O Brasil tem assistido ao embate público entre segmentos religiosos e movimentos sociais em torno da pauta dos direitos sexuais. O panorama opõe, de um lado, setores que se manifestam contrários, baseados em conteúdos doutrinários, às práticas e às orientações sexuais e identidades de gênero não tradicionais, tais como a homossexualidade e os fenômenos transgêneros. O discurso tem sido direcionado não apenas para a perspectiva abstrata, dos valores morais, mas também para os espaços políticos de definição de leis e políticas públicas, interferindo no trâmite de projetos e no encaminhamento de ações governamentais. Do outro lado, movimentos de direitos humanos, apoiados por artistas e intelectuais, mobilizam-se contra o que entendem como uma articulação indevida: política e religião. Em jogo, uma espécie de guerra cultural em que a coexistência das diferenças mostra-se conflituosa, jogando luz sobre os limites muitas vezes borrados entre a tolerância e o discurso de ódio.
A ocupação de espaços por parlamentares que representam segmentos religiosos – especialmente a bancada evangélica – da sociedade brasileira tem sido destaque na mídia, sobretudo após a eleição do deputado Marco Feliciano, pastor evangélico, para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, em março. O fato desatou uma onda de protestos contra afirmações do parlamentar a respeito de relacionamentos gays, Aids, negros e mulheres. De acordo com o congressista, em mensagens postadas há algum tempo na internet, “a podridão dos sentimentos homoafetivos leva ao ódio, ao crime, à rejeição” e “africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato”. Além disso, ele também tinha se manifestado associando a Aids a uma doença gay.
A conjuntura política atual tornou-se mais evidente após a campanha presidencial de 2010, quando as articulações entre religião e política foram postas em relevo como estratégia eleitoral. O aborto foi um tema fartamente explorado pela ótica conservadora, levando a então candidata Dilma Rousseff a recuar em declarações em que se manifestara a favor da legalização da prática. Após a vitória da candidata, a imersão da política no campo do religioso preservou-se e tem adquirido contornos mais expressivos: campanhas de prevenção ao HIV/Aids foram canceladas no carnaval de 2012, e o kit anti-homofobia, apoiado pela Unesco, teve sua distribuição suspensa nas escolas em 2011.
Estado constitucionalmente laico, o Brasil tem sido palco para um debate cada vez mais incitado: até que ponto o casamento entre política e religião é legítimo, especialmente na elaboração de leis e políticas públicas? Em que medida a atividade religiosa parlamentar expressa valores que podem levar ao discurso de ódio e à intolerância? A neutralidade das esferas político-institucionais ante aos discursos religiosos é possível? Como, afinal, conciliar a liberdade religiosa com a universalidade dos direitos, a tolerância e a igualdade?
A constituição histórica da tolerância como ferramenta de organização e convício social envolve séculos de reflexão filosófica e política. O movimento iluminista (século XVIII) representou uma alteração paradigmática para as sociedades Ocidentais, conferindo à racionalidade o papel de mediação dos desafios que se impunham à humanidade. O empirismo e o rigor metodológico tornaram-se elementos centrais para o pensamento moderno, concorrendo diretamente com os paradigmas religiosos e míticos para dar respostas e sentidos à realidade. A ciência, nesse sentido, surgia com a proposta de eliminar o conhecimento que não tivesse um fundamento verificável e provável, visto como da ordem da superstição. Surgia também como um caminho que traria a justiça.
Na esteira do movimento iluminista, surgiram os esboços do que viriam a ser as idéias de direitos, igualdade e liberdade. Uma tentativa de fazer frente às atrocidades perpetradas nos séculos anteriores, em nome das mais variadas justificativas. A lógica racional e científica, no entanto, não foi suficiente para que discursos e práticas de afirmação e legitimação das desigualdades surgissem, do que provam as proposições do racismo cientifico (século XIX), que viam na biologia um argumento para a inferioridade supostamente natural dos negros.
A pluralidade de discursos e ideologias, de diversas ordens, é uma marca das sociedades, em qualquer tempo. Para o filósofo e professor Ricardo Timm (PUC-RS), “a reflexão filosófica se justifica, na contemporaneidade, essencialmente enquanto atividade que problematiza o vácuo entre as promessas da Modernidade e a realidade que vivemos”.
A realidade atual, no contexto brasileiro, tem se mostrado conflituosa, em termos de discussão e promoção de direitos de minorias. O deputado Marco Feliciano personifica o quadro de tensões, evidenciando os contornos religiosos da ordem social e política no que tange à tolerância. A própria noção de tolerância, destaca Ricardo Timm, é um conceito moderno, que irrompe com vigor no contexto da temática religiosa, mas que traz, para ele, um caráter de negatividade ao evocar a noção de que “só tolero o que, se pudesse escolher, não toleraria”.
