Uma mulher com a faixa presidencial deixou de ser uma surpresa na América Latina. A novidade foi inaugurada em 1990 com a eleição de Violeta Chamorro como presidenta da Nicarágua e, até o ano passado, nove mulheres alcançaram este posto na região.
Porém, para além do impacto simbólico que suas imagens provocam, cabe perguntar-se se suas eleições têm sido suficientes para transformar o sistema patriarcal que restringe os espaços de participação na sociedade das mulheres e grupos minoritários.
Em um contexto de escassa credibilidade da classe política, de corrupção e falta de confiança nas instituições públicas por parte dos cidadãos, as mulheres podem representar uma alternativa de renovação democrática. Cristina Fernández cursa seu segundo mandato presidencial na Argentina. Em março se saberá se a ex presidenta do Chile e agora diretora executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet, voltará a ser candidata presidencial. Atualmente, lidera as pesquisas de popularidade, apesar de não viver no país. Neste grupo também se encontra Dilma Rousseff, a primeira mulher a exercer o cargo de presidente do Brasil, empossada em 2011. A mandatária mantém um índice de 78% de aprovação.
Como mulheres de esquerda, as três compartilham o ideário da inclusão social e não surpreende o fato de que seus nomes tenham aparecido na lista das 150 mulheres mais influentes do mundo, publicada pela revista Newsweek no ano passado.
A pesquisadora chilena Teresa Valdés, coordenadora do Observatório de Gênero e Equidade e editora do livro Género en el Poder: el Chile de Michelle Bachelet afirma que “estas lideranças aumentam as possibilidades de desenvolvimento das mulheres, ao transformar os modelos de papel de gênero para meninos e meninas. Suas condutas como presidentas têm um efeito pedagógico e estimula outras mulheres a quebrar o estereótipo da divisão sexual”.
O demógrafo brasileiro José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE / IBGE) e coautor do livro Mulheres nas eleições 2010, relata que no caso da vitória de Dilma a mensagem para as pessoas do Brasil e do mundo foi clara: “Sim, uma mulher pode” e indica que as jovens das novas gerações se deram conta de que os espaços de poder não são exclusivos para homens. A chegada de Dilma ao Palácio do Planalto significa “uma inclusão real de gênero, marcando uma ruptura com o ‘clube do bolinha’ que caracterizou a galeria de dirigentes máximos da República, ao longo de seus mais de cem anos de história”, agrega. Para o demógrafo, a eleição de uma mulher para presidente significa também uma maneira de reconhecer a importância das mulheres na sociedade, porque representam “mais de 50% da população e do eleitorado brasileiro, possuem em média maior escolaridade do que os homens, vivem por mais tempo, são maioria na população economicamente ativa com mais de 11 anos de estudo e também entre os beneficiários da previdência social (aposentados e pensionistas) e trabalham mais horas por dia quando se somam o trabalho remunerado e as atividades domésticas não remuneradas”.
“A participação das mulheres nas legislaturas tem aumentado em quase todos os países da região, o que se deve em grande medida à ação afirmativa — neste caso, em particular, às leis de cotas”, avalia o documento El Estado frente a la autonomía de las mujeres, produzido pela Divisão de Assuntos de Gênero da CEPAL.
Um aspecto destacado por Teresa Valdés é que, governos como o de Bachelet, Rousseff ou de Fernández, demonstram a capacidade das mulheres para representar a sociedade como um todo, descartando a ideia de que “as mulheres representam as mulheres”.
Nesta perspectiva, especialistas no tema, como a cientista política María de los Ángeles Fernández Ramil, diretora executiva da Fundação Chile 21, e coautora do documento Presidentas latinoamericanas e igualdad de género: un camino sinuoso advertem sobre a importância de ponderar o impacto real da chegada das mulheres ao Poder Executivo. Neste sentido, Maria de los Ángeles sublinha que “isto nem sempre se expressa em avanços substantivos na transformação de instituições políticas que permitam melhorar a qualidade da democracia em suas sociedades”.
Campanhas presidenciais e agendas pro-gênero
Ainda que no caso da candidatura de Bachelet tenha havido um certo acordo, nem Cristina ou Dilma utilizaram a ‘agenda de gênero’ como um elemento distintivo em suas campanhas presidenciais, e os três governos tiveram distintos resultados em matéria de direitos sexuais e reprodutivos e implementação de legislações favoráveis à equidade de gênero.
Em 2005, o discurso político de Bachelet tinha uma perspectiva de gênero definida que, apesar do risco de perder os votos masculinos, conseguiu suscitar a solidariedade de seus pares para ser eleita presidenta. Como aponta Fernández Ramil, sua vitória no segundo turno se deve aos 286.000 votos femininos obtidos a mais que os masculinos.
