Em geral, os grupos opositores ao aborto tendem a retratar as mulheres que interrompem uma gravidez como pessoas desviantes e irresponsáveis, extremamente jovens, sem valores, e que não estariam em união. Não é isso o que acontece. Em 2010, a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada pela Universidade de Brasília (UnB), revelou que os abortos decorrem de mulheres que em sua maioria são casadas e mães de família, e que não desejam aumentar a prole em função de gravidezes indesejadas, o que muda muito a maneira como se encara o debate sobre aborto no Brasil. O estudo, cujos resultados serão tema da edição especial da revista Ciência e Saúde Coletiva de julho, publicação editada pela Abrasco, ajuda a trazer uma realidade mais complexa e heterogênea do que a forma como em geral ela é colocada no debate público, pautado usualmente pela lógica moral e pelo binarismo entre “mulheres que prestam" e "mulheres que não prestam”. Os resultados mostram que o aborto é um fato, um evento comum na vida de mulheres comuns, que podem ser encontradas nas redes de relação de qualquer pessoa.
Outra crença recorrente é que as mulheres abortam a partir de uma decisão completamente individual e isolada, dado que também não corresponde à realidade. Estudos mostram que quando as mulheres são jovens e não têm autonomia ou dinheiro, os pais e as mães intervêm e providenciam o recurso necessário para realizar o procedimento, o que acontece, sobretudo, nas classes médias e altas. “Não são decisões individuais, são famílias que tomam a decisão em conjunto, em função de um acidente contraceptivo”, avalia a antropóloga Maria Luiza Heilborn (IMS/UERJ), coordenadora da pesquisa Heterossexualidade, Contracepção e Aborto, estudo qualitativo, em fase de relatório final, sobre práticas contraceptivas e abortamento voluntário no Brasil, Argentina, Colômbia e Uruguai.
De acordo com Maria Luiza, autora de um dos artigos da edição temática da revista Ciência e Saúde Coletiva, a questão do aborto parece, a princípio, um assunto de mulher, mas dados da pesquisa HEXCA mostram que a decisão de realizá-lo não é tomada de maneira isolada. “Em geral, é uma decisão coletiva, ora compartilhada com os parceiros, ora com familiares e amigas. Quando as mulheres estão em união, a decisão do parceiro influencia na decisão final. A vida de trabalho e a condição financeira do casal contribuem para a tomada desta decisão. O homem parece um ser ausente, mas ele está ali. Ele aparece na obscuridade, mas faz parte do contexto em que a mulher decide interromper a gravidez”.
Segundo ela, a não aceitação pública do aborto no caso brasileiro é surpreendente, já que a prática acontece cotidianamente na clandestinidade. “Há uma dupla moral: existe uma condenação social do aborto e uma tolerância no âmbito do privado. Uma reprovação pública e ao mesmo tempo uma relativização pessoal”, observa.
Estudos mostram que metade das mulheres que abortam utiliza medicamentos, e a outra metade precisou ficar internada para terminar o procedimento, em função de complicações pós-aborto, principalmente nos casos em que este foi praticado por curiosas ou pela própria mulher. Não se sabe ao certo onde as mulheres têm acesso aos medicamentos, como fazem uso das doses e em que momento decidem ir ao hospital. O que se sabe é que quando essas mulheres chegam aos hospitais enfrentam discriminação, maus-tratos e riscos de abandono pelos serviços de saúde. A reprovação moral faz com que, dentro do contexto hospitalar, as mulheres sofram muita violência institucional. Estudo feito pela pesquisadora Estela Aquino, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBa), com 2.562 mulheres em hospitais de três capitais brasileiras – sete de Salvador (BA), oito de Recife (PE) e quatro de São Luís (MA) – indica que o julgamento moral dos profissionais de saúde sobre o aborto interfere no atendimento prestado por eles às mulheres que dão entrada em hospitais depois de tentar a interrupção da gravidez.
“A desigualdade social existente no Brasil é um atentado aos direitos humanos das mulheres. A maior parte delas faz o aborto em condições extremamente precárias, perigosas para sua saúde. Vão ao serviço de saúde com sangramentos e hemorragias. Põe em risco a sua saúde por conta de uma legislação que está defasada com as necessidades e costumes da população feminina e das famílias brasileiras. Ninguém é favorável ao aborto. Este deveria ser um fenômeno raro, mas seguro”, avalia Maria Luiza.
Sabe-se também que quem acaba nos hospitais em decorrência de complicações pós-aborto são prioritariamente as mulheres pobres. Pessoas com dinheiro não vão ao sistema público de saúde, recorrem a clínicas clandestinas relativamente mais seguras. Assim, quando se analisa a distribuição de classe com a prática do aborto, o número de 5 milhões de mulheres que já o fizeram detectado pela PNA dificilmente expressa a realidade da magnitude do aborto no Brasil. O fenômeno do aborto – fora em contexto onde a procedimento é legal, como na França, nos EUA e na Inglaterra – é sempre subestimado, pois as pessoas têm medo de declará-lo, já que a prática é considerada crime. O clima social por conta do impedimento legal – salvo os permissivos – não permite que as pessoas tenham liberdade para declarar.
O problema, segundo os estudiosos do tema, é que no Brasil o debate sobre o aborto, do ponto de vista legislativo, sempre migra para uma argumentação de natureza moral, e não de saúde pública. Acredita-se que uma campanha de aborto legal provocaria a epidemia de aborto, e as pessoas parariam de fazer contracepção. “Mas sabemos que na França, a partir de 1973, quando o aborto deixou de ser proibido no país, não houve aumento da prática, até porque, quando uma mulher faz o aborto legal, ela recebe informações técnicas para evitar um novo acidente contraceptivo. Ou seja, não é a legalização que vai fazer acontecer o que os conservadores chamam de epidemia de aborto. Não aconteceu na França, nos EUA e na Inglaterra. Pode-se supor que essa tendência se observaria também no Brasil. Não queremos o aborto como método contraceptivo. Não é esse o padrão que desejamos. Queremos contracepção, informação e educação em sexualidade nas escolas para os jovens aprenderem a se proteger em relações sexuais. Os homens também têm que ter responsabilidade nisso. São as mulheres que abortam, mas os homens também estão envolvidos”, analisa a antropóloga.
Segundo ela, informações técnicas advindas de pesquisas como a PNA e a HEXCA são importantes pois ajudam a sustentar os argumentos do aborto como problema de saúde pública. ”Não são julgamentos morais que devem orientar ações de saúde e sim razões técnicas, que sejam da ordem do Estado laico. Em todas as suas dimensões, o Estado deve aplicar esta laicidade. O tema do aborto é objeto de um debate que deve ser despido de argumentos religiosos”, conclui a pesquisadora.