Para Ricardo Timm, a noção de tolerância pode ser repensada à luz das idéias de Jacques Derrida, filósofo francês que propôs o deslocamento para o conceito da hospitalidade. De acordo com o professor da PUC-RS, a categoria da tolerância é insuficiente para dar respostas aos fenômenos da violência que transcendem o estatuto da razão. “A noção de hospitalidade não sugere concessão. Ela pressupõe que a relação não é uma certeza de segurança ou uma formalidade, mas uma facticidade inelutável que deriva do viver com outras singularidades que não são mônadas. A hospitalidade é a virtude social positiva, ou seja, o que sucede a tolerância”, argumenta Ricardo Timm.
A hospitalidade tem sido uma possibilidade viável, no horizonte social brasileiro? Movimentos ligados aos direitos sexuais e reprodutivos têm se confrontado com segmentos religiosos, especialmente evangélicos, em torno de diversas temáticas que esperam, no Congresso e no Executivo, encaminhamentos legais e administrativos. No mês de março, o Ministério da Saúde suspendeu a distribuição nas escolas de kits educativos sobre o HIV/Aids voltados para adolescentes, o que gerou protestos de movimentos sociais sobre as razões da medida – que estaria ligada a não confrontação com setores religiosos conservadores, já que a eleição presidencial é no próximo ano e a população evangélica, especialmente, tem crescido significativamente no país.
Tramita ainda na Câmara dos Deputados projeto de decreto legislativo que objetiva sustar resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe que profissionais da área articulem e implementem terapias de “cura” da homossexualidade. A homossexualidade não é considerada doença pela Organização Mundial de Saúde, organismo político mundial de referência no campo da saúde. A Psiquiatria também não classifica o desejo por pessoas do mesmo sexo como uma enfermidade. As Ciências Sociais, do mesmo modo, têm procurado demonstrar o caráter cultural da experiência sexual, desvinculando-a de determinismos naturalizantes.
O caso brasileiro, no entanto, traz à tona a operação de aproximação entre ciência e religião que setores dogmáticos têm buscado realizar. Durante audiência pública sobre o projeto, realizada no final de 2012, o pastor Silas Malafaia, crítico do que tem sido nomeado por tais setores como “gayzismo”, afirmou que é legítimo um profissional de Psicologia tratar alguém que não se sinta bem em uma condição e que, portanto, “todo paciente adulto com saúde mental tem direito a decidir sobre seu próprio corpo”. O pastor foi defendido pelo deputado Marco Feliciano, cujo discurso também sustentou a lógica da orientação sexual como um fenômeno passível abordagem médica. Diante dos protestos na audiência, o deputado lamentou a confusão argumentando que a discussão era para um “assunto científico” que precisaria de mais entendimentos.
Até que ponto é possível pensar na hospitalidade diante de proposições legais, baseadas em conteúdos religiosos, que se destinam a interferir nos direitos da população LGBT? Estudo recente da advogada Rosa Oliveira mostrou que a atuação dos três Poderes tem sido permeada, em boa medida, pela lógica religiosa. Há propostas, por exemplo, com o objetivo de impedir a adoção por casais do mesmo sexo e de proibir a mudança de nome para indivíduos transexuais. A essencialização da experiência sexual e de gênero, pela moral religiosa, expressa uma lógica determinista: setores religiosos orientam-se por discursos tradicionais, recortando o mundo apenas pelas suas noções de verdade. A defesa de categorias sociais e pressupostos inflexíveis, como a ideia de homem e mulher opostos no gênero e complementares na reprodução, tem pressionado o Estado brasileiro na sua tarefa de promover justiça.
Para Ricardo Timm, é necessário que se desnaturalize as diferenças em todos os sentidos da palavra. “Toda naturalização tem levado ao que chamamos de ‘folclorização’ da diferença, à sua domesticação, à sua despotencialização enquanto dimensão que, exatamente, no âmbito daquilo que o trauma da alteridade significa, cria e recria relações humanas propriamente ditas”, observa o filósofo, para quem a temática da Justiça necessita ser pensada como uma questão elementar que condiciona a própria idéia de racionalidade em desconstrução e reconstrução.
Tem sido comum a articulação de discursos de ordem científica e religiosa nas falas dos movimentos conservadores, especialmente os evangélicos. Seria essa uma maneira de buscar, através de um vocabulário racional, maior legitimidade para as representações sobre gênero e orientação sexual?
