Retirar o aborto do estigma de assassinato e colocá-lo como uma questão sanitária. Esta é a intenção da Comissão de juristas instituída pelo Senado Federal para elaborar o anteprojeto de reforma do Código Penal, proposta que deve ser enviada ao Senado ainda este ano. Dentro das propostas de alteração do capítulo dos chamados “crimes contra a vida”, na sexta-feira (09/03), a Comissão aprovou um texto que propõe o aumento das possibilidades para que uma mulher possa realizar abortos sem que a prática seja considerada crime. A principal inovação na legislação sobre aborto é que uma gestante poderá interromper a gravidez até 12 semanas de gestação, caso um médico ou psicólogo avalie que ela não tem condições “para arcar com a maternidade”.
“Fizemos o que foi possível no momento político atual, já que há muita pressão religiosa nesta questão. Mas acredito que a proposta de reforma coloca o aborto mais próximo da saúde pública e mais distante da polícia. A intenção é esta: deslocar o assunto mais para a área médica e psicológica e menos para o Direito”, assinala Juliana Belloque, defensora pública do Estado de São Paulo.
O anteprojeto também garante às mulheres poder interromper uma gestação até os dois meses de um anencéfalo ou de um feto que tenha graves e incuráveis anomalias para viver. Atualmente, em casos de anencefalia ou de outras anomalias fetais incompatíveis com a vida, a lei obriga a mulher a ir à Justiça e enfrentar a demora e a burocracia. “É um sofrimento para a mulher, que tem que batalhar para ter acesso ao serviço de saúde. Por isso, procuramos ampliar os direitos das mulheres. A premissa dessas alterações penais é que não é o Judiciário a área mais capacitada para tais decisões. É a Saúde que vai ampliar as prerrogativas das mulheres”, explica a defensora, que compõe a Comissão ao lado de outros 15 juristas.
O médico obstetra Thomaz Gollop, geneticista e professor na Universidade de São Paulo (USP), considera as propostas da Comissão de Reforma do Código Penal um grande avanço. “Os juristas que estudaram a fundo esta questão pensam na preservação da vida das mulheres. Este é o ponto fundamental. Quando médicos, juristas e uma grande parte da sociedade civil reformulam posições no tocante a um tema desta magnitude, eles o fazem com conhecimento de causa e isto é muito importante. É uma dívida a ser saldada com as mulheres, especialmente aquelas de menor renda. A criminalização do aborto e sua penalização com cadeia, além de ineficaz, remete as mulheres ao abortamento inseguro que causa danos a sua saúde física e mental, quando não as leva à morte”, afirma Gollop.
O aborto inseguro é ainda a quarta causa de morte materna de mulheres sendo a primeira causa desses óbitos em Salvador, Bahia. Em 2007, análise de dados disponibilizados pelo DataSUS dá conta de que, na capital baiana, para cada 3,6 internações por parto, na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), uma foi conseqüência de aborto provocado e inseguro, demonstrando que a cidade tinha a menor relação parto/aborto do Brasil, o que quer dizer que por lá há menos partos e mais abortos.
Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), primeira pesquisa nacional domiciliar sobre o tema, uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já fizeram aborto. Ao evidenciar a magnitude do fenômeno no Brasil e a diversidade das mulheres que recorrem à prática, a pesquisa, publicada em 2010, explicitou a ineficácia da restritiva legislação brasileira atualmente em vigor, a qual, além de não evitar o procedimento, acaba por reiterar desigualdades sociais, levando uma parcela importante de mulheres a práticas inseguras.
“Muitas mulheres ainda procuram o SUS em função de complicações de abortamentos realizados de maneira inadequada, o que já causa atualmente um custo considerável ao sistema público de saúde. Somos a favor da vida! Por isto mesmo não queremos, como médicos, juristas, sociólogos, antropólogos, que mulheres morram em função de uma causa evitável, que é o aborto inseguro”, observa Thomaz Gollop, que no dia 24 de fevereiro participou da Audiência Pública realizada no Tribunal de Justiça de São Paulo para discutir o anteprojeto da Comissão de Reforma, que contempla ainda modificações que atingem outros crimes contra a vida e a honra, como eutanásia, estupro presumido e infrações graves de trânsito.
A eutanásia hoje é tratada como homicídio comum, com pena entre 6 e 20 anos de prisão. De acordo com o anteprojeto, a eutanásia será um crime autônomo, separado do crime de homicídio. “Não se deve tratar como um homicídio uma ação que diz respeito à dignidade de outra pessoa. Terá uma pena menor, com a possibilidade de o juiz conceder o perdão judicial, a partir da relação de afeto com a pessoa querida”, explica Juliana Belloque.
Já em relação ao estupro foi proposta uma grande mudança. A comissão propôs que o estupro seja o crime em que há relação sexual (anal, vaginal ou oral) com constrangimento, ameaça ou violência. Pena de 6 a 10 anos.
“Propusemos também um crime intermediário, chamado de molestamento sexual, com pena de 2 a 6 anos. São condutas de constrangimento sexual, como passar a mão, esfregar-se etc. Com o código atual, em que todos os crimes sexuais significam estupro, os juízes ficam receosos de aplicar a pena para casos mais brandos que não envolvem penetração. É uma disfuncionalidade tudo ser estupro”, salienta a defensora pública.
Homofobia como uma motivação torpe e vil
Tendo em mente que a violência baseada em preconceito de orientação sexual e identidade de gênero é uma realidade forte no país, pela reforma proposta a homofobia será contemplada como uma injúria, um crime contra a honra.
“A homofobia contará como agravante (o que chamamos de circunstância qualificadoras) para os casos de lesão e homicídio. Um homicídio comum tem pena de 6 a 20 anos. Homicídio qualificado tem pena de 12 a 30 anos. Além disso, a homofobia também valerá em casos de crimes de preconceito e intolerância contra pessoas por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero. Da mesma forma que é nos casos de preconceito por cor. A ideia é estabelecer a homofobia como uma motivação torpe e vil. É preciso nomear esta intolerância. Isso tem um efeito educativo, pois a lei diz claramente o que é”, afirma Juliana Belloque.
As discussões na Comissão ainda não foram encerradas, o que deve acontecer ainda no 1º semestre de 2012. Depois de fechado, o anteprojeto será enviado ao Senado, onde será discutido e os senadores decidirão se irão torná-lo um projeto. “O clima atual é pela alteração do código penal, que é de 1940. É uma preocupação do Congresso e dos parlamentares modificá-lo. Mas não podemos saber se será aprovado ou não. Os parlamentares é que vão construir essa decisão”, conclui a jurista.