O governo do estado do Rio Grande do Sul passou a emitir, em meados de agosto, carteiras de nome social para transexuais e travestis. O documento será válido apenas no território estadual, bastando que se vá a um posto de identificação para requerer a modificação. A iniciativa, a princípio, parece mais uma medida no caminho da ampliação da cidadania e dos direitos de tal segmento. No entanto, problemas de fundo evidenciam como o Brasil ainda está longe de uma concepção dos deslocamentos de gênero no marco do reconhecimento pleno dos direitos humanos das pessoas trans.
Nos últimos anos, uma série de instituições e repartições, sobretudo públicas, tem permitido que as pessoas sejam reconhecidas, no ambiente de trabalho, com o nome social, isto é, com o gênero ao qual elas se identificam. No Brasil, cerca de 15 universidades reconhecem que seus funcionários adotem o nome social. De acordo com a socióloga e coordenadora do Núcleo Tirésias (UFRN), Berenice Bento, tais medidas, no entanto, são paliativas, pois revelam que o país não lida com os direitos das pessoas trans de uma forma plena e ampla. “Estamos presos a medidas pontuais, locais, sem iniciativas de alcance global, que abarquem todo o país. Embora seja uma medida bem-vinda, a hipótese de viagem para fora daquele estado equivale a apagar um pedaço da cidadania do indivíduo”, observa a autora do livro “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”.
A iniciativa é vista por Miriam Ventura, advogada e professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC/UFRJ), com reservas. De acordo com ela, “tal documento pode ser visto como uma tentativa de minimizar os danos e constrangimentos públicos que as pessoas trans sofrem. De um lado, portanto, é uma tentativa benéfica. Mas, eu temo que acabe reforçando a ideia de uma categoria específica, a do terceiro sexo. A pretexto de se promover direitos, pode-se cair numa diferenciação perigosa”, argumenta Miriam Ventura, autora do livro “A transexualidade no tribunal: saúde e cidadania”.
O reconhecimento à mudança de nome não é previsto por nenhuma lei federal. Os direitos das pessoas que transitam entre gêneros no Brasil ainda estão presos a protocolos médicos, que consideram a transexualidade uma enfermidade e condicionam a atuação do poder público. Através do processo transexualizador, oferecido pela rede pública de saúde, os indivíduos têm que enfrentar, no mínimo, um período de 2 anos para que o processo de mudanças corporais seja completado. Nesse intervalo de tempo, há terapias, tratamentos hormonais, modificações corporais até a cirurgia de transgenitalização, que corresponde ao marco simbólico que fecha o ciclo médico do processo de mudança de sexo. A redesignação genital impõe um problema, nesse sentido, pois há indivíduos cuja transição entre os gêneros não está facultada à tal mudança. A construção das identidades não é linear, tampouco responde a categorias médicas universais. O processo de formação identitário responde a desejos e vontades plurais que não passam necessariamente pela configuração genital.
A alteração do nome da pessoa depende, no entanto, dessa trajetória médica. Após a mudança de sexo, o cidadão deverá ainda entrar na justiça para solicitar a mudança em sua carteira de identidade. Há quatro anos, tramita no Congresso Nacional o PL 2976, que permite às pessoas trans utilizar o nome social ao lado do nome e prenome oficial. “A categoria de nome social é um jeitinho que o país criou para dar conta da demanda. O estado das coisas é este: o cidadão tem duas maneiras de ser identificado, uma que o Estado lhe impõe e a outra que ele deseja. Há um claro desrespeito à liberdade individual e aos direitos sexuais desta pessoa.”, critica Berenice Bento.
De acordo com Miriam Ventura, especificar, para fins de identificação civil, transexuais e travestis como uma categoria demonstra como concepções biológicas estão enraizadas na organização administrativa da sociedade. “Eu defendo que o gênero seja a categoria a identificar as pessoas, desde que desvinculada de bases naturalizantes. Gênero enquanto identificação auto-referenciada, uma escolha da pessoa, como acontece com a questão da cor da pele, na qual ela possa designar como se vê”, observa Miriam Ventura.
Para Miriam Ventura, a questão dos nomes das pessoas trans deve ser tratada no âmbito legislativo federal. “Facilitaria muito a vida das pessoas se houvesse uma norma que abarcasse todo o país, pois evitaria que os direitos dessas pessoas fossem tratados parcialmente, de forma fragmentada”, afirma Miriam Ventura.
