CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

União civil não basta

A demanda pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo é fundamentalmente uma demanda por direitos. Esta foi a tônica do Seminário Internacional “Casamento Civil Igualitário: os mesmos direitos com os mesmos nomes”, ocorrido no Rio de Janeiro, no dia 13 de julho, e que contou com a presença de especialistas de distintas áreas, autoridades e militantes do campo dos direitos humanos. O evento foi organizado pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, pelo Centro Cultural Justiça Federal e pelos Consulados Gerais dos Estados Unidos e da Argentina.

O evento iniciou com o desembargador federal André Fontes (2ª Região / RJ-ES) enfatizando que houve uma mudança de perspectiva no debate sobre a população homossexual. “Por muito tempo, a discussão notabilizou-se pelo preconceito e pela agressão. Não que isso tenha acabado. Mas o foco na questão dos direitos é um grande avanço nas questões jurídicas do país”, analisou.

O cônsul Alfred Boll, diretor da seção de assuntos políticos e econômicos do consulado americano, também destacou o rumo dos debates e conquistas nos Estados Unidos ao longo das últimas décadas. De acordo com ele, as mudanças têm sido na direção dos direitos civis. Ele lembrou que, em maio deste ano, o presidente Barack Obama declarou-se pessoalmente a favor do casamento gay. No ano passado, o governo norte-americano já tinha revogado a lei conhecida como “don’t ask, don’t tell”, que proibia militares de assumirem sua orientação sexual, sob pena de expulsão das corporações armadas.

O cônsul geral da Argentina no Rio de Janeiro, Marcelo Bertoldi, também destacou os avanços no seu país. De acordo com ele, após a reforma constitucional de 1994, os tratados internacionais sobre direitos humanos passaram a ter hierarquia constitucional, isto é, tornaram-se determinantes para a confecção de leis e políticas públicas na Argentina. Ele destacou ainda a aprovação, em 2010, do casamento civil pelo Congresso, tornando o país o primeiro na América Latina a conceder tal direito aos casais do mesmo sexo.

Nesse ponto, o deputado federal brasileiro Jean Wyllys, falando em seguida, afirmou que o Brasil, cuja relação entre pessoas do mesmo é reconhecida apenas como união civil – conquista concedida em maio de 2011 pela Suprema Corte –, precisa se articular ao contexto internacional. Autor de uma proposta de emenda à Constituição para estabelecer o casamento gay, o deputado lembrou que a Constituição brasileira prevê que o Estado reconheça apenas a união entre homem e mulher como entidade familiar, podendo, assim, convertê-la em casamento. “É um texto que tem o objetivo de impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Reconhecer os casais gays apenas sob a ótica da união civil nos retira direitos”, afirmou o deputado, sublinhando sua homossexualidade como inseparável da sua atuação parlamentar.

De acordo com o deputado, a permissão do casamento entre pessoas do mesmo irá ampliar os direitos destes casais, tais como direitos sucessórios, previdenciários, tutelares. “São 120 direitos a menos com a situação atual, na qual o Estado só nos reconhece na figura da união civil. Isso é problemático, pois nos desenha como indivíduos inferiores, de 2ª classe. A cidadania não deve ser ofertada parcialmente. Ela deve ser igual e justa”, afirmou.

A luta pelo casamento, argumentou o deputado Jean Wyllys, deve ser compreendida como um esforço simultâneo ao lado da luta contra a homofobia no país. Nos últimos meses, um debate se instalou no movimento LGBT acerca da pertinência de se desdobrar em mais de uma frente as demandas desta população. Criminalizar a homofobia ou permitir o casamento tornou-se o foco central. “A criminalização da homofobia anda junto com o casamento igualitário. Não são questões excludentes. São questões complementares e necessárias para a cidadania. Ambas irão fortalecer o Estado Democrático de Direito, já que contribuirão para a mudança das mentalidades. Uma vez aprovado o casamento civil, as pessoas certamente irão se sentir menos encorajadas e autorizadas a cometer homofobia, injúria e difamação. Os aparatos conceituais que nos excluem da cidadania plena e que legitimam a violência diária são diversos. Quanto mais demandas houver, melhor para o debate e para a efetivação de direitos ainda ausentes”, observou Jean Wyllys, acrescentando que tais demandas abrangem outras minorias sexuais (lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais).