Bachelet inaugurou seu governo com um gabinete paritário, algo então inédito não só no Chile, como também em toda a América Latina. Assim demonstrou que era possível outra forma de representar o poder político. Mas a paridade durou pouco tempo. Apesar de seus esforços por promulgar uma Lei de Cotas em 2007, e modificar o sistema binominal, não pôde concretizar as reformas legais.
Seu governo, segundo Valdés e Fernández Ramil, foi “o que mostrou mais compromisso com a promoção de políticas públicas com perspectiva de gênero”. Ambas autoras destacam outras mudanças significativas para as mulheres durante o governo Bachelet, como o tratamento da violência doméstica – que passou a ser reconhecida como um ato de discriminação.
Outro feito que marcou seu mandato está relacionado à polêmica gerada pelo Tribunal Constitucional que proibiu a distribuição da pílula do dia seguinte nos consultórios médicos do país. A mobilização das organizações sociais e a ativa demanda da presidenta fizeram com que a decisão fosse revertida. Esta vitória contrasta hoje com a dívida chilena de não ratificar o Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mujer, CEDAW. Nos últimos anos, o país tem descido 41 posições no ranking de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial, e o atual governo de direita não validou o último Plano de Igualdade de Oportunidades entre mulheres e homens, nem propôs outro instrumento que desenvolva uma estratégia de inclusão da igualdade de gênero nas políticas.
Por sua vez, as eleições brasileiras de 2010 foram qualificadas como as “mais femininas” de sua história, com 1.335 mulheres candidatas a deputadas federais (22%), 3.500 a deputadas estaduais (23%), 36 ao Senado (13%) e 18 aos governos estaduais (11%). Dos 9 candidatos à presidência, duas eram mulheres.
Porém, diferentemente de Bachelet, a agenda política de Dilma Rousseff não deu especial importância à equidade de gênero, nem sua vitória foi vista como um ganho do movimento feminista, de acordo com o recém-lançado livro Mulheres nas eleições 2010, fonte de referência para a análise das desigualdades de gênero na política brasileira.
Herdeira política de Lula – e portanto herdeira da maior parte de seu eleitorado, tanto feminino quanto masculino –, Dilma evitou o viés feminista, assinala a publicação. “Mesmo havendo duas mulheres disputando a Presidência da República [se refere à candidata do Partido Verde, Marina Silva], a discussão de gênero não fez parte dos asuntos principais da campanha e muito menos uma pauta realmente feminista esteve presente”. Uma das poucas ocasiões em que Dilma opinou sobre temas relacionados foi em uma entrevista, na qual afirmou que o aborto é “uma questão de saúde pública” e que no Brasil muitas mulheres morrem por abortar em condições de ilegalidade. Suas declarações geraram tamanha polêmica – oportunamente insuflada por seu maior adversário, José Serra (PSDB) – que ela decidiu mudá-las, frente à pressão de católicos e evangélicos.
Uma vez no poder, Dilma anunciou que para a formação do novo governo teria um gabinete integrado por 30% de mulheres. Mas sua vontade não foi o suficiente. A pressão dos líderes do partido – e dos partidos de sua base de apoio – reduziu o espaço potencial das mulheres. Dos 37 ministros do governo, nove eram mulheres (24% de todo o gabinete). Para acabar com a exclusão das mulheres nos espaços de poder, a comissão de reforma política do Senado aprovou a adoção de cotas para as mulheres nas eleições, o que foi visto como uma importante conquista. No entanto, para María de los Ángeles Fernández Ramil, trata-se de “uma lei de cotas ineficaz, ao ponto de ter um dos índices de representatividade feminina mais baixos da região”. Hoje o país detém a incômoda posição 140 no ranking mundial de representação feminina nas Câmaras de Deputados.
Para a pesquisadora chilena, Rousseff mostra compromisso com os temas de igualdade de gênero e parece decidida a corrigir a atual ineficácia da lei de cotas, mediante reformas políticas e a nomeação de mulheres no chamado “núcleo duro do poder”, isto é, no círculo de ministras mais próximas ao Planalto e em cargos executivos, como o de presidente da Petrobras, a estatal brasileira de petróleo e gás, cuja escolhida foi a engenheira química Maria das Graças Foster.
Assim como aconteceu quando candidata, a presidente Dilma também é criticada por silenciar sobre a atenção ao aborto, o que, segundo o movimento de mulheres, ficou claro depois do lançamento do programa Rede Cegonha – plano do governo lançado em maio de 2011 para atender a saúde materno-infantil – e da aprovação da Medida Provisória 557, no apagar das luzes daquele ano. A MP557, retirada pela presidenta após ser duramente criticada, propunha conceder o benefício-transporte da Rede Cegonha a grávidas cadastradas e obrigava qualquer instituição que realize procedimentos de pré-natal e de assistência ao parto a repassar dados ao Sistema de Acompanhamento do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento. As feministas alegaram que, se nos anos 1990 o movimento de mulheres conseguiu que a ONU abandonasse a concepção materno-infantil para entrar na concepção dos direitos reprodutivos, o modelo adotado pela Rede Cegonha retomava esse recorte do passado, e a MP 557 completava o quadro de retrocesso, ao controlar a gestante. Embora o governo tenha garantido que o intuito era qualificar o acompanhamento de atenção às mulheres, a possibilidade de divulgação dos nomes preocupou feministas, por dar margen a perseguição de mulheres que optassem pela interrupção da gravidez. A medida foi vista como uma clara reação de setores conservadores e fundamentalistas, acatada pelo governo.
