Parte da população de indivíduos com transtornos mentais em conflito com a lei, no Brasil, é um segmento exilado em seu próprio país. A restrição de liberdade experimentada em hospitais de custódia psiquiátrica tem se dado em descompasso com princípios básicos de direitos humanos. Atingidos pela ineficiência do Estado, por divergências nas leis e pelas desigualdades socioeconômicas e simbólicas que penalizam minorias, 1.866 pacientes, de um total de 3.989, estão encarcerados indevidamente ou sem a devida fundamentação legal ou psiquiátrica, nos 26 Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTP). Critérios legais para desinternação já foram cumpridos em muitos casos, mas a restrição de liberdade continua na prática. Os números são da pesquisa “A custódia e o tratamento psiquiátrico – Censo 2011”, desenvolvida pelo Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e pelo Ministério da Justiça. É o primeiro mapeamento dessa magnitude feito no país.
A análise detalhada dos números revela o enraizamento social da prática penal, que tem como efeito atingir camadas desfavorecidas em um país permeado por assimetrias. Mais da metade dos presos são negros, pobres e com baixa escolaridade. A configuração da população sob custódia psiquiátrica também tem particularidades de gênero. De acordo com a pesquisa, apesar de os homens serem maioria (92%) na população mapeada, as mulheres – que representam 7% dos encarcerados – cometem delitos mais violentos que os homens. Entre elas, 55% tentaram ou praticaram homicídio; já entre eles, este número foi de 42%. As vítimas dessas mulheres são parentes (65%), principalmente os filhos.
O panorama contrasta com mudanças que o país vivenciou nos últimos anos. No início dos anos 2000, a política psiquiátrica foi reformulada. A lei 10.216/01 rompeu com modelos de tratamento atrelados à perspectiva da segurança pública, instaurando uma perspectiva atrelada mais aos direitos, autonomia e liberdade individuais. Durante o século XX, o Estado brasileiro pautou-se pelo tratamento psiquiátrico obrigatório. Considerados inimputáveis, tais indivíduos foram direcionados para o confinamento asilar, afastando-os do convívio familiar e social. Os manicômios, também conhecidos como hospícios, consolidaram-se como espaços privilegiados de recolhimento. Nesse processo de reclusão dos pacientes, direitos fundamentais foram subtraídos, destacam o assistente social Wederson Santos e a psicóloga Luciana Stoimenoff, pesquisadores do Anis.
De acordo com o Censo, cerca de 26% da população mapeada ainda aguarda julgamento. Para 41% dos recenseados, a realização anual do exame de cessação de periculosidade (exame psiquiátrico que revela se a pessoa em medida de segurança está apta para o retorno ao convívio social) estava atrasada. “O Estado brasileiro é responsável por este cenário e o funcionamento da política de segurança pública precisa ser revisado para superar tais situações”, afirmam os pesquisadores.
Apesar de a lei 10.216 prever que o tratamento dessas pessoas – oficialmente designadas como indivíduos com transtornos mentais em conflito com a lei – seja feito prioritariamente fora dos estabelecimentos asilares, o funcionamento de tal ordenamento legal tem se mostrado precário. “Os avanços normativos e conceituais conquistados no processo de reforma psiquiátrica brasileira são muitos, mas não têm dado conta da realidade da população psiquiátrica internada nessas unidades do Censo, que são estabelecimentos penais e não de saúde. Daí ser este um tema intersetorial. Podemos afirmar que avançamos localmente, em alguns estados do país, quando comparamos com décadas atrás, mas, nacionalmente, o panorama ainda é preocupante”, afirma Martinho Silva, professor do Instituto de Medicina Social da Uerj cuja formação e atuação acadêmica estão voltadas para a área de saúde mental e direitos humanos.