Pelo projeto de lei 2976, a mudança no nome continuará dependendo de uma decisão judicial e só será demandável uma vez que a cirurgia de redesignação genital tenha sido feita. Situação distinta da Argentina, onde, em maio, foi promulgada lei que permite aos indivíduos trans a mudança do nome no registro civil sem a necessidade do diagnóstico de transtorno de identidade e, portanto, sem qualquer aval ou intervenção médica. A alteração resume-se a um simples processo administrativo. “A obrigatoriedade da chancela médica sobre a vida das pessoas trans, aqui no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, é uma tragédia. Por exemplo, as travestis que querem alterar o nome não conseguem concretizar tal demanda, uma vez que para fazê-lo é necessário mudar o corpo. Mas elas só querem ser reconhecidas como do gênero que bem entendem. Os protocolos médicos atuam com categorias de gênero compulsórias, feminino ou masculino, não reconhecendo as negociações e as nuances que ocorrem nos processos subjetivos e performáticos que vão delineando as identidades”, argumenta Berenice Bento.
A abordagem que o poder público estabelece em relação à identidade das pessoas trans é alvo de críticas de movimentos trans. Mais do que a luta por mudanças técnicas na legislação quanto ao nome, o quadro de demandas envolve o combate à forte e consolidada presença do discurso biológico na definição epistemológica da transexualidade. O argumento central é buscar desvincular a identidade das pessoas trans, processo que envolve corpo, subjetividade, identidade de gênero, de concepções biologizantes que associam papéis socialmente construídos a razões heteronormativas – a sexualidade sendo vivenciada a partir da complementaridade dos corpos da mulher e do homem, com fins à reprodução. Dessa forma, a transexualidade deixa de ser uma enfermidade e passa ser um conflito identitário, estabelecido e atualizado cotidianamente pelas pessoas por meio dos deslocamentos entre as possibilidades performáticas, fluidas e instáveis.
Miriam Ventura acha compreensíveis, em termos legais, os desafios que os indivíduos trans representam. “Por uma questão de estruturação, regulação e controle das diversas relações que se dão na sociedade, sejam elas, trabalhistas, matrimoniais ou filiais, construiu-se, sobre a base das categorias sexuais homem e mulher, critérios de regulamentação. Acredito que a questão trans obriga o Estado a considerar os cidadãos para além de suas constituições anatômicas. No entanto, para evitar mexer nas estruturas gerais da administração pública, criam-se soluções pontuais como estas carteiras de identificação, que se, de um lado, tentam aliviar os constrangimentos, do outro, permanecem operando em bases biológicas. Não resolve os problemas de fundo. Precisamos avançar mais, e o Estado brasileiro tem aos poucos reconhecido a questão dos direitos sexuais, como vimos com a equiparação da união civil de pessoas do mesmo sexo com as relações heterossexuais. Quanto mais os direitos humanos forem acionados para abordar questões sobre os indivíduos trans, mais respeito, dignidade e igualdade estaremos produzindo”, afirma Miriam Ventura.
No próximo ano, estão previstas as revisões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria (APA) – que classifica a transexualidade como disforia de gênero – e do Código Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde (OMS) – cuja designação para transexualidade é transtorno de identidade de gênero -, estatutos que orientam a formulação de leis e políticas. Berenice Bento acredita que a tendência é a retirada da transexualidade do rol das patologias. “Seria um avanço louvável. É fundamental que haja a despatologização. Seria reconhecer às pessoas a autonomia de elaborarem suas identidades como bem entendem, fora dos marcos do discurso médico. Afinal, a maneira como as pessoas se veem, os signos que elas recorrem para formar a identidade são questões íntimas, subjetivas e legítimas. A mudança nestes documentos internacionais seria um ganho em termos de direitos humanos”, afirma Berenice Bento, que, no entanto, faz uma ressalva sobre o panorama brasileiro. “Felizmente, o Brasil poderá acompanhar o processo de despatologização. Mas, infelizmente, será por uma questão de conjuntura internacional e não por um processo de politização interna, no qual o amadurecimento dos direitos humanos seria um componente fundamental, trazendo a questão da transexualidade para o domínio da autonomia individual, sem a tutela do Estado ou da medicina”, conclui Berenice Bento.