A atenção aos pobres e as desigualdades sociais protagonizaram as declarações do papa Francisco durante sua visita ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, prevalecendo sobre temáticas de moral sexual mobilizadas com mais freqüência e veemência no papado anterior de Bento XVI. Em uma semana, o papa conclamou os jovens a serem revolucionários (no sentido de não aceitarem a ideia do casamento sacramentado como algo fora de moda), falou em “humanismo na economia”, fez uma autocrítica em relação ao distanciamento da Igreja para com os fiéis – para ele, motivo da notória perda de seguidores em todo o mundo – e chegou a louvar a importância da laicidade do Estado para o convívio pacífico entre diferentes religiões.
Ao contrário do que se esperava, Francisco não aproveitou a oportunidade de passar aos jovens lições da moral católica, preferindo calar-se sobre temas como casamento gay, aborto e uso de métodos contraceptivos. Apenas em sua viagem de volta à Roma, em entrevista a jornalistas presentes no mesmo vôo, o papa tocou em assuntos como a homossexualidade e o papel da mulher na Igreja. Sobre este último disse que as mulheres têm um papel essencial na Igreja, embora o pontífice tenha se mantido contrário à ordenação. Sobre a homossexualidade, disse: "Se uma pessoa é gay e busca a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?"
Foi o bastante para que Francisco ganhasse a simpatia de representantes de movimentos LGBT brasileiros, que viram com bons olhos as declarações do papa e entenderam o posicionamento como um sinal de abertura e diálogo.Muitos deles afirmaram-se esperançosos, acreditando que a mensagem do papa possa vir a contribuir para o combate à discriminação. Mas até que ponto as declarações do papa sobre alguns temas e o seu silêncio sobre outros representam realmente alterações significativas no rumo e na doutrina da Igreja Católica? Que efeitos a visita de Francisco pode trazer na maneira como algumas questões serão tratadas no cotidiano pastoral da Igreja daqui para frente?
Para Sérgio Carrara, antropólogo e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, não é possível afirmar que haja uma mudança doutrinária em termos de moral sexual. “A fala do Papa sobre os gays não significa uma alteração no sentido que a homossexualidade possui na doutrina. Não foi uma declaração que negasse a ideia de pecado que define a relação entre pessoas do mesmo sexo. Pela declaração, não fica claro a opinião do papa sobre o tema”.
Opinião semelhante a da co-coordenadora do Sexuality Policy Watch (SPW) Sonia Corrêa. “A rigor, não houve alterações do ponto de vista doutrinário. A ideia de pecado permanece. O que se pode apontar como diferencial é a ênfase na compaixão e na misericórdia. Ainda assim, uma compaixão que aparece atrelada à fé, possibilitada por aquele que busca a Deus, nas palavras do papa”, observa.
Para um membro do grupo Diversidade Católica, que prefere não se identificar, a fala do Papa Francisco sobre homossexualidade representa uma grande mudança. “Francisco usa o termo ‘gay’ e não ‘homossexual’, que aparece na doutrina oficial como um termo hostilizado. Há, nesse sentido, a incorporação de um vocabulário da militância pelo líder da Igreja Católica. Também acredito que não há avanço em termos doutrinários, mas não se pode descartar o tom positivo de acolhida que se vê na fala do papa. Há uma mudança no tom que propicia condições para potencializar mudanças”, acredita o integrante da Diversidade Católica.
A mensagem do Papa para os gays não pode ser analisada separadamente da observação subseqüente do pontífice. Francisco afirmou que o problema não é ter essa tendência [a homossexualidade], mas sim o lobby [gay], comparando ao lobby de pessoas avaras, da maçonaria e dos políticos. Não fica claro, porém, se a referência é ao lobby dentro do Vaticano ou a grupos de advocacy dos direitos LGBT. “O Papa parece sugerir um contraste entre a politica "negativa" que segundo ele é praticada por lobbies elitistas – os avaros, os políticos, os maçons e os gays – e a conexão não elitista da igreja com as classes subalternas. Essa retórica, entre outras coisas, oculta as práticas de pressão política da Igreja e do próprio Vaticano sobre e por dentro dos estados. A aprovação da Concordata Brasil Vaticano em 2009 é uma ilustração cabal que a Igreja também faz lobby", afirma Sonia Corrêa.