A existência de população significativa nos manicômios judiciários pode ser entendida também como um efeito do Código Penal, que data de 1940. De acordo com o texto, o paciente pode receber como pena o recolhimento asilar ou o tratamento ambulatorial, que não afasta o indivíduo do convívio social. A possibilidade, prevista em lei, do confinamento dessas pessoas compõe um cenário em que dois paradigmas sobre a assistência em saúde divergem. Falta ao país unidade normativa para lidar com pacientes desse tipo. “A lei 10.216 de 2001 estabeleceu os direitos da população portadora de transtornos mentais, estipulou as modalidades de internação e definiu que a internação só pode ser recomendada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Mas esses princípios não anulam o que o Código Penal prevê para as medidas de segurança. Na aplicação das medidas de segurança, a internação do indivíduo ocorre mesmo sem a indicação de que os recursos extra-hospitalares foram demonstrados insuficientes; sequer a existência ou não desses recursos são levantados antes da aplicação da medida de segurança de internação. O que justifica essa atitude? Em grande parte se justifica pela utilização do conceito de periculosidade: a ideia de que o tratamento psiquiátrico obrigatório precisa levar à cessação da periculosidade do indivíduo, do restabelecimento da saúde mental que reflita nas condições de convívio social, comunitário e familiar”, observam Wederson Santos e Luciana Stoimenoff.
A noção de periculosidade como condição para que a pessoa, quando sentenciada, fosse apartada do convício social foi revogada com a Lei de Execução Penal, de 1984. No entanto, a periculosidade permanece como critério de avaliação para o destino do paciente. “A aplicação da medida de segurança tem um componente voltado não para o passado, não para o que indivíduo cometeu. Mas para o futuro, direcionado para o controle da capacidade de o indivíduo voltar a cometer novo crime. Controle do que o indivíduo pode voltar a cometer no futuro é matéria de segurança pública? Ou melhor, é matéria de política pública? É possível prever o comportamento futuro de qualquer que seja o indivíduo? Não há amparo legal para esse tipo de procedimento”, criticam os pesquisadores do Anis.
Ainda de acordo com os estudiosos, uma das conclusões do Censo é que não se pode associar diagnóstico psiquiátrico e crime cometido. “A ideia de que há uma periculosidade inerente aos indivíduos ou a ideia de que o diagnóstico psiquiátrico pode ser determinante para a infração penal cometida cai por terra quando foram demonstrados que indivíduos com transtornos mentais diferenciados cometem igualmente os mesmos crimes. Ou vice-versa: indivíduos com os mesmos transtornos mentais cometem crimes diferenciados. Não há concentração entre um determinado crime cometido por um tipo de diagnóstico. Pelo contrário, há dispersão entre essas duas variáveis. O que o dado do Censo revela desses 741 indivíduos citados é que eles já cumpriram os critérios legais para a desinternação, mas ainda continuam indevidamente em restrição de liberdade”, afirmam.
Para Martinho Silva, o Censo contribui para enfraquecer o mito de que pacientes com transtorno psiquiátrico são, necessariamente, perigosos. No entanto, ele argumenta que a discussão sobre o atendimento a tal população precisa ser feita de maneira ponderada. “Não podemos dizer que são todos perigosos, mas também não podemos vê-los exclusivamente como vítimas. Segundo o Censo, há pessoas cumprindo medida de segurança por crimes contra a vida em maior número do que aquelas por crime contra o patrimônio, o que implicaria numa revisão da perspectiva segundo a qual a maioria das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, os ditos ‘loucos infratores’, estão nos HCTPs em grande parte por terem roubado uma bicicleta. Há que se debater sobre periculosidade, mas também sobre responsabilidade. Ou seja, levando em conta os dados do Censo, tanto os opositores do processo de reforma psiquiátrica precisam revisar suas teses quanto os próprios militantes também”, observa Martinho Silva.
A manutenção de pacientes no espaço asilar sem justificação psiquiátrica e jurídica aponta que em algum momento do percurso há falhas. Para Wederson Santos e Luciana Stoimenoff, não é possível, a partir do Censo, construído com base no dossiê de cada paciente dos 26 hospitais pesquisados, determinar exatamente o que alimenta o panorama. “Se esse algo que impede a saída são os procedimentos das políticas de segurança pública na fase de desinternação, a ausência de articulação desses procedimentos com as políticas de saúde mental e de assistência social que busquem a autonomia do indivíduo, ou a ausência de ações voltadas para o itinerário de desinternação que facilitem a reabilitação dos indivíduos e o trabalho com as suas famílias, são temas a serem investigados em estudos futuros”, afirmam.
