Passados quase trinta anos da primeira edição do livro “O estigma do passivo sexual”, do sociólogo Michel Misse, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ, continua a existir a estigmatização de mulheres e homossexuais, implícita em gírias e expressões de uso cotidiano da língua portuguesa. No livro, ele chamou a atenção para o fato de que a linguagem cotidiana, através de suas expressões lingüísticas, pode expressar e reproduzir lógicas de dominação, submissão e de violência doméstica e homofóbica.
O livro é um estudo sociológico, realizado na década de 70, de figuras de retórica encontradas em gírias e palavrões que remetem a uma estigmatização de papéis sexuais que, no Brasil, são chamados de “passivos”, tornando-se um trabalho de referência nos estudos de gênero e sexualidade no Brasil. Nele, Misse analisou a função da linguagem como instrumento de discriminação da mulher e do homossexual dito passivo. A obra, editada pela BOOKLINK, em parceria com o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/IFCS/UFRJ) e o Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro) está em sua terceira edição – a primeira saiu em 1979 e a segunda, em 1981. Para o autor, as figuras de retórica ainda remetem a uma estigmatização dos papéis sexuais e de gênero de mulheres e homossexuais, mesmo depois de duas décadas de avanços dos movimentos feminista e homossexual.
“Muita coisa mudou desde 1979. Surgiam nessa época no Brasil as primeiras organizações gays e muitas questões antes tratadas em pequenos grupos ganharam a mídia e o interesse público. Mas o estigma continua a existir, menos nos ambientes cosmopolitas urbanos, mas ainda em grande parte da sociedade brasileira”, afirma o sociólogo.
Misse lembra que a maior parte das expressões de gíria e de palavrões que analisou já eram antigas quando o livro foi escrito e continuam a ser muito usadas ainda hoje.
“Quem as usa quase sempre não percebe que elas veiculam o preconceito e o estigma, pois tais expressões ganharam autonomia frente aos contextos em que nasceram e surgiram. São indicadores ambivalentes, cuja permanência ultrapassa muitas vezes a intenção subjetiva de quem as usa. Outras expressões novas, surgidas desde que saiu a primeira edição, indicam no entanto que os contextos sociais que as produziram continuam a reproduzir a mesma matriz de produção de sentido estigmatizador das expressões antigas que analisei”, diz ele.
O sociólogo encontrou, na língua portuguesa, o estigmatizado e o estigmatizador. Não deixou de observar, por exemplo, que na gíria, a palavra “homem” só expressa idéias de dominação e poder – o termo pode significar, no uso cotidiano, a “polícia” ou o “policial” (“os homens estão chegando”). Por outro lado, a palavra “mulher” é freqüentemente usada de forma pejorativa. Exemplo: um menino fraco, ou que não quer ou não consegue fazer o que os outros meninos fazem, é chamado de “mulherzinha”, termo que remete a uma idéia de fraqueza ou homossexualidade.
No livro, Misse também analisa o duplo significado de verbos como “comer” e “dar”, que podem expressar tanto prestígio quanto estigma – o homem “come”, enquanto a mulher ou o homossexual “dá”. Entretanto, alguns desses verbos, lembra o autor, têm sentido ambíguo, podendo significar tanto prestígio quanto estigma. Além da idéia de passividade (situação estigmatizadora), o verbo “dar”, em outros contextos, pode expressar prestígio, como nas expressões “dar duro” (trabalhar muito), “dar duro em” (perseguir), “dar em cima de” (procurar conquistar).
Segundo ele, essa estigmatização através da linguagem se perpetua devido ao surgimento contínuo de novas figuras de linguagem: “A permanência do estigma na linguagem pode ser aferida pelo aparecimento de novas figuras de retórica que remetem ao mesmo sistema analógico através do qual equiparam-se papéis sexuais e símbolos de estigma ou de prestígio”.
O sociólogo acredita, porém, que de todos os estereótipos e preconceitos machistas que persistem na linguagem cotidiana, a homofobia é o pior deles.
“A violência homofóbica que ainda continua a existir é a ponta mais cruel desse iceberg de preconceitos que continua atuando, apesar de todas as mudanças que ocorreram”, observa. “Assim, expressões como “meter o pau”, além de seu sentido sexual e erótico, podem ter um sentido perigoso, violento”.
A preocupação central do sociólogo é abordar a violência de qualquer natureza – seja ela homofóbica ou contra as mulheres, tendo em vista sua área de interesse e atuação. Misse é atualmente um dos principais especialistas na temática da violência no país. Ao escrever “O estigma do passivo sexual”, o autor discutiu a violência simbólica no campo da sexualidade.
“Na verdade, minha incursão no tema do passivo sexual na década de 1970 vinculava-se já aos meus estudos de violência urbana, como fica patente no último parágrafo do prefácio à primeira edição. Os símbolos de estigma participam da violência simbólica quando ofendem moralmente o outro e produzem efeitos de longo alcance nos conflitos sociais. A violência doméstica, a violência conjugal, a violência contra minorias étnicas e a violência contra os homossexuais são exemplo disso”, diz ele.
Misse é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), mais precisamente no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU). É co-autor do primeiro estudo sociológico brasileiro sobre delinqüência juvenil, publicado pelo Tribunal de Justiça do então Estado da Guanabara, em 1973. Em 1979, além de “O estigma do passivo sexual”, lançou “Crime: o social pela culatra”, um ensaio sobre o crescimento da criminalidade no Brasil. Pela editora Lumen Juris, acaba de lançar seu novo livro, “Crime e violência no Brasil contemporâneo”, reunindo os ensaios e pesquisas que realizou nos últimos dez anos sobre o tema da violência.