O processo de luta pela cidadania LGBT, de acordo com o deputado, está articulado à laicidade do Estado brasileiro, cuja fraqueza é notada na dificuldade de tratar de temas relativos às pessoas LGBT no Congresso Nacional. “Temos uma separação meramente formal entre Estado e Igreja, principalmente por causa da atuação incisiva de denominações cristãs no Parlamento. A circulação da agenda LGBT é complicada. A bancada de congressistas fundamentalistas que se pautam por valores religiosos impede a aquisição de cidadania. O argumento destes setores, em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, é o de que o casamento tem como finalidade a procriação. O casamento não deve ser visto dessa forma. Deve ser visto como um meio para conseguir a felicidade. Os argumentos religiosos ferem a laicidade do Estado”, afirmou o deputado Jean Wyllys, que promove uma campanha pelo casamento civil igualitário.

O evento contou também com a participação do ministro Eugenio Raúl Zaffaroni, da Suprema Corte da Argentina, que falou sobre a luta pela igualdade. De acordo com o magistrado, é preciso conceituar igualação e igualdade, duas dimensões distintas. Na primeira, está presente a lógica de uniformidade, presente em regimes autoritários e totalitários. No segundo caso, está a equidade de direitos entre os diferentes. “A discriminação não é o reconhecimento ou a reiteração da diferença. É a expressão da hierarquização que o ser humano faz entre seus semelhantes. Demonstra o ímpeto corporativista de setores ou segmentos de uma população. A igualdade, pelo contrário, reconhece a diferença e tem como pressuposto o direito de convívio e bem-estar entre as pessoas”, argumentou Eugenio Zaffaroni.

A promoção do casamento igualitário, de acordo com o magistrado argentino, tem um efeito pedagógico, pois atua no combate à estigmatização ao demonstrar que os diferentes têm as mesmas prerrogativas. Para Eugenio Zaffaroni, a tendência a hierarquizar as pessoas é uma constante nas sociedades humanas. “O preconceito é uma realidade universal e toma como critério diversos aspectos. Ele existe em todas as sociedades. A natureza é a mesma: definir o outro como inferior. Por isso, a tentativa de dizer que alguns preconceitos são mais prejudiciais que outros prejudica o debate no campo dos direitos humanos”, observou.

O magistrado, no entanto, argumentou que a discriminação contra os homossexuais tem uma particularidade. “Se tomarmos os estigmas religiosos e raciais para comparação, veremos que nestes casos eles têm como critério algo visível: o negro discriminado tem na sua pele o motivo do estigma, o judeu ou muçulmano inferiorizado tem aparatos públicos (sinagogas, mesquitas) que tornam visíveis suas filiações religiosas. Já o indivíduo homossexual não cresce ou vive entre seus iguais. O preconceito surge dentro de casa. Nesse contexto, a pejoração é introjetada e, sobretudo na adolescência, um período crucial na formação da pessoa, a rejeição social vai sendo assimilada. Por este motivo, muitos gays tornam-se, eles próprios, homofóbicos. A homofobia também é um medo da própria homossexualidade”, afirmou o magistrado.

De acordo com Eugenio Zaffaroni, a homofobia, portanto, é um problema de saúde pública e deve ser encarada desta forma pelas autoridades. “Há um desequilíbrio psíquico articulado à homofobia. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como equilíbrio entre mente e corpo. É função do direito providenciar o bem-estar geral da população, o que inclui o direito à saúde como imprescindível”, explicou Zaffaroni.

Em sua exposição, o desembargador federal (TRF/2ª Região) Guilherme Calmon falou sobre o tratamento que o direito brasileiro tem dedicado às questões conjugais. De acordo com ele, a afetividade e a consensualidade têm servido como bases jurídicas para definir entidade familiar. “O Brasil tem experimentado, nos últimos tempos, uma ordem jurídica inclusiva, na qual os direitos dos casais têm sido reconhecidos como uma forma de equacionar problemas históricos em termos de exclusão e de setores vilipendiados da sociedade. Nesse sentido, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo deve ser um desdobramento lógico à aprovação da união civil pelo Supremo Tribunal Federal no ano passado. O casamento, enquanto figura jurídica, estabelece proteção mais ampla ao casal. Concede mais cidadania a tais casais. É uma demanda que o país terá que resolver”, concluiu o desembargador Guilherme Calmon.

Colaborou na matéria o estudante Lucas Freire (Ciências Sociais/IFCH/UERJ).

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