De acordo com o antropólogo Marcelo Natividade (Universidade Federal do Ceará-UFC), que tem pesquisado em sua trajetória acadêmica as interfaces entre doutrinas evangélicas e diversidade sexual, há uma percepção hegemônica de repúdio e desqualificação quanto às sexualidades não heterossexuais e desvinculadas dos papéis tradicionais do feminino e masculino. “O movimento evangélico é muito plural. Há os de vertente histórica, os pentecostais, os neopentecostais. No entanto, há uma unidade de sentido quanto à homossexualidade. É vista como abominável, anti-natural, excluída do campo do sagrado”, afirma o antropólogo.
De acordo com Marcelo Natividade, a mescla entre religião e ciência tem sido uma tônica. Em sua pesquisa de mestrado, o professor da Universidade Federal do Ceará observou casos de pessoas gays que são levadas para clínicas de recuperação, onde são submetidas a uma pedagogia de gênero de modo que se possa realizar uma suposta conversão do desejo para o sexo oposto. “A questão da diversidade é enquadrada no modelo hegemônico heterocêntrico, no qual o suposto discurso científico muitas vezes é usado como ferramenta pretensamente terapêutica. É nesse sentido que podemos ver o retrocesso que a proposta da cura da homossexualidade traz. Vamos voltar ao passado, quando os gays eram considerados doentes. Há um movimento de repatologização da homossexualidade que deve ser combatido, porque nele se esconde o preconceito puro e simples, que se tenta amaciar com um verniz religioso e pseudocientífico”, destaca Marcelo Natividade.
A percepção negativa da homossexualidade expressa pelos setores religiosos fala menos de religião, argumenta o antropólogo, do que indica a existência de um pânico moral. “Isso significa dizer que interpretações doutrinárias apontam para as relações entre pessoas do mesmo sexo como um perigo que ameaça outras esferas da sociedade. A família, a heterossexualidade, a figura do feminino e do masculino estariam em xeque por causa dos homossexuais”, argumenta o pesquisador, lembrando que a Igreja Católica, através das declarações papais, por vezes se alinha a esses posicionamentos de repúdio.
O destaque que a eleição do deputado Marco Feliciano à Comissão de Direitos Humanos e Minorias ganhou e a conseqüente onda de protestos de movimentos LGBT representam fatos que integram uma conjuntura maior. A bancada evangélica cresceu significativamente nas eleições de 2010, alcançando o número de 66 parlamentares (63 deputados e 3 senadores). É um grupo que tem atuado ostensivamente no processo de reforma do Código Penal, que trata de temas sensíveis moralmente, como aborto e homofobia. E tornou-se, para efeitos eleitorais, um eixo de composição partidária relevante. De acordo com notícia do jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 15/04, a presidente Dilma Rousseff pretende manter intocada as legislações sobre aborto e casamento gay para não se indispor com a bancada evangélica.
A bancada evangélica, lembra Marcelo Natividade, é um grupo com diferenças internas. Há posições plurais, discursos que são negociados, como, por exemplo, na questão do aborto. Diferentemente da questão da homossexualidade, em torno da qual há um absoluto alinhamento quando tratada em nível legal. “O consenso é o de barrar direitos para os gays”, observa o antropólogo, lembrando que em 1988, durante o processo da Constituinte, a expressão “orientação sexual” não foi incluída no texto que tratava sobre discriminações. “A fala religiosa teve e tem um forte poder obstrutivo”, completa Marcelo Natividade.
O enraizamento da religião nos espaços políticos é geralmente criticado com o argumento de que o Brasil é um estado laico. A previsão de que o país não tenha uma religião oficial, posicionando-se institucionalmente de maneira neutra em relação a assuntos religiosos, não ocorre na prática. Sabe-se que o país tem um quadro de conflitos entre religiões que muitas vezes se concretiza com invasões de espaços religiosos, especialmente em relação a doutrinas afro-brasileiras. As ações no intuito de promover uma convivência pacífica, hospitaleira, enfrentam resistências nas mais variadas instituições. Marcelo Natividade, que atua com projetos educativos, afirma que há grandes dificuldades de se tratar a escola como espaço laico. “As propostas de levar à temática da diversidade sexual enfrentam resistência nas direções, nos corpos docentes, nos pais dos alunos. A articulação entre sexualidade e religião e mesmo entre religiões é muito difícil, repleta de contingências”, afirma.