Situação das mulheres
Um dado que chama a atenção no Censo refere-se à situação das mulheres. Minoria no total encarcerado (7%) quando comparada aos homens (92%), as 291 internas são acusadas em maior proporção de crimes contra vida do que eles (55% contra 42%). Números que destoam do panorama geral nacional em relação aos crimes de homicídios: de acordo com o Mapa da Violência, em 2010, o país teve 49.932 homicídios, em sua maioria cometido por homens. As vítimas dos crimes das mulheres encarceradas nos ECTPs são na maior parte parentes (65%); os filhos são vítimas em 24% dos assassinatos. A casa é o principal espaço de manifestação da loucura que resulta em crime grave.
“Certamente, as mulheres representam uma minoria não só em termos numéricos: é uma população ainda mais silenciada. Só podemos falar das mulheres que estavam internadas nos ECTPs no momento do estudo, mas talvez a porta de entrada das mulheres nessas instituições seja, além do sofrimento mental, a natureza de seus crimes. Não sabemos sobre o universo das pessoas que cumprem medida de segurança em regime ambulatorial ou em estabelecimentos diferentes daqueles estudados no Censo”, afirmam os pesquisadores do Anis, chamando atenção para o marcador de gênero na configuração da pesquisa. “O que sabemos é que as mulheres em sofrimento mental em algum momento da vida matam os seus filhos, e não é possível identificar as razões a partir da pesquisa do Censo. Esse é um crime que impõe desafios à racionalidade dominante. Algumas hipóteses que podemos construir sobre esses crimes domésticos é a ausência tanto de tratamento de saúde quanto de políticas sociais eficientes, além de um abandono das redes de proteção e cuidado por parte do Estado”, completam.
Em um país cuja organização social e cotidiana está balizada em papeis de gênero, o percurso dessas mulheres nos estabelecimentos de custódia ultrapassa a dimensão médica. De acordo com Wederson Santos e Luciana Stoimenoff, o Censo não permite avaliar os impactos na vida das mulheres. No entanto, eles argumentam que é possível identificar o estado de abandono. “A situação das mulheres em sofrimento mental autoras de delitos é ainda mais desafiadora pois, na maioria das vezes, o lugar de cuidado no ambiente familiar ou doméstico é representado pelo gênero feminino. Assim, quando essas mulheres entram no sistema penal ou necessitam de atenção e cuidados específicos essa realidade torna-se ainda mais desafiante. Principalmente no contexto brasileiro, onde as políticas de assistência promovidas pelo Estado depositam na família a responsabilidade de proteção e cuidado. Quando a principal cuidadora está em sofrimento mental – no caso das mulheres que comentem delitos – ou morrem – no caso das mães assassinadas pelos filhos, a situação de abandono e estigmatização dos loucos e loucas infratores é ainda maior e mais complexa”, observam os pesquisadores.
A permanência de pacientes nos ECTPs tem como contraponto a abordagem extra-hospitalar, que tem sido experimentada em estados como Minas Gerais e Goiás, por meio de programas de atenção aos infratores com transtornos psiquiátricos. A assistência aos indivíduos sob efeito de medida de segurança ocorre em liberdade. A ênfase nessas iniciativas é na articulação entre as políticas de saúde mental, assistência social, políticas de trabalho e segurança pública. “O surgimento dessas experiências demonstra a dinâmica social a respeito das respostas possíveis da sociedade para se alcançar modalidades de atenção à população em sofrimento mental que comete crimes, mas sem deixar de considerar a importância da garantia dos direitos humanos dessa população”, argumentam Luciana Stoimenoff e Wederson Santos, que concluem defendendo a necessidade de a lei 10.216 ser assimilada pela legislação penal e de o Estado brasileiro corrigir os atrasos nos procedimentos de cumprimento das medidas de segurança.