A despeito da histórica oposição do Vaticano às perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos – como o uso da camisinha e da pílula, por exemplo –, na prática, a vida dos católicos nem sempre está em acordo com as recomendações morais da Igreja. Pesquisa divulgada pelas Católicas pelo Direito de Decidir durante a JMJ mostrou que o uso de pílula anticoncepcional é aceito por 82% dos jovens católicos. Além disso, 56% dos jovens mostraram-se favoráveis ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Hierarquização de questões
Apesar do silêncio de Francisco em relação a temas como aborto, homoconjugalidade e homoparentalidade, durante a Jornada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) distribuiu um manual de bioética em que condena a interrupção da gravidez, métodos contraceptivos, e a união e adoção por pessoas do mesmo sexo.
De acordo com Sonia Correa, do SPW, a repercussão das declarações do papa durante a entrevista no avião demonstra como o Vaticano atua de maneira hábil nas suas falas e ações. “O discurso de não julgamento aos gays vai na contramão do que está no manual de bioética. Mais ainda, contradiz a atuação do Papa Francisco em seus tempos de cardeal na Argentina, quando atuou contra o casamento igualitário. Recentemente, em sua primeira encíclica também reiterou visões tradicionais de gênero e uniões afetivas. Impressiona como as palavras dele tiveram um significativo poder para obscurecer o que está escrito. Há uma estratégia midiática habilmente planejada. Como uma entrevista consegue se tornar a verdade última?”, observa Sonia Corrêa.
O papa, durante a JMJ, falou em laicidade, no sentido de uma convivência pacífica entre as diversas religiões, e não como o princípio de separação entre o poder político e administrativo do Estado e o poder religioso. Sobre essa abordagem, Sérgio Carrara avalia que é uma posição interessante pelas implicações que isso pode trazer. “A declaração traz a questão da laicidade para a convivência entre doutrinas diferentes. No entanto, quando isso se volta para a laicidade enquanto princípio jurídico, é possível refletir sobre determinadas implicações. A separação entre Estado e Igreja tem sido um argumento mobilizado por movimentos sociais para promover e garantir direitos sexuais e reprodutivos. Portanto, é possível deduzir que o comentário pode trazer contribuições para o diálogo com minorias”, argumenta Sérgio Carrara.
A não tematização de determinados assuntos deve ser olhada também com atenção. Seria uma sinalização que enseja o debate sobre assuntos sensíveis? Não se viu declarações sobre aborto ou contracepção, por exemplo. De acordo com Sérgio Carrara, o foco do papa tem sido a desigualdade social e a pobreza, cujo destaque tem deixado de lado questões ligadas à moral sexual. “As falas do Papa apontam para alterações sutis. Embora nada novo em termos de doutrina tenha sido proposto, é possível avaliar que exista um deslocamento na hierarquia das questões, como se ele apontasse que aquilo que diz respeito à sexualidade fosse uma questão de foro íntimo. A Igreja, nesse sentido, estaria sinalizando um deslocamento de ênfases”, analisa Sérgio Carrara.
O silêncio de Francisco, avalia o integrante da Diversidade Católica que prefere o anonimato, é muito emblemático. “O papa tem demonstrado, desde que assumiu, que as posições da Igreja sobre moralidade sexual já são suficientemente conhecidas. Assim, ele parece se abster de retomar as proibições morais. Ao fazer isso, deixa aberto um caminho de diálogo”, observa.
Talvez o silêncio do papa signifique que ele – Francisco – não esteja querendo reiterar as velhas posições da Igreja. Não que ele esteja se afastando da doutrina tradicional, apenas está evitando insistir nela.