Dilma também é acusada por parte do movimento LGBT de ter pouco compromisso com o segmento, especialmente depois de ter mandado suspender o kit Escola sem Homofobia. O material havia sido aprovado pelo Ministério da Educação (MEC) como instrumento pedagógico para lidar com o tema da diversidade sexual em sala de aula, mas depois de pressões de políticos de sua base aliada ligados a setores conservadores, a presidenta acabou por vetar a política do MEC. Dois anos depois do veto presidencial, organizações de defesa dos direitos LGBT ainda cobram explicações da presidente.
Na Argentina, María Eva Duarte de Perón é uma figura de identificação para as mulheres na política, mais particularmente para as peronistas. Cristina Fernández não é a exceção. Em 2007, foi a primeira mulher eleita presidenta no país, mas a segunda a exercer o cargo (em 1974, María Estela Martínez de Perón, então vice-presidente, assumiu a posição após o falecimento do presidente Juan Domingo Perón). Em 2011, Cristina foi reeleita.
Durante sua primeira campanha, apoiou-se em sua condição de esposa do ex presidente Néstor Kirchner, o que suscitou dúvidas a respeito de sua voz e votos próprios. Havia quem no movimento feminista argentino duvidava da capacidade da candidata para desenvolver um programa de igualdade de oportunidades. Para Dora Barrancos, diretora do Instituto Interdisciplina de Estudos de Gênero, a ascensão de Cristina “se deve em grande medida a uma construção própria. Ela tem uma vasta experiência como militante, não é uma personalidade fraca. Por outro lado, sua carência de subjetividade feminista, o escasso interesse pelos direitos femininos, certas formas de atuação, revelam ângulos francamente não inovadores”, analisa Barrancos.
Durante seu governo, o Congresso aprovou duas leis que marcaram um feito e puseram a Argentina na vanguarda em matéria de direitos civis. A primeira foi a Lei de Matrimônio Igualitário, que reconheceu a casais do mesmo sexo direitos iguais a um matrimônio convencional, e a outra, a Lei de Identidade de Gênero, que permite às pessoas mudar o sexo que figura no documento de identidade de forma gratuita e sem necessidade de ordem judicial, de intervenção médica para procedimento transexualizador ou de laudos de peritos. Ambas se juntam a uma lei de proteção integral para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres, aprovada em 2009.
A Argentina também lidera na região no que diz respeito à Lei de Cotas. Foi o primeiro país a instaurá-la, chegando hoje a 40% de mulheres do total de parlamentares. Conhecida como Ley de Cupo Femenino, a norma estabelece uma série de modificações à legislação eleitoral. No primeiro ano do governo de Cristina Fernández, em 2008, criou-se a comissão especial do Senado “Banca de la Mujer” que, entre outras coisas, tem a atribuição de incluir a dimensão de gênero na elaboração e sanção dos projetos legislativos. Segundo dados do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA), na América Latina estas normas são uma realidade: 11 de 19 países contam com leis deste tipo e a Argentina encabeça a lista.
Com esta lei houve avanços no acesso de mulheres a cargos eletivos, porém, segundo afirma Fernández Ramil em sua publicação, “apesar dos avanços em temas como as cotas nas listas partidárias, tem sido mais difícil avançar em uma institucionalidade sólida de gênero devido ao papel desempenhado pela própria Presidência”. A cientista política explica que “ainda que haja menos restrições para que se possam introduzir leis, inclusive em temas controversos, o escasso poder [das mulheres] na liderança de instituições no Congresso faz com que careçam de maior influência”. A isto se soma, continua a especialista, o fato de que as políticas públicas de gênero têm sido marcadas pela descontinuidade, a falta de financiamento e a ambiguidade na definição de “equidade”.
Para a maioria das organizações feministas argentinas, uma das grandes dívidas do governo de Cristina Fernández é a atenção efetiva ao aborto legal. O Parlamento rechaçou o projeto de lei de Interrupção Legal da Gravidez. No caso de Dilma Rouseff, este distanciamento não se dá apenas em relação ao aborto, uma vez que ela também tem se curvado diante de setores conservadores em suas políticas de diversidade sexual e direitos humanos, em troca da continuidade de apoio de tais setores.