A universalidade dos direitos tem sido questionada com o argumento de que é preciso levar em conta os valores religiosos. Para Marcelo Natividade,está em jogo mais do que a liberdade de culto e de expressão de valores religiosos. “Vejo que a luta pela preservação de posições de poder é o objetivo. O proselitismo religioso é apenas um pretexto. Os direitos da mulher já são reconhecidos e, embora concepções sexistas e misóginas permaneçam, ninguém mais aceita a idéia de que os homens são superiores a elas. O mesmo vale para os negros no caso do racismo: apesar de existir, a idéia de superioridade branca não é mais aceita. No caso dos homossexuais, no entanto, predomina socialmente uma idéia de inferioridade em relação aos heterossexuais. Os movimentos religiosos, dos quais os evangélicos são ator de grande peso nos espaços políticos, não querem perder suas posições e estruturas de poder. E usam a questão da diversidade sexual como ferramenta de preservação desse status”, argumenta Marcelo Natividade.
Para Marcelo Natividade, o avanço da bancada evangélica sobre a temática dos direitos sexuais representa, inclusive, uma afronta à liberdade religiosa dos indivíduos LGBT que são cristãos e pertencem a denominações evangélicas. “Há mecanismos de punição, dentro de correntes evangélicas, que punem até com expulsão o fiel que se revela homossexual. É um grau de controle e vigilância muito invasivo, desrespeitoso, como se o exercício da religião fosse monopólio de poucos privilegiados”, critica.
Seria o tom muitas vezes utilizado, comparando, por exemplo, relações gays à malignidade, um discurso de ódio? Para Marcelo Natividade, sim. “Essas falas agressivas poucas vezes falam de religião. São discursos estereotipados, que fomentam o ódio e a discriminação. É muito grave um parlamentar ou autoridade qualquer se pronunciar de maneira pejorativa, de ataque”, argumenta, sendo favorável que o projeto de lei (PL 122) que criminaliza a homofobia possa ser aplicado até mesmo dentro dos templos, o que tem gerado forte oposição da bancada evangélica sob a justificativa de que violaria a liberdade de culto. “Se um negro se sente ofendido dentro de uma igreja, ele pode fazer queixa à polícia. Por que isso não valeria no caso dos gays?”, opina Marcelo Natividade.
A bancada evangélica tem se posicionado de maneira resistente. O deputado Marco Feliciano, apesar de semanas sendo alvo de protestos no Congresso e na mídia, permanece na presidência da Comissão. Os protestos, inclusive, serviram para que a bancada afirmasse que há em curso um movimento de intolerância religiosa. “Quando direitos estão em jogo, as coisas adquirem proporções maiores. Penso que a população LGBT é um alvo histórico de injustiças que lhes retiram direitos e afetam a dignidade. As demandas são colocadas em pauta e fica difícil negociar quando o adversário ataca por meio de argumentos desqualificantes, que inferiorizam. A bancada alega ser contra a prática homossexual, mas não contra o gay. Nunca os ouvi se manifestar contra a pena de morte aos gays que tramita em Uganda. Que religião é essa que advoga o privilégio do tratamento diferenciado, que às vezes embasa discursos de ódio, e que se cala diante da pena de morte?”, opina Natividade.
Apesar do panorama de fortalecimento político de grupos religiosos, especialmente do evangélico, Marcelo Natividade pontua que há igrejas inclusivas que buscam um respaldo bíblico mais contextualizado, diante das crescentes demandas por direitos. “Não são movimentos, no entanto, ainda reconhecidos. Não encontram espaços de expressão, seja dentro do movimento evangélico, seja nos espaços políticos. Mas é um sinal de que é possível dar um outro sentido à religião, atrelado ao respeito e à dignidade”, afirma o professor da UFC, que lançará em maio o livro “As novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil", juntamente com o antropólogo Leandro de Oliveira.
O reconhecimento de identidades, desejos e comportamentos não convencionais tem sido um processo lento e tenso. Nenhuma mudança, no entanto, vem sem resistências. Apesar da conjuntura, o país tem testemunhado uma discussão mais aberta, o que prova que a temática tem adquirido legitimidade política. Do contrário, não estaria em pauta nos espaços legislativos, mobilizando movimentos sociais e parte da sociedade. A situação atual envolve, mais do que temas religiosos, valores culturalmente arraigados, num país cuja experiência sexual e de gênero é marcada por hierarquias, desigualdades e relações de poder. Os desafios que os direitos sexuais impõem articulam-se a costumes e discursos historicamente constituídos. Podem tais desafios ser considerados um sinal em direção à ideia de hospitalidade, que projete uma negociação mais inclusiva entre religião e política e aceite a universalidade dos direitos independente de convicções? Para Ricardo Timm, da PUC-RS, sim. “O profetismo bíblico mais remoto faz ecoar hoje seu anseio por justiça. A ‘loucura pela justiça’ – expressão de Derrida – nos move no mundo. É a exteriorização da crença profunda de que a esperança não morre e que, portanto, o que desejamos não é a paz dos cemitérios, mas a paz da vida e da consciência moral tranquila”, conclui.