Uma das mesas do evento comemorativo dos 10 anos do CLAM, ocorrida no marco da IX Conferência IASSCS,em Buenos Aires na última semana, articulou as temáticas da prostituição, homossexualidade e aborto. O cientista político Mário Pecheny (Instituto Gino Germani/UBA), mediador da mesa, propôs algumas questões para que cada um dos debatedores – as antropólogas Maria Luiza Heilborn (IMS/UERJ) e Adriana Piscitelli (Pagu/Unicamp), e o sociólogo Ernesto Meccia (UBA) – pudessem articulá-las com seu respectivo tema de pesquisa.
De que maneira o amor romântico (tema central da Conferência IASSCS) poderia ser pensado em articulação com as temáticas estudadas pelos integrantes da mesa?
Para Adriana Piscitelli, autora do livro Trânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo, afirmou que a América Latina é uma região intrigante para se pensar tal associação. De acordo com a antropóloga, há, nos encontros sexuais de prostituição, performances de amor romântico. No entanto, é uma lógica que coexiste, paradoxalmente, com a ideia de que o prazer e o afeto, assim como o profissionalismo do amor, devem ser separados. “Apesar das contradições, acredito sim que é possível haver amor romântico na prostituição”, afirmou Adriana Piscitelli.
Nas relações que envolvem aborto, o amor está ausente, observou Maria Luiza Heilborn. De acordo com a antropóloga brasileira, a ideia de uma gravidez indesejada indica que algo não funciona na relação, seja pela relação em si entre o casal, seja por algum tipo de projeto pessoal, oupelas dificuldades financeiras.
Para o pesquisador argentino Ernesto Meccia, a homossexualidade no contexto do amor romântico tem adquirido novos contornos. Especialmente após a aprovação do matrimônio igualitário na Argentina, em 2010, houve uma metamorfose no imaginário do amor, que tem acompanhado inclusive o universo cultural. “É um bom momento para se pensar o caráter negocial das relações afetivas no imaginário social. As telenovelas e os filmes têm dado abertura para os relacionamentos homossexuais. Isso é importante para se repensar o amor fora dos marcos das formulações tradicionais”, afirmou Ernesto Meccia.
Em que medida a democracia, restaurada nos anos 1980 no Brasil e na Argentina, afeta os temas em discussão?
Segundo Adriana Piscitelli, houve uma diminuição da violência, que se mostrou muito grande durante a ditadura argentina (1976-1983). “Já no Brasil, houve um certo reconhecimento de cidadania ao incorporar as prostitutas no âmbito do HIV/Aids. Houve também uma normalização da prostituição, legitimada como ocupação pelo Estado brasileiro. Mas é uma normalização relativa, especialmente a partir dos anos 2000. Com a questão do tráfico de pessoas, tal normalização foi quebrada. Houve uma reatualização no sentido de que a prostituição aparece muitas vezes reduzida ao problema do tráfico. Nesse sentido, houve uma limitação no avanço de direitos”, observou Adriana Piscitelli.
No caso do aborto, Maria Luiza Heilborn destacou que a democracia não trouxe nada. “Os termos e o alcance do debate não foram ampliados. Houve um aguçamento e uma radicalização das discussões nos últimos anos, sobretudo por causa da ascensão de grupos religiosos neopentecostais que atuam focados em temas como família, trazendo uma moral muito restritiva. O panorama é muito prejudicado porque há uma aliança entre igreja católica e tais movimentos neopentecostais. Eles preservam diferenças teológicas, mas estão em sintonia quando o assunto são direitos sexuais e reprodutivos”, argumentou Maria Luiza Heilborn.
Para Ernesto Meccia, os ganhos trazidos pela democracia são da ordem das representações e dos conceitos. “O fluxo circulante de imagens demonstra uma lógica de desenclave de representação, isto é, um processo de diferenciação social no bom sentido. A homossexualidade está diferenciada, realçada em termos mais inclusivos, embora não se possa dizer que a situação seja perfeita. Há luz e há sombras”, afirmou.
Uma das questões propostas por Mário Pecheny levantou a questão do lugar-comum e das perguntas de difícil resposta sobre a investigação científica. Nas pesquisas sobre prostituição, Adriana Piscitelli mostrou-se incomodada com a prevalência de um tom simpático em relação à agência das prostitutas. “É como se tudo se limitasse à autonomia das trabalhadoras. Não se pode ignorar as dinâmicas de violência e ilegalidade que cercam a atividade. E, obviamente, todos têm agência, todos têm capacidade de atuar, em alguma medida”, enfatizou Adriana Piscitelli, que acredita que uma resposta ainda a explorar nas pesquisas é escutar diretamente a perspectiva e demandas das trabalhadoras sexuais.
De acordo com Maria Luiza Heilborn, uma abordagem comum que a incomoda é a forma como muitas pesquisas são feitas, especialmente no campo da saúde. “As investigações são comumente realizadas em hospitais, muitas vezes com a mulher ainda acamada, em situação de vulnerabilidade. E priorizam a mulher. O aborto, no entanto, tem uma dimensão mais ampla: não se decide sozinho, a mulher negocia com o parceiro, conversa com os pais, com o vizinho. Há uma rede de relações sociais que está envolvida naquela situação”, afirmou. De acordo com a antropóloga, uma pergunta de difícil resposta no campo de estudos de aborto é justamente os números reais sobre interrupções de gravidezes no Brasil. “Há dados epidemiológicos, mas não temos a real dimensão do fenômeno. O aborto é a 4ª causa de mortalidade materna no país. Deveríamos ter um conhecimento mais amplo da situação”, defendeu Maria Luiza Heilborn, para quem o aborto, no país, é uma questão de igualdade. “Quem aborta é a mulher. Não é uma prática que vai afetar a sociedade. Afeta a mulher, que é quem faz e merece suporte para tanto”, afirmou.
Ernesto Meccia acredita que um lugar-comum nas pesquisas sobre homossexualidade é a tentação de modelizar. “Parece haver um cálculo de construção de sentidos comuns para as relações homossexuais. Existe uma caricaturalização, como se a academia cedesse facilmente à tentativa de enquadrar em certos moldes relações que são distintas, apresentam configurações e dinâmicas variadas”, concluiu.