Antes tida como uma conquista vitoriosa dos movimentos feministas, por concretizar a separação entre sexualidade e procriação, a pílula é hoje vista como uma imposição. “O fato de as mulheres terem que tomar a pílula enquanto os homens são isentos lhes parece uma nova forma de dominação masculina. Elas ficam com a responsabilidade e os temidos inconvenientes dos efeitos secundários, enquanto os homens só têm vantagens”, destacou a socióloga francesa Michèle Ferrand, pesquisadora do Centre National de Recherche de Sociologie (CNRS), e pesquisadora associada do Institut National d’Etudes Démographiques (INED), durante sua aula inaugural do XI Curso de Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva. Michèle falou sobre “A Sociologia da contracepção e do aborto”.
Na França, cerca de 95% das mulheres têm acesso gratuito a métodos contraceptivos, como a pílula, o DIU e o anel vaginal. Mesmo sendo legal no país desde 1976, o aborto não é praticado indiscriminadamente – a grande maioria dos casos de aborto resulta de gravidez não prevista, fruto do fracasso no uso de métodos contraceptivos. Segundo Michèle, a contracepção médica (associada à possibilidade de aborto em caso de insucesso de outros métodos) traz potencialmente mudanças nas relações de gênero – a reprodução poderia estar, em teoria, nas mãos das mulheres. “Livrando as mulheres da angústia de uma gravidez indesejada, a contracepção as coloca em posição teoricamente equivalente a dos homens diante das conseqüências das relações sexuais”.
Mas, se por um lado a revolução contraceptiva trouxe em si uma modificação das relações entre os sexos no que diz respeito à iniciativa e ao controle da procriação, no que concerne a parentalidade e a sexualidade, o quadro não mudou. “Ao analisarmos as práticas contraceptivas e abortivas nos domínios da parentalidade e da sexualidade, vemos que as mulheres ainda permanecem submetidas à dominação masculina”, afirmou a pesquisadora.
A pesquisa realizada por Michèle mostra que, mesmo nos casais que se consideram mais igualitários, os homens que se tornaram pais investem mais no trabalho profissional, enquanto as mulheres que se tornaram mães dedicam mais tempo à casa e à família. Persiste, assim, uma divisão sexual do trabalho. “O lado lúdico é mais ocupado pelo pai, que pode até dar uma mamadeira, mas não a lava”, exemplificou. Na França, as pesquisas de utilização do tempo mostram que os homens passaram a dedicar apenas 10 minutos a mais no período de uma semana aos cuidados com os filhos, em comparação à ultima década. A carga doméstica permanece nas mãos das mulheres.
No que diz respeito à sexualidade, segundo a socióloga, embora a gestão da contracepção seja considerada da alçada da mulher, o desejo e o prazer do homem ainda são prioridades. “Pode-se dizer que hoje, mesmo sendo a contracepção considerada sobretudo uma questão feminina, a escolha do método ocorre em função das preferências do parceiro. Isto fica claro, por exemplo, quando ele expressa não querer usar o preservativo. Mas isto também ocorre quando a mulher ‘antecipa’ as reações dele, seja pela interiorização da sua própria responsabilidade diante da contracepção ou pela falta de confiança na responsabilidade do parceiro”, finalizou ela.
A boa mãe
A passagem de um modelo de ‘maternidade suportada’ a um modelo de ‘maternidade voluntária’ se fez, na França, por meio da difusão daquilo que Michèle chama de ‘norma contraceptiva’, resultado um pouco paradoxal da reivindicação feminista ao direito a uma maternidade ‘totalmente controlada’. Essa ‘norma’ ajudou a produzir um novo modelo da “boa mãe”. Da mesma forma como há uma idade melhor para iniciar a vida sexual, existe também uma idade ideal para ser mãe – no caso francês, entre os 25 e os 35 anos. Antes dessa idade tida como ‘mínima’, a gravidez é considerada precoce. A gravidez na adolescência não se apresenta como um problema social na França, pois as moças, mesmo se menores de idade, têm direito ao aborto.
Outro aspecto dessa ‘norma contraceptiva’ é que a chegada de um filho deve ocorrer no ambiente adequado: um casal estável e com meios para cuidar da criança. O aborto é encarado como último recurso. “O aborto não aparece como uma alternativa à contracepção, mas como o meio de reparar seu fracasso”, declarou a pesquisadora durante a conferência.
Michèle Ferrand colocou ainda algumas questões comparativas entre as sociedades francesa e brasileira. “Contracepção e aborto são uma conquista da luta feminista na França. No Brasil, a contracepção é percebida como técnica e falta luta pela legalização do aborto. Há uma resistência muito forte do Estado e da Igreja”, disse ela. “O acesso aos métodos anticoncepcionais no Brasil está ligado ao nível sócio-econômico. Na França, a diferença de nível social foi anulada, e o acesso à contracepção é democratizado”. Ao contrário das brasileiras, as francesas não podem comprar anticoncepcionais em farmácias. A contracepção e o acesso ao método escolhido só são possíveis mediante a consulta médica, gratuita em razão da existência do Estado de Bem Estar Social.