mulheres da América Latina e Caribe que apoiam o texto de Anand Grover) .
A posição do Brasil não é casual e corrobora uma postura que, também no plano interno, vem se caracterizando por evitar se pronunciar – quando não, dar um passo atrás, como no caso do kit-anti-homofobia e da Rede Cegonha, política de saúde maternal lançada no primeiro semestre – em assuntos relativos à saúde sexual e reprodutiva.
A consultora do Ipas Beatriz Galli critica a omissão do Brasil. “É surpreendente e desanimadora. O Brasil sempre teve um papel de liderança nas discussões e proposições na área dos direitos humanos, especialmente na temática de direitos sexuais e reprodutivos. Infelizmente, essa postura externa reflete o contexto interno, carregado de controvérsias, no qual o governo reluta em tomar decisões que possam gerar reação de setores conservadores e religiosos. Depois da campanha eleitoral do ano passado [na qual o aborto foi usado como arma contra a então candidata Dilma Rousseff], o governo assumiu uma posição de cautela e abriu espaço para que tais setores interferissem e cobrassem nos processos de elaboração de leis e execução de políticas públicas. Isso não acontecia de forma tão explícita no governo anterior”, analisa Beatriz Galli.