O tema da IX Conferência IASSCS, ocorrida em agosto em Buenos Aires, referia-se ao lugar do sexo e do amor, e suas possíveis articulações, no mundo contemporâneo, marcado pela lógica hegemônica do mercado. Uma das sessões plenárias mais instigantes tratou de tais relações, explorando o valor da beleza e o custo da concupiscência, assim como as dinâmicas de produção de conhecimento no campo da sexualidade. “Como fazer sexo no mundo atual?”, perguntava o título da mesa. Integraram as discussões o pesquisador australiano Gary Dowsset, do Centro de Sexo, Saúde e Sociedade, (La Trobe University, Austrália), o filósofo e ativista argentino Mauro Cabral (Global Action for TransEquality, Argentina), o pesquisador Thomaz Guadamuz (Mahidol University Center for Health PolicyStudies, Tailândia) e o professor Lawrence La Fountain-Stokes (Universidade de Michigan).
A palestra principal coube a Gay Dowsset, que delineou os embates epistemológicos que marcam a produção de conhecimento no campo da sexualidade. Chamando atenção para o papel da sexologia, Dowsset afirmou que esta tem um papel central e totalizante ainda hoje, apesar de sua constituição datar do século XIX. “Os efeitos podem ser sentidos nos dias de hoje, em especial por meio da definição e criação de categorias de desordem que inscrevem a sexualidade em termos de normalidade e anormalidade. A sexologia propõe-se a apontar a verdade última da experiência sexual. Nesse sentido, tais definições se estendem para o campo das leis”, observou. “Há ainda outro desdobramento marcante que se dá através indústria farmacêutica. A lógica de ordem e desordem estabelece taxonomias e patologias. Logo, criam-se respostas a tais desordens, o que coloca em evidência a participação da indústria de medicamentos nessa dinâmica”, afirmou Gary Dowsset.
Outra linha de investigação da sexualidade que Dowsset destacou está ligada a uma visão mais quantitativa do fenômeno: o “sex researcher”. De acordo com o pesquisador australiano, tal linha preocupa-se prioritariamente com dados e estatísticas e com comportamentos e atos. A fórmula não lhe parece muito interessante: “É uma área que obtém grande destaque nos meios de comunicação, que interage com o imaginário popular. As estatísticas possuem um viés normalizador e segregador, pois também trabalham com a noção de anormalidade. As estatísticas negligenciam a construção social da sexualidade”, afirmou.
Na outra ponta, Dowsset colocou as Ciências Humanas e Sociais, que privilegiam um olhar mais matizado da cultura, capturando, através de métodos qualitativos, as particularidades que marcam a experiência sexual. Além disso, ressaltou, é um campo que não fica restrito à academia, está em permanente interação com o cotidiano e tem na interdisciplinaridade uma característica importante.
Diante dessas três linhas de forças teóricas, Dowsset afirmou que é preciso enfrentar alguns desafios. Em primeiro lugar, ampliando o olhar sobre o corpo para além de determinismos biológicos. “A sexologia trata do corpo, mas recusa-se a encará-lo de uma maneira ampla. O corpo aparece como material da sexualidade, mas não como constitutivo dela. É preciso refletir sobre a inserção social do corpo. O corpo não é pré-discursivo”, enfatizou Dowsset.
Para o pesquisador australiano, a eclosão da epidemia do HIV/Aids, nos anos 1980, teve um papel estimulante para a produção de conhecimento em sexualidade. No entanto, observou, isso não significou a consolidação de um olhar oriundo das Ciências Humanas e Sociais. Pelo contrário, o grau de vigilância se intensificou em relação ao corpo e aos comportamentos, ainda que a temática tenha ganho atenção dos Estados. “A sexualidade passou por um processo de inclusão. Direitos foram sendo discutidos e possibilitados mais pela via do “sex researcher” do que pela contribuição das Ciências Humanas e Sociais. Temos muita informação, mas quanto conhecimento?”, argumentou.”
Além da Aids, outro fator que influenciou os rumos da pesquisa em sexualidade, ao longo dos últimos anos, foi a consolidação de uma sociedade fortemente ancorada na comunicação e seus meios de interface. A pornografia surge como um dos eixos intensamente mobilizado. “A publicização do sexo está ligada ao processo de commodificação, isto é, a ao processo de inserção da experiência sexual na crescente dinâmica de mercado. As imagens sempre existiram, mas a fotografia, no século XIX, inaugurou essa tendência, que se fortalece com tantas tecnologias que surgem”, observou Gary Dowset.
Tal processo cria uma nova econômica do sexo, na qual são definidas novas taxonomias de desejos. Nesse sentido, um novo mercado e novas práticas vão sendo forjadas, em especial com a gama de recursos tecnológicos que permitem que a experiência sexual se dê por meio de performances digitais, de acordo com Dowsset. Com mudanças nas relações sociais, a explosão de imagens, de representações e práticas, o pesquisador australiano destacou que as identidades têm se dissolvido. “A balança entre heterossexualidade e homossexualidade tem sido esvaziada em função dessa commodificação do sexo”, afirmou.
As novas e sofisticadas possibilidades tecnológicas significam, para Mauro Cabral, um “retorno do corpo”. “As biotecnologias são uma matriz constitutiva do corpo, de novas representações, novos usos e performances. É importante pensar qual a relação que o corpo articula com os novos aparatos técnicos. Nesse sentido, o corpo biológico se impõe nas agendas políticas e teóricas”, afirmou o filósofo argentino.
“Não vivemos, no entanto, bons tempos para a sexualidade. O lugar que o corpo ocupa atualmente tem sido acompanhado pela intensificação de pânicos morais e pelo recrudescimento de discriminações”, afirmou Mauro Cabral, para quem a ressignificação do corpo está imbricada também nas relações internacionais. “Há países ameaçados de invasão por causa de liberações sexuais”, destacou.
Assim como Dowsset, Mauro Cabral traçou algumas considerações sobre a produção de conhecimento no campo da sexualidade. De acordo com o filósofo, há uma desarticulação entre a academia e o ativismo trans e intersex, do qual faz parte. “A tematização e as reflexões devem caminhar mais próximas, articuladamente”, enfatizou Mauro Cabral.
Thomaz Guadamuz (Mahidol University) apresentou algumas ponderações sobre as teses defendidas por Dowsset. Para Guadamuz, as linhas teóricas e epistemológicas têm limitações e estão imbricadas em relações de poder. “Por que pensar os três discursos teóricos de maneira excludente? Em minha tese de doutorado, pesquisando sobre HIV, pude observar, tanto através da epidemologia quanto através de uma visão das Ciências Sociais, como práticas e representações podem ser pensadas de maneira articulada”, observou, completando que as Ciências Sociais não estão imune a problemas. “A visão crítica da sexualidade, que procura pensá-la partir de referenciais não deterministas ou estatísticos, está presa a algumas dinâmicas de força: as teorias geralmente são feitas no hemisfério norte e servidas no sul. Mesmo com tais questões, acredito que seja relevante trabalharmos com diversas perspectivas”, afirmou Thomaz Guadamuz.
Também com uma visão crítica sobre a produção científica no campo da sexualidade, Lawrence La Fountain-Stokes (Universidade de Michigan) enfatizou a necessidade de se olhar para as culturas como domínios produtivos. “Vejo a cultura como um arquivo vivo para se entender as sociedades e a contemporaneidade. É um repositório de informação para a academia. E um caminho para se pensar a experiência de maneira mais ampla, diferente dos padrões normativos hegemônicos, democratizando, por exemplo, as possibilidades de representação e práticas com o corpo para além do padrão branco, europeu e do norte”, criticou.
Finalizando a plenária, Dowsset retomou suas reflexões sobre o campo da sexualidade. Afirmou que há problemas na constituição do campo (“incomensurável”), sendo difícil chegar a um consenso teórico. No entanto, lembrou que é importante se buscar formas críticas de pensar a sexualidade. “Não digo que haja uma relação meramente de dominação entre Sul e Norte ou mesmo entre as correntes teóricas. As relações são mutuamente constitutivas, e é importante que se tenha isso em mente. Sem esquecer das tensões que existem em tais relações”, finalizou